Rádio Favela – BH: livre e popular

Rádio Favela – BH: livre e popular

Não aceitamos dinheiro de políticos e nem de grupos comerciais. Continuamos rádio pirata. Somos rádio do povo, independente.
Misael Avelino dos Santos

Do alto do morro, na favela Nossa Senhora de Fátima — uma entre mais de dez plantadas no bairro da Serra — em Belo Horizonte, Minas Gerais, ondas radiofônicas espalham informação, arte e entretenimentos de forma democrática e independente. Os responsáveis por isso são os próprios moradores numa das áreas mais pobres da capital mineira que, com uma simples antena e um precário transmissor, vêm construindo — há mais de 20 anos — a Rádio Favela. Um dos poucos veículos de comunicação do país totalmente sustentado e dirigido pelo povo.

Surgida no ano de 1980 da iniciativa de jovens moradores do Aglomerado Serra, a Rádio Favela nasceu para informar a localidade das suas reivindicações, combater o tráfico e consumo de drogas na região e servir como espaço aberto à população, potenciando a voz do povo para o mundo ouvir. Divulgando músicas do próprio morro e dos morros vizinhos, falando o idioma dos que vivem pelas suas próprias mãos, a Rádio Favela, desde as primeiras emissões, fez um estrondoso sucesso entre os moradores da favela.

"A programação da rádio é a extensão da conversa do povo na rua… é a amplificação do bate-papo", nos explica um de seus fundadores e seu atual diretor-presidente, Misael Avelino dos Santos, 42 anos. Um dos que, desde o início (ao lado de Derimar Vanderlei Teixeira, 39 anos) vem levando adiante a Rádio Favela, enfrentando problemas que vão da sustentação material da emissora até a repressão das polícias federal e militar de Minas Gerais, que por muitos anos tentaram, em vão, lacrar definitivamente o seu transmissor.

Resistir e transmitir!

O sistema de monopólio da radiodifusão vigente no país sempre foi o maior obstáculo às atividades da Rádio Favela, bem como a todas as iniciativas populares no campo da comunicação de massa. Para garantir seu controle sobre a situação, as grandes rádios comerciais e o Estado recorrem à truculência policial, que age com presteza quando acionadas contra o povo. E com a Favela FM não foi diferente. De 1980 para cá, foram inúmeras investidas policiais contra ela. Misael conta que a polícia chegava com violência, destruindo os equipamentos, espancando os moradores, prendendo as lideranças comunitárias e carregando a aparelhagem. Tudo isso porque, nessa época, a Favela FM atuava como rádio "pirata", ou rádio "livre", nos moldes das experiências desenvolvidas nas lutas de emancipação dos países europeus — principalmente França e Itália —, nas lutas do povo brasileiro contra a o gerenciamento militar, quando essas rádios eram espaço de resistência e mobilização política. Nesse sentido, tanto nestas épocas como hoje, a radiodifusão independente é uma atividade clandestina, arriscada, perigosa.

Segundo Misael, as coisas funcionavam assim: a repressão vinha, subia o morro atrás do pequeno transmissor, e eles escapavam como podiam para outro lugar. Dessa forma, o grupo de locutores da Favela FM peregrinava de morro em morro, de barraco em barraco, sempre com a programação no ar. Nessa estratégia tiveram o apoio de toda a comunidade, que também resistia criando obstáculos à ação dos policiais. Contudo, a rádio chegou a ficar algum tempo fechada, devido à destruição de seu equipamento ou a prisão de seus integrantes. Foram difíceis anos de ameaças, perseguições e truculências.

