Quando o Rio de Janeiro passa da rebeldia ao colaboracionismo? Da referência nas lutas quilombolas ao cidadão anestesiado pelas forças do sistema capitalista? Para a socióloga Vera Malaguti, Secretária-Geral do Instituto Carioca de Criminologia, isto ocorre em 1994, com a derrota da retomada do projeto trabalhista encarnado por Leonel Brizola. "Foi aí que o neoliberalismo assumiu o controle da cidade, tendo como principais sustentáculos o monopólio da imprensa, as empresas de opinião pública e as empresas publicitárias que, por sua vez, definem os processos eleitorais. Resultado: por trás dos negócios privados que tomaram conta da vida pública, o pobre é tratado com força bruta e os ricos cuidam de fazer do Rio, principalmente da zona sul, uma cidade asséptica e, mais sinceramente, babaca". Esta é a síntese do depoimento exclusivo de Vera Malaguti, voz rara a se levantar contra a barbárie em que vivemos.
|
Acho que a situação no Rio de Janeiro vem se agravando. A grande pergunta é: o que aconteceu com a gente? Na saída da ditadura tínhamos uma visão muito crítica do autoritarismo, do abuso policial, do extermínio, da tortura. O que aconteceu dos anos 80 pra cá? A sociedade, principalmente a carioca, incorporou muito a fascistização da segurança pública. Por que a zona sul do Rio virou um lugar tão apartador? Por que uma vereadora do PV, como a Aspásia Camargo, é apologeuta dos muros? Como todas aquelas bandeiras que a gente tinha e as propostas de integração das favelas caíram por terra? E como hoje se criou toda uma polissemia de discursos fascistas e de combate à pobreza, de trabalhar a pobreza como sujeira, como risco ambiental, como perigo. A mídia tem um papel fundamental, tenho a tese do livro "O Medo na Cidade do Rio de Janeiro", em que mostro como o medo é trabalhado… O choque de ordem, esse corolário de projetos apartadores, começa pela defesa do confronto, pela apologia da truculência, pelo paradigma bélico de segurança pública, e agora já está indo pra questão urbana, com a perseguição violenta aos trabalhadores da economia informal, tipo camelôs e flanelinhas. E agora estamos voltando ao lacerdismo no Rio de Janeiro com força total. Então a pergunta é: como foi construído esse consenso? A mídia… Por isso que o embate que o Brizola fez nesse terreno era o embate certo. Não é à toa que sua morte e a tomada do PDT por esses grupos oportunistas deixou isso entrar no Rio e se espalhar. Acho que esse consenso é uma construção social, como diz o Noam Chomsky, que diz que a imprensa faz uma manufatura do consentimento. Isso foi feito muito em cima do medo. Resumindo de uma forma bem simplista: pobre tem que ser tratado na força bruta, seja na questão criminal, seja na questão trabalhista ou urbanista.
O Rio de Janeiro sempre foi uma cidade rebelde, uma cidade quilombola, de resistências afro-brasileiras, a graça dela sempre foi essa mistura, tanto que até hoje os estrangeiros que vem ao Rio querem conhecer baile funk, samba no morro, feijoada na favela, Santa Teresa. Qual estrangeiro quer ir pra Barra? Sem querer desmerecer, mas quem vai pra Barra vai pra Miami, Dubai, pra esse conceito de cidade.
E aí a direita foi crescendo, crescendo até chegar à Chacina do Alemão, que é uma coisa totalmente relacionada à faxina, faxina-chacina, que é bem uma metáfora nazi-fascista, porque todas as metáforas do nazismo e do fascismo eram sobre pureza, limpeza, o que perturbava a ordem pública, a moral, então toda essa visão fascista da cidade contra as prostitutas, contra os camelôs, contra os travestis, contra os meninos de rua, contra os flanelinhas. Quando eu lembro que Cartola era lavador de carro…
As atividades fascistas são sempre legitimadas e racionalizadas por um discurso moral. Por outro lado, como tem no samba do Chico, por trás estão as tenebrosas transações, os negócios em cima dos Jogos Olímpicos, do Pan, da Copa do Mundo. O [estado do] Rio de Janeiro, e agora com a Prefeitura no mesmo grupo político, está dominado por essa mentalidade privada na vida pública. Não é à toa que está passando também privatização na área de educação e saúde.
