Não obstante o vulto das remessas ilegais ligadas ao caso Banestado, bem maiores do que US$ 60 bilhões, as fugas de capital por meio das contas CC5 são pouco mais que um sintoma da corrupção sistêmica decorrente do modelo econômico sob comando externo, implantado a partir de 1954. Como é normal no modelo, as investigações têm sido boicotadas.
Levantamento da Cap Gemini Ernst e Merril Lynch apontou, em 2001, 90 mil brasileiros com patrimônio superior a US$ 1 milhão, grande parte com dezenas de milhões. Nas declarações de Imposto de Renda o estoque dos patrimônios no exterior em 2002 foi só US$ 12 bilhões. O Banco Mundial indicava para 1988 um estoque de US$ 67,5 bilhões, e seu critério é restritivo, pois inclui apenas a entrada oficial líquida no Brasil de capitais de não-residentes que exceda o déficit em conta corrente e o aumento das reservas internacionais. Não contam os depósitos feitos diretamente no exterior, entre outros: a) por importadores em favor de exportadores, referentes à diferença entre o preço efetivo e o declarado na operação; b) derivados de propinas nas transações lesivas ao país, como, por exemplo, nas privatizações.
Segundo Jean Ziegler, havia, em 1992, US$ 60 bilhões, de brasileiros, somente na Suíça. Supondo que isso fosse 40% do total, haveria US$ 150 bilhões naquele ano no exterior. Segundo a Polícia Federal (JB, 22/10/2000), de 1992 a 1998, saíram do país pelas contas CC5 US$ 124 bilhões. Portanto a fuga total terá sido bem maior que essa cifra. Estimando a posterior a 1998, conservadoramente, em US$ 80 bilhões, o estoque supera US$ 350 bilhões.
Esses dados impressionam, mas empalidecem diante das transferências das transnacionais e de uns poucos grandes grupos controlados por brasileiros. A saída “legal” de capitais suplanta em muito a fuga de capitais.
A maior parte das transações do comércio internacional se dá entre transnacionais; 1/3 entre a matriz e a subsidiária da mesma empresa e mais de 1/3 entre firmas distintas, as quais podem trocar favores. Isso significa que as matrizes determinam às subsidiárias transferir recursos, fixando elevados preços nas importações e preços baixos nas exportações de bens e de serviços, reais ou fictícios. Controlando o mercado interno, em oligopólio, as transnacionais impõem seus preços nele e transferem para o exterior os lucros reais. O custo dos insumos empregados na produção é baixíssimo: zero para o equipamento e para a tecnologia, já amortizados, vindos da matriz. Os salários são ínfimos, e a energia e outros insumos locais, baratos e subvencionados. Gozam, ainda, dos subsídios da política econômica telecomandada. Mas, por meio das transferências, não há lucro, nem imposto de renda a pagar. Dizem ser a poupança no Brasil 15% do produto interno bruto (PIB). Na realidade ela é 35% dele, porque não se contabilizam 20% remetidos ao exterior.
As transferências das transnacionais causam os déficits na balança de transações correntes e, assim, a vulnerabilidade externa do país e de sua moeda. Isso concorre para que grandes e médios empresários locais também tratem de remeter ao exterior grande parte dos recursos que poderiam estar investindo produtivamente no país, fosse outro o modelo econômico.
Uma parte substancial das transferências comandadas pelas matrizes das transnacionais vai para praças “offshore“, os refúgios fiscais. Por vezes, uma importação feita no Brasil ou na Argentina provém de uma holding no Caribe, onde é majorado o preço de produto fabricado nos EUA ou na Europa. As importações de insumos em países latino-americanos são encarecidas por sobre preços que passam, em alguns casos, de 1000%, sem contar fraudes, como enviar quantidade menor que a faturada. O sobre-preço nas importações, o subpreço nas exportações, mais os lucros declarados, royalties, comissões e outras despesas em favor da matriz compõem os lucros reais da transnacional. Dividindo-os pelo valor declarado do investimento, inclusive reinvestimentos, a ‘taxa de retorno’ ultrapassa, em geral, 100% ao ano.
Além da transfer-pricing no comércio de bens, há os seguintes mecanismos, que implicam despesa dedutível da receita das subsidiárias:
1juros a taxas superiores às internacionais nos empréstimos intercompanhia.
