O novo governo tomou posse e ouvimos seus primeiros pronunciamentos oficiais. A atual cultura política, dominante não somente no Brasil — na qual seu processo eleitoral expressa, com especial particularidade, toda a podridão —, tem sua própria lógica. Parte dela, comumente, serve de base para a maioria das análises, apreciações e julgamentos da atividade política, como também para estabelecer a relação entre o que se chama de promessas de campanhas e a prática dos eleitos já investidos da autoridade estatal. Na verdade, o fenômeno, relação entre promessas de campanha e o que de fato se faz, não passa de mero exercício da demagogia política eleitoreira e já pertence ao folclore político da hipocrisia descaradamente estabelecida. Serve apenas, e nada mais, para atestar a desmoralização do processo político oficial do país. Revela seu caráter reacionário e farsante. Afinal, alguém disse certa vez que nunca se diz tanta mentira como antes de uma eleição, durante uma guerra e depois de uma pescaria. Esta observação, feita há muito tempo por um destacado burguês reacionário, jamais teve tamanha vigência e universalidade como nos nossos dias.
Portanto, deixemos de lado as falas dos “políticos” de antes das eleições. Tomemos suas palavras e seus atos a partir de sua condição de representantes oficiais dos poderes constituídos.
Passadas as festas de posse — em que o PT e demais partidos apoiadores festejaram seu triunfo eleitoral junto com militantes e uma massiva presença popular esperançosa por grandes mudanças — retornamos à dura realidade do país e de nosso povo. Não é reparação caprichosa registrar o desencontro fragrante entre a pompa, que a burguesia e as classes reacionárias dispensam à sua liturgia de poder e à participação popular entusiástica que a assiste de perto. Mas, não deixa de ser expressão da essência do que está se processando. Dragões da Independência assustados, cavalos que caem, inofensiva guarda de enfeite substituída pela verdadeira tropa de choque montada para proteger o empossado, Rolls-royce que enguiça tendo que ser empurrado por muitos braços, passagem de faixa que derruba óculos. Tudo isto deu à posse em Brasília um certo aspecto bufão. O ato político ganhou ares de patuscada.
O discurso de posse de Luís Inácio da Silva, em que os porta-vozes das classes dominantes destacaram como síntese da pregação de mudanças, mais que qualquer outro acontecimento, revelou o ecletismo ideológico do PT. Em sua posse, há oito anos, o senhor Cardoso centrou os mesmos temas: diminuir as desigualdades, combater a fome e a miséria, realizar a reforma agrária. Enfim, promover reformas estruturais. Ele deixou o governo afirmando (e consagrado pela mídia) ter realizado suas proposições, reformado, modernizado e tornado operacional a velha máquina do Estado. Síntese de uma grande mentira que é, revela o simples fato do novo presidente propor semelhantes metas.
Num certo contraste com as nomeações para a área econômica, particularmente, a de Henrique Meireles para o Banco Central, com a visita aos EUA para encontro com Bush e, de lá, anunciar os nomes dos ministros nas áreas que mais interessam à metrópole (área econômica e a relativa à Amazônia), o discurso de Luis Inácio centrou a questão social. De tudo que falou, seguramente, a questão agrária é a mais representativa do seu ecletismo. O presidente defendeu que no Brasil é plenamente realizável, lado a lado, o convívio de uma reforma agrária em terras ociosas, a pequena propriedade, as cooperativas, médias e grandes agroindústrias e o agro-negócio. Um programa que abrigaria gregos e troianos.
Também, quanto ao programa Fome Zero, eixo central e prioridade máxima definida e anunciada ao lado de um salário mínimo de morte (230 reais, daqui a quatro meses), não há contradição mais aparente. É a lógica do poder das classes dominantes no país e seu velho e podre Estado: combater a miséria com esmola e da forma que corresponde à época. Agora, será o cartão magnético que cadastrará os famintos, que se corporativizarão às massas pobres e lhes atarão ao Estado com a dependência e o temor.