Então a minha tese é que a discussão sobre segurança pública em 1994 tinha como embate desconstruir o fio da história brasileira que vem desde 1954 (suicídio de Getúlio), 1964 (derrubada de Jango). Então em 1994 a discussão sobre segurança pública era o biombo de uma discussão muito importante para o neoliberalismo – a derrota do Leonel Brizola e tudo o que ele representava como retomada de um projeto soberano, brasileiro.
O Rio de Janeiro, tirando a favela, hoje é uma cidade careta, conservadora, insuportável. A zona sul do Rio hoje é muito ruim. Porque a "esquerda zona sul" entrou na onda, pelo discurso da segurança pública, pelo discurso ecológico. Se você olha a Lagoa Rodrigo de Freitas hoje todas as encostas estão tomadas por casas de ricos, sem que isso tenha uma conotação de sujeira, de contaminação. O Rio de Janeiro desse pessoal é hoje uma cidade babaca.
Muros nas favelas
Lembro que há uns 5 anos essa proposta dos muros foi aventada e logo massacrada. Você vê, o que eu chamo de adesão subjetiva à barbárie, como hoje está passando até discussão sobre remoção, que urbanisticamente não existe em nenhum lugar do mundo, a não ser no paradigma derrotado de Bush e Israel, "muros para integrar", não conheço nenhuma cidade do mundo que tenha feito muros para integrar. Esse discurso que trabalha o pobre como detrito, eu conheço na história. Pega lá o discurso de Adolf Hitler, essa coisa da assepsia. Isso está tudo ligado.
O monopólio da imprensa
Mas como existe um domínio total da imprensa… Eu tenho denunciado muito, acho que a política representativa brasileira está completamente capturada pela empresa eleitoral. Hoje é muito difícil um político da esquerda ou do campo popular furar o bloqueio entre grande mídia, empresas de opinião pública e empresas publicitárias. Não se discute mais política no Brasil. A pauta política está policizada. Se você abrir a página política dos grandes jornais vai ter discussão policial: "farra das passagens", toda essa pauta que eles fazem que é a criminalização da política. E que de uma certa forma, um grande percentual da nossa representação política acabou se adaptando a isso. Existem resistências, claro, não vou generalizar, mas a política é isso: quem vai desenvolver a melhor empresa eleitoral. Então pode estar numa igreja neopentecostal e você forma um grupo empresarial e de comunicação.
Mas então acho que esse caminho está esgotado. Aqui no Rio, tanto na prefeitura quanto no governo do estado, essas forças políticas ganharam. E a pobreza tem uma visão muito pragmática, no período eleitoral ela vê quais os ganhos imediatos pode ter, e eu não condeno isso. Então a melhor empresa é a que vende melhor, a que tem marqueteiro, dinheiro pra distribuir, material de campanha, jornais no bolso. A grande mídia, quer dizer, o sistema Globo, é o grande formador que levou a adesão subjetiva à barbárie. Parte da esquerda embarcou, muito pelos seus preconceitos contra o lúmpen. Acho que essa conjunção de fatores permitiu que esse fascismo tomasse conta e, como o nazi-fascismo, sempre encobrindo grandes negócios. A área em volta dos muros é muito valiosa economicamente, então isso também tem a ver com especulação imobiliária.
Milícias
Nos anos de 1980, você chamava de esquadrão da morte os grupos de extermínio. Com o grande massacre midiático em torno do "tráfico de drogas", que esse era o mal, o ruim, que a esquerda toda também acha, que o trabalhador bom é o bem comportado… Em torno deste paradigma, a milícia foi sendo legitimada. Primeiro passou a ser chamada milícia, seria uma resistência comunitária ao tráfico de drogas. Só um idiota não vê que aquela força econômica, completamente imbricada com as forças policiais, não iria fazer o salto do gás, do "gatonet", para o comércio varejista de drogas. Então a milícia cresceu… Agora tem a coisa do bom matador. Tropa de Elite é a apologia disso. Você tem o matador limpo, que é o SS. Com esse paradigma do enfrentamento, eles resolveram bater numa força só, que seria o Comando Vermelho. Qualquer pessoa que está olhando de fora diria: é óbvio que os outros grupos vão tomar conta desse mercado. Então você corre o risco de que essas forças hoje passem a ter a hegemonia de todo o comércio varejista de drogas.
