Nos dias 16 e 17 de dezembro de 2010, a reportagem de AND foi ao bairro do Recreio dos Bandeirantes, na zona Oeste do Rio de Janeiro e registrou o ataque ordenado pelo gerenciamento Eduardo Paes (PMDB) contra duas favelas. Vila Harmonia e Restinga foram atacadas por dezenas de agentes de repressão do velho Estado — PMs, policiais civis e guardas municipais — que expulsaram moradores de suas casas a força antes de derrubá-las.
Moradores se revoltam com demolição das casas na Vila Harmonia
Na manhã do dia 16 de dezembro, funcionários da prefeitura, com o apoio de dezenas de policiais civis e militares, foram à favela Vila Harmonia, no Recreio dos Bandeirantes — bairro litorâneo do Rio, vizinho à Barra da Tijuca — para demolir as casas de dezenas de famílias. A ação, segundo os moradores, foi marcada pela truculência dos agentes de repressão do velho Estado, que ameaçaram os que se recusaram a sair.
Segundo a prefeitura, no local onde a favela está há mais de 40 anos, será construído um trecho do corredor expresso de ônibus Trans-oeste, uma das exigências da Fifa e do Comitê Olímpico Internacional para a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Em troca de suas moradias, a prefeitura ofereceu aos moradores casas em um conjunto habitacional em Campo Grande, a 40 quilômetros do local, ou indenizações irrisórias, que em alguns casos não chegam a 1/5 do real valor dos imóveis.
Até crianças são ameaçadas
Acompanhados de assistentes sociais, com a costumeira e truculenta escolta, os agentes da prefeitura disseram que os trabalhadores que resistissem teriam seus filhos tomados pelo conselho tutelar. A reportagem de AND conversou com pais, mães e filhos que confirmaram as ameaças. Crianças disseram que funcionários da prefeitura bateram na porta das casas dizendo que se não abrissem seriam levadas para abrigos. Mesmo assim, nenhuma das crianças abriu a porta de casa; prova de que, na Vila Harmonia, desde cedo se aprende a identificar os inimigos do povo.
Nos tratores e dragas mobilizados para a ação, assim como nos uniformes dos operários, era possível ver um pequeno símbolo da construtora Odebrecht, uma das grandes patrocinadoras da campanha de Eduardo Paes para prefeito. Somente na última farsa eleitoral, a empresa investiu 5,9 milhões de reais em campanhas de políticos, a maioria deles aliados de Eduardo Paes. O investimento foi apenas uma parte dos 252,3 milhões gastos por empreiteiras e construtoras nas últimas eleições.
Entre os moradores que protestavam contra a ação, estava o técnico em informática Thiago da Costa Dieste, de 24 anos. Indignado, o rapaz disse que sua vida e a de sua família estavam sendo arruinadas pela ação covarde da prefeitura.
— O meu sentimento é de que tudo vai acabar. O lugar onde eu nasci, onde eu cresci, as árvores que eu plantei, vai tudo se acabar por conta da especulação imobiliária, que eles chamam de progresso. Fico revoltado quando vejo uma coisa dessas, porque são as pessoas que tinham que estar nos defendendo, que foram eleitas pelo povo, mas que estão agindo contra a gente, sem uma liminar, sem uma ordem judicial, sem nada que os ampare. Isso não podia estar acontecendo, mas o prefeito mandou. Se nós não fizermos nada, ele vai continuar fazendo isso com outras comunidades — disse o rapaz
Aparato de guerra
Outra moradora, Antônia Maciel, de 39 anos, disse que a ação da prefeitura começou cedo e que PMs e guardas municipais intimidaram os moradores com armas de choque, fuzis e metralhadoras. Ao lado da casa de dona Antônia, havia um muro pintado com os dizeres: “Podem acabar com a Vila Harmonia, mas não acabarão com o amor que sentimos por ela. Até o fim”.
— O pessoal da demolição chegou aqui logo cedo com mais de 50 policiais fortemente armados, com fuzis e metralhadoras. Guardas municipais com armas de choque e policiais civis também. Falaram pra gente: ‘Sai! Bota tudo pra fora, inclusive as crianças, porque a gente vai entrar’. Mas nós não aceitamos. Nós não somos animais para sermos tratados assim. Disseram que se nós não saíssemos da frente da draga eles passariam por cima da gente. Se o prefeito quer melhorar a vida do povo, porque não pega essas casas em Campo Grande e coloca esse monte de gente que vive na rua para ocupá-las. Mas não, quer nos expulsar da nossa comunidade. Enquanto o Eduardo Paes dorme tranquilo no travesseiro dele de penas de ganso, nós dormimos em travesseiros de pena de urubu. Nosso sonho está sendo destruído junto com essas casas — protesta a moradora.
Dona Antônia recebeu a reportagem de AND em sua casa com muita hospitalidade e disse que, desde julho, a prefeitura manda cartas ameaçando os moradores, distribui panfletos sem assinatura alguma com falsas promessas às famílias. Um desses panfletos, segundo os funcionários da prefeitura, era a notificação da ação de despejo na Vila Harmonia. Uma notificação em forma de panfleto, sem assinaturas, sem telefones, sem referências à prefeitura, ou qualquer elemento que comprovasse a legitimidade do suposto documento.
Revolta incontida
— Desde julho a prefeitura disse que iria nos tirar daqui sem os direitos que nós temos, sem nem ao menos nos dar um dinheiro que dê para comprar outra casa em outro lugar. A prefeitura diz que nós estamos em local público, que nós somos invasores, mas eu moro aqui há 23 anos e têm famílias na Vila Harmonia que estão aqui há 42 anos — protesta dona Antônia.