2 Assistência técnica, supérflua no quadro da dependência tecnológica, pois as atividades técnicas da subsidiária reduzem-se a seguir os manuais de operação e de manutenção das instalações importadas sob o esquema “turn-key”.
3 Tecnologia, jamais transferida.
4 Uso de marcas, e quase todas são estrangeiras.
5 Consultoria e auditoria, orientadas por interesses estrangeiros, como ocorre no processo de privatização. Quando os “serviços” são contratados localmente, o são a subsidiárias de ETNs (empresas transnacionais).
6 Transortes. A presença dominante das ETNs determina que eles se façam por transnacionais, situação agravada pela liquidação do Lloyd Brasileiro e outras linhas nacionais.
7 Seguros e resseguros. Negócios controlados por transnacionais, até para os seguros internos, com a abertura do setor financeiro, e ainda mais com a pressão sobre o Instituto de Resseguros do Brasil para sua privatização.
8 Operações de câmbio e financeiras. A ETN direciona suas transações para bancos estrangeiros em atividade no Brasil, associados ou com os quais têm relações especiais.
9 Leasing, i.e., aluguel de equipamentos, aeronaves, etc.
10 Despesas de comercialização. Com a extinção das tradings estatais, aumentou o domínio das estrangeiras.
11Comissões de agentes e outros intermediários no exterior.
12 Treinamento no exterior. As ETNs treinam no exterior quadros da subsidiária, cobrando cursos e alojamento com sobrepreços.
13 Remuneração de executivos e técnicos. É cada vez maior no país o número de executivos e técnicos alienígenas, no primeiro e em outros escalões, com os mais altos salários do mundo, em contraste com os pagos aos brasileiros.
14 Remessa oficial de lucros. A única que assume o nome e que não vai como despesa. Ela subiu para US$ 6,5 bilhões em 1997 e quase US$ 8 bilhões em 1998. Decresceu após a derrocada do real, tendo sido de US$ 4,8 bilhões em 1999 e US$ 4 bilhões em 2002.
Listamos dezesseis mecanismos de transferência:
1sobrepreço na importação;
2subpreço na exportação;
3 os catorze itens acima.
As transnacionais estão em melhores condições de fazer transferências do que as firmas nacionais, porque em geral:
1 sua dimensão supera a destas;
2 suas operações comerciais com o exterior representam proporção bem maior das vendas;
3 têm conexões diretas com o exterior. O predomínio das transnacionais (ETNs) explica, por conseguinte, os déficits externos. Nele reside também a causa dos déficits fiscais do setor público, já que este quase não tributa as transnacionais (que concentram mais de 60% do PIB), ademais de subsidiá-las. Ora, grande parte da dívida interna deriva dos déficits fiscais; seus juros consomem 70% da receitas públicas. Tudo isso implica a destruição da economia brasileira, cada vez mais onerada por juros impossíveis de ser quitados integralmente e, por isso, em parte capitalizados. Portanto, a dívida não pára de crescer, embora a conta de juros pagos também aumente sempre.
Déficits nas transações correntes com o exterior determinados pelos investimentos diretos estrangeiros (IDES), ocorrem também em países desenvolvidos. Mas, nesse caso, há duas mãos, isto é, todos “investem” em todos, havendo, via de regra, compensação. Os efeitos negativos para o país “receptor” são compensados pelos efeitos favoráveis aos “exportadores de capital”. Já no Brasil, por exemplo, o efeito líquido, além de negativo, é exponenciado, já que:
1 é eliminada a concorrência de produtores locais nos mercados dominados pelas ETNs;
2 a sociedade passa a ser controlada por essas empresas;
3 as taxas do lucro real tornam-se infinitas, pois o grosso dos “investimentos” vem da apropriação de recursos locais. Só na contabilidade a taxa não é muito grande, porque os reinvestimentos se somam ao capital original para servir de base ao cálculo do lucro.
O elevado déficit comercial dos EUA em relação ao Japão é consistente com a nossa análise. As transnacionais com matrizes no Japão mantêm importantes produções nos EUA, enquanto o mesmo não ocorre no Japão. Receber IDEs não é alternativa a importações custosas. Ao contrário, as estimula.
*Adriano Benayon, Doutor em Economia pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Autor de “Globalização versus Desenvolvimento” [email protected].