Porém, com uma persistência e determinação extraordinárias, além do crescente apoio popular, a Rádio Favela prosseguiu. O tempo passava e os órgãos de repressão e as grandes rádios de Minas Gerais tiveram de reconhecer que não era tão fácil destruir a emissora que o povo havia criado. Em meio a isso a audiência aumentava, para o desespero dos monopolistas da comunicação. Como a pressão da população de toda Belo Horizonte era forte, a resistência ferrenha e outras rádios como a Favela apareciam por todo o canto, o governo não teve escolha senão legalizar a Rádio Favela, dando-lhe a autorização oficial para funcionamento, de acordo com as Leis da Radiodifusão Brasileira. Isso se deu no ano 2000, e daí para cá a rádio passou a se chamar Rádio Educativa Favela, funcionando na Freqüência Modulada (FM).

O Estado, como não conseguia calar a Rádio Favela, tentou cooptá-la oferecendo-lhe status para tentar descaracterizá-la. Porém, essa estratégia não vingou. Apesar de invocar inúmeras leis para manter a mídia sob seu estreito controle (Lei da Radiodifusão, Lei de Imprensa, Lei Geral das Telecomunicações, Código Brasileiro de Telecomunicações, Código de Ética, Legislação Profissional, etc.) a Rádio Favela não foi "domesticada". " A concessão nada significa… Continuamos sendo rádio pirata", explica Misael. Se hoje a rádio é legal, isso só se deve à luta popular, que garantiu esta que foi a primeira e única concessão de canal de rádio dada pelo governo sem o comprometimento do Estado ou de empresários do ramo.

Compromisso com o povo

Na locução diária, nas várias entrevistas e palestras que fazem, os responsáveis pela rádio demonstram o profundo sentido político de seu trabalho à frente da Favela FM, e seu permanente compromisso com o povo pobre: "A Rádio Educativa Favela continua sendo ‘pirata', porque não fazemos o jogo comercial que muitas emissoras fazem. Não aceitamos dinheiro de políticos e nem de grupos comerciais. Somos rádio do povo. Independente", esclarece novamente Misael.

O respeito à vontade dos moradores da favela continua sendo uma das características da programação da emissora. "A programação é feita pelo povo, pela comunidade". Instalada numa casa modesta, construída e reformada pelos próprios moradores da região, num lugar alto em que se tem uma bela visão de quase toda capital mineira, hoje, a emissora possui alguns equipamentos modernos e a informatização dá suporte às suas atividades. Tudo conseguido através de esforço próprio e de doações de simpatizantes da rádio. O local das locuções é modesto. Poucos microfones, quadros com reportagens já publicadas na imprensa sobre a rádio, e o computador, onde estão arquivadas as músicas e vinhetas executadas diariamente na programação. Tudo condizente com o espírito da Favela FM: simples.

A programação é das mais democráticas. Todo o espaço é preenchido com informações úteis, temas educativos, política nacional e internacional e bastante música, principalmente os ritmos e sons populares. Há programas de tudo, desde a Arapuca Caipira, que traz a verdadeira música do interior, passando pelo Bolero do Lero-Lero — sucesso entre os mais velhos, onde só se toca boleros e tangos antigos — até programas de samba-de-raiz, rap e outros. Há locutores como Dona Mariquinha, 78 anos, senhora do samba, que atua como conselheira da comunidade e orienta os moradores sobre diversos aspectos do dia-a-dia, trazendo os problemas para o debate. Outro programa é A Voz do Vizinho, que divulga e promove artistas de gravadoras independentes. Com essa diversidade, a Favela FM, a qualquer horário, é sucesso de audiência. Segundo pesquisas oficiais, a terceira mais ouvida na Grande BH. Segundo o povo nas ruas, a primeira, inconteste. "É a primeira de Belô", orgulham-se os locutores da emissora.

Há ainda outro aspecto: qualquer pessoa, a qualquer horário, pode usar as ondas da emissora, sem nenhum tipo de barreira ou cobrança. Noticias, opiniões e denúncias são feitas ao vivo, dando espaço a questões que nunca teriam chance em outras emissoras. Manifestações, protestos, e até greves de trabalhadores são noticiadas no momento em que estão ocorrendo, bastando ligar para a rádio, pedir a divulgação e entrar no ar, ao vivo.