— Eu estou indignada, estou revoltada, porque eles não estão nos tratando como seres humanos, estão nos tratando como bichos. Quando eu vim morar aqui, não existia nada nessa região. Só tinha cobra, peixe e mosquito. Meu marido saía pra trabalhar e eu ficava trancada dentro de casa com medo das cobras. Hoje, depois de muita luta, muito suor, a gente tem a nossa casa, nossa família vivendo tranquila aqui e eles querem acabar com isso. Acabar com a paz de quem nasceu e cresceu aqui. Eu tenho seis filhos e três netos e foram todos criados aqui. E não sou só eu que estou sofrendo. Todos os moradores aqui da Vila Harmonia estão passando mal com o que está acontecendo — relata.
Por fim, Dona Antônia relatou à nossa equipe o drama de ser expulsa do lugar onde criou seus filhos e netos, em pleno fim de ano e sem direito a uma alternativa habitacional justa.
— A prefeitura também quer demolir a casa do meu filho. Eu trabalho aqui perto, meu marido e meu filho também, meus netos estão matriculados em escolas aqui perto e a única opção que a prefeitura nos deu foi uma casa em uma Cohab em Campo Grande. Nós estamos sendo tratados de maneira desumana. Se eu tivesse ido trabalhar hoje, eles tinham derrubado a casa do meu filho. Isso tudo está acabando com o nosso natal, está destruindo o nosso fim de ano, pois nós não sabemos nem se teremos um lugar para dormir. Que motivo nós teremos para comemorar? — pergunta.
Confira os vídeos exclusivos das covardes ações da prefeitura na zona Oeste do Rio de Janeiro, no Blog da Redação de AND.
Após Vila Harmonia, a Restinga
Remoção da pobreza para plano olímpico
Protesto contra a remoção da restinga, zona Oeste do Rio
No dia seguinte (17) foi revogada a liminar perpetrada em outubro pelo Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio, que protegia a favela vizinha à Vila Harmonia, conhecida como Restinga. Sem perder tempo, o gerenciamento Eduardo Paes ordenou novo ataque. Os agentes da prefeitura chegaram à favela às oito da manhã, novamente escoltados por PMs, policiais civis e guardas municipais. Uma repetição do que acontecera na Vila Harmonia no dia anterior.
Ao mesmo tempo em que operários demoliam as casas, cerca de 50 pessoas protestavam às margens da Avenida das Américas com o apoio dos moradores da favela vizinha.
A reportagem de AND passou o dia com os moradores, registrou seu protesto e a indignação dos que perderam suas casas, entre eles, o serralheiro Altair Montanha, de 47 anos. Muito nervoso, Altair disse que não foi notificado da operação e que foi arrastado para fora de casa por PMs fortemente armados.
— A prefeitura chegou aqui com a polícia, às seis da manhã, sem aviso prévio nem nada, meteram o pé na porta da minha serralheria, que estava fechada. A Polícia Militar já entrou na minha residência me ameaçando, me deram uma rasteira e me jogaram no chão. Quando eles entraram na minha casa, já entraram tirando todos os móveis e ameaçando me prender caso eu resistisse. Eu saí de casa, mas só saí à força. Fui arrastado para fora com uma gravata. Só não continuei resistindo para não ser preso e para garantir a integridade física da minha família. Eu sou um trabalhador de 47 anos e nunca passei por uma delegacia na minha vida, hoje não ia ser a primeira vez. Só restou em mim um sentimento de arraso, de impotência. Isso é uma covardia que eu nunca vi — compara Altair.
Uma moradora chegou a se acorrentar à uma pilastra de sua casa para impedir a demolição. Guardas municipais bloquearam o acesso à senhora que ficou horas sem poder receber água ou comida de seus familiares. Até mesmo a defensora pública Marília Farias foi impedida de conversar com a moradora para lhe dar alguma orientação ou entrar nas moradias que estavam sendo derrubadas.
— Não estão me deixando entrar para acompanhar a remoção dessas famílias. Eu estou anotando várias irregularidades, mas disseram que eu só posso entrar nas casas com ordem judicial. Eles fizeram uma barreira humana na minha frente para não me deixar passar, sendo que eu não preciso de ordem judicial nem para falar com um juiz — disse a defensora.
Depois de ser ameaçada pelos guardas municipais, a moradora decidiu largar as correntes e abandonar o local. Momentos depois, muito abatida, a senhora voltou a casa para recolher alguns de seus pertences. Outra moradora, Maria de Fátima, de 58 anos, também foi ameaçada pelos cães de guarda da prefeitura, mas por sorte, as dragas não tiveram tempo de chegar até sua casa.
— Eles foram à minha casa e disseram que iam demolir, sendo que eu não recebi nada, não me avisaram nada. Eu disse que só iam demolir comigo dentro. Essas casas que eles querem nos dar em Campo Grande não prestam, não servem de moradia nem para bicho. Aquilo ali é um galinheiro, não serve para nós. Aqui na Restinga, somos todos trabalhadores, ninguém é vagabundo para ser tratado dessa maneira. Eles não podem fazer o que estão fazendo ali na casa da Andréia, porque ela é uma mulher muito trabalhadora, uma pessoa honesta, ela e o senhor Altair. Não é assim que as coisas têm que ser feitas. Chegam de manhã arrombando porta, com trator, dizendo que vão demolir. Um absurdo — diz a trabalhadora.