Choque de ordem
É o requentamento do Tolerância Zero numa situação muito mais pobre, muito mais complicada do que na cidade de Nova Iorque. E na colônia a moda demora mais a chegar. Então o Tolerância Zero em NY já é uma coisa hiper criticada, o prefeito que está lá agora, que é de direita, já nem fala mais nisso. Mas aqui na colônia, aquilo passa, o paradigma da cidade intolerante, cujo ideal é a repressão contra os pequenos delitos. Em Nova Iorque ela também incidiu contra os pobres.
Privatização da polícia
Houve reformas na estrutura policial análogas aos processos de privatização: combate à pirataria, combate ao "gatonet", como se as delegacias fossem extensões dos serviços privatizados. Antigamente, quando eu trabalhava em planejamento urbano, no cálculo das tarifas estava implícito o custo para os pobres que eram negociados e cobrados pelas associações de moradores. Esses negócios foram privatizados. Aí aparece a delegacia de fraudes, é como se a polícia fosse uma divisão das operadoras privadas dos serviços públicos. Como você vai fazer na Europa, por exemplo, com o serviço de aquecimento? O pobre que não pode pagar vai morrer de frio, congelar? Não. Todo lugar que tem um mínimo de Estado Previdenciário, vai prever isso e vai garantir que ninguém vai morrer de frio. Você não pode dizer não a quem não tem como pagar.
A sociologia colaboracionista
E muitas vezes parte da esquerda embarcou no paradigma da segurança pública, graças aos sociólogos de plantão. Toda essa curriola da sociologia policialesca. Foram relativizando o confronto e incorporando a mentalidade policialesca. Teve toda uma articulação com esses sociólogos. O sociólogo é muito assim, gosta muito disso, se apresenta como uma terceira via. Tem a polícia má e a esquerda caótica, que seríamos nós, e no meio tem a terceira via: um sociólogo faz um projeto sem mudar o capitalismo, sem mudar a violência do desemprego, ele pode mudar e organizar uma boa polícia. Dá pra eles um bom dinheiro, consultoria, cursos para policiais e está tudo resolvido, como mágica.
Um dia eu ainda vou fazer um estudo, um mapa do Brasil, os lugares onde mais a polícia mata é onde está o que eu chamo de sociologia colaboracionista, sociologia da polícia: projetos, reformas, cursos e tal. Eu sou socióloga e falo à vontade, tenho vergonha da sociologia brasileira no momento. Tirando pouquíssimas exceções, é um discurso vergonhoso, liberal, funcionalista, acrítico, que não tem o menor conhecimento da pobreza, das resistências populares. Estão produzindo racionalizações que justificam dor, sofrimento… Basta você ver os autos de resistência. Eles trabalham para qualquer governo, é como se a questão criminal não fosse política. Como se pudesse haver uma saída técnica policial ou sociológica para se resolver a conflitividade social, para resolver os embates do Rio de Janeiro, com 500 anos de história. Então é choque de ordem, camelô como inimigo, flanelinha como inimigo, menino de rua como inimigo, vendedor do varejo como inimigo.
Onde é que a polícia mata mais no mundo? Pernambuco? Tem lá um grupo de sociólogos. No Rio de janeiro todos os sociólogos, tirando um ou dois, estão metidos na indústria do controle do crime: é livro, é filme, é série pra televisão, é peça de teatro. Nós na saída da ditadura tínhamos horror a um capitão Nascimento. Agora ele é um herói. Um policial limpo, com seus embates… Se você pegar uma dessas pessoas que estudaram a fundo a subjetividade do nazismo, de Reich a Bauman, é isso: o medo da dissolução moral, os discursos higiênicos, as metáforas biológicas, as bandas podres…
Por trás disso tudo não tem nada bonito. Tenebrosas transações. Essa prefeitura e esse governo do estado são só negócios privados. Não tem projeto público.