Essa forma de fazer rádio torna a programação viva, ágil e a mais próxima da realidade possível. Um dos grandes atrativos da Favela FM é que a cidade pulsa através de suas ondas, através da voz de radialistas do povo.

Independência acima de tudo

A Rádio Favela contou apenas, até hoje, com o apoio das massas pobres de BH para se manter, e é necessária uma luta constante para que as coisas assim permaneçam. O assédio de vigaristas políticos, oportunistas e especuladores no comércio é grande. Misael não esconde sua revolta: " Eles, aqui, não vão nos pagar para enganar o povo", referindo-se a uma certa chantagem feita com as rádios, que têm de divulgar mentiras para receber verbas. A independência com relação ao Estado e aos empresários é um principio.

Na campanha eleitoral de 2002, foram muitos os pedidos de apoio às candidaturas, mas, não tiveram espaço. Candidatos à Presidência da República visitaram os estúdios da emissora e só tiveram acesso aos microfones dentro da programação jornalística para informar aos ouvintes sobre as suas visitas. A Rádio Favela não mendiga verbas comerciais das entidades públicas e privadas, como as emissoras tradicionais, bem como a grande maioria das chamadas "rádios comunitárias", regulamentadas conforme a Lei n.º 9.612, de 19/02/98. É o próprio contingente de ouvintes e simpatizantes que sustenta sua programação, no ar 24 horas por dia. Não depender de ninguém significa garantir uma liberdade que nenhum dos meios oficiais de comunicação do país desfruta. Todas as notícias e comentários veiculados através da Rádio Favela levam sua marca. O jeito despojado, direto e, muitas vezes, incisivo com que os locutores denunciam as precárias condições de vida do povo, o descaso da Prefeitura, a violência da policia na favela, entre outras coisas, granjeia para a Favela FM o respeito de todos pela objetividade nos fatos relatados,uma qualidade jornalística só encontrada na imprensa de defesa do povo.

Reconhecimento, prêmios e cinema

Por todo o trabalho realizado pela Favela FM, em mais de 20 anos de existência, começaram a surgir a admiração e os prêmios com sincero reconhecimento, até mesmo de organismos internacionais. Tempos atrás, um prêmio da ONU (Organização das Nações Unidas) foi outorgado a Misael, Derimar e seus companheiros pelo trabalho contra a disseminação de drogas, a prostituição e a degradação que se abate sobre os jovens moradores do Aglomerado Serra, em BH. Depois, vieram homenagens em Minas e no Brasil inteiro. Por fim, o cineasta mineiro Helvécio Ratton resolveu levar às telas a história dos rapazes do morro que criaram uma rádio.

O filme Uma Onda no Ar, lançado nacionalmente no segundo semestre de 2002, conta de forma simples e direta as origens, dificuldades e lutas da Rádio Favela. Com atores iniciantes, pessoas próximas da vida dos moradores das favelas, que sabem das dificuldades das massas, a película de Ratton retratou bem o cotidiano de uma população empobrecida, mas que com organização, iniciativa e consciência política, pôde criar meios de lutar melhor pela sobrevivência. Merecidamente, um bom público compareceu aos cinemas e pôde conhecer um pouco desta história, parte das grandes realizações das massas de nosso país.

Numa sociedade de privilégios, onde uma minoria explora e oprime a esmagadora maioria da população, submetendo-a ao atraso e à ignorância, num País onde as injustiças se multiplicam, num panorama de imprensa e meios de comunicação nas mãos (quase que exclusivamente) dos que infelicitam a nação, lutas como a da Rádio Favela FM e de tantos outros grupos e movimentos sociais independentes e comprometidos com o povo devem ser respeitadam, secundadas.

Imbuídos de um sentimento de transformação da sociedade é que jovens do aglomerado Serra criaram uma rádio para informar, elevar a consciência política das massas e mobilizar a localidade em que vivem, dando pros-seguimento ao trabalho das rádios livres e populares.

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