Sobre a questão internacional, considerou a ALCA, com outras iniciativas, como Mercosul e União Européia, palco em que combaterá o protecionismo. Sancionou, assim, como questão resolvida, fato consumado, a participação do Brasil nesse acordo de subjugação nacional. Defendeu a solução negociada para os conflitos no Oriente Médio e a obediência das nações às resoluções do Conselho de Segurança da ONU, sem distinguir de forma alguma toda sorte de abusos e agressões à soberania por parte dos EUA, particularmente, no caso do Iraque e de Israel em relação à Palestina.
Concluiu, reafirmando, que criar empregos é sua obsessão. O que, aparentemente, parece contradizer sua advertência àqueles que provavelmente julga imprudentes e aventureiros, quando afirmou com mais solenidade ainda que “a mudança é um processo gradual e continuado, não um simples ato de vontade ou um simples arroubo voluntarista.” Ou, menos ainda, como poderíamos completar, com uma simples obsessão. Mas, não há contradição também aí. Criar empregos como obsessão não deixa claro se é a qualquer preço ou que raios de empregos podem ser estes. No entanto, é assustadora a palavra chave do acordo com o capital, com o pacto social proposto de desonerar a folha de pagamentos, sinônimo da flexibilização. Aquela que tem sido a pedra angular do tão amaldiçoado “neoliberalismo” que serviu ao PT de cavalo de batalha na oposição a FHC. Afirmar que só haverá empregos com a retomada do desenvolvimento econômico é mais claro, no entanto, fazer uma política econômica de transição para o desenvolvimento, segundo os ditames do FMI, ultrapassa qualquer concepção dualista.
Contudo, o fato mais ilustrativo, sem dúvidas, foi o discurso de posse do deputado José Dirceu, escalado para falar de improviso. Ou não seria assim? Parece que sim. Afinal, do ponto de vista político, nada seria mais importante para o governo, em termos de pronunciamentos, depois do presidente que o Ministro Chefe da Casa Civil. Nele o ex-presidente do PT afirmou que farão a “revolução social” no Brasil.
Toda a direita tradicional, seja ela a mais empedernida ou aquelas disfarçadas em vários tons de modernidade, através, principalmente, dos veículos de comunicação e difusão, cercam de todos os cuidados sua abordagem aos pronunciamentos e atos do governo. Mas, sem margem a dúvidas, apoiando-os. Só não vale para a Rede Globo de Televisão, é claro, pois, imaginamos que chega a ser constrangedor para o governo seu oficialismo barato.
Considerando apenas os fatos objetivos do momento, e sem considerações outras, só nos é possível afirmar que toda a proposição de mudanças não passará de retórica, ainda que se possa buscar e realizar algo que assim pareça e que somente o tempo cuidará de revelar. O fato irrefutável é a base material e, neste terreno está bem definido e claro, a economia política do governo é, não somente burguesa em geral, mas, burguesa imperialista. Sobre esta base não existe mudança possível que não vá além da retórica, que não seja apenas arremedo, como a “revolução social” prometida pelo Ministro Chefe da Casa Civil. Isto somente confirma o seu discurso como um expediente emblemático para aplacar os descontentes, acalmar divergências, ganhar tempo e acalentar as esperanças dos que pensam que pela via eleitoral do PT estão fazendo uma revolução no Brasil.
Estamos de acordo em duas questões com os discursos do novo governo. Uma é que de fato vivemos um acontecimento histórico. Concluiu-se todo um longo ciclo da luta de classes em nosso país. A outra, é que o Brasil necessita de uma revolução. Mas, somente a revolução pode transformar a brutal realidade brasileira, libertando a nação e o povo da opressão e miséria. E ela só será verdadeira se surgir dela o poder direto das massas exploradas e oprimidas, unidas aos pequenos e médios proprietários. Como algo novo, em oposição e no lugar das velhas e carcomidas instituições deste podre Estado de grandes burgueses e latifundiários, serviçais do imperialismo. Mas, isto é uma outra história.