Após a chegada da Força Nacional, os moradores passaram a viver em Estado de exceção
No início de janeiro, a reportagem de AND foi ao morro Santo Amaro, na zona Sul do Rio de Janeiro, para apurar uma denúncia veiculada nas redes sociais da Internet de que a Força Nacional de Segurança estaria impondo toques de recolher à população da favela. Os militares ocuparam o Santo Amaro em maio do ano passado com o suposto objetivo de combater o consumo e a venda de crack na região. Contudo, a medida do gerenciamento Dilma se estendeu por oito meses, transformando-se em uma extensão das UPPs — as Unidades de Polícia Pacificadora.
Localizado nas encostas dos morros Nova Sintra e Santa Tereza, o Santo Amaro é dono de uma das mais belas paisagens da cidade. A favela é a única no bairro do Catete, um dos mais tradicionais do Rio de Janeiro e que, um dia, já abrigou a sede do governo federal no conhecido Palácio do Catete. Em maio do ano passado, a favela foi ocupada pela Força Nacional depois de um convênio firmado entre o gerenciamento Cabral, o Ministério da Justiça e as secretarias Nacional de Políticas sobre Drogas e de Segurança Pública. A Força Nacional de Segurança é integrada por militares de todo o Brasil e é considerada a seleção dos melhores policiais do país.
O convênio previa a intervenção militar somente para o combate ao crack e, inclusive, a criação de um centro de reabilitação para dependentes químicos no local. No entanto, meses depois, nada foi feito. Dependentes de crack e traficantes varejistas fugiram para outras localidades e milhares de trabalhadores continuaram no morro vivendo suas vidas, agora, com a presença ostensiva da Força Nacional, que segundo denúncias, estaria impondo um regime de exceção à população da favela. Acompanhada de um representante da associação de moradores, nossa equipe visitou dezenas de bares, onde comerciantes acusaram militares de, todas as noites, levarem a cabo toques de recolher.
Dona Sônia é uma das mais antigas “birosqueiras” do Santo Amaro, profissão herdada da mãe há 30 anos. Única entrevistada que fez questão de se identificar, ela contou à reportagem de AND como tem sido a sua rotina depois que a Força Nacional passou a impor os toques de recolher.
— Eles estão mandando fechar 22h todos os dias, e sábados, 1h. Está todo mundo reclamando, porque nós não estamos acostumados com isso. Eles estão aqui há oito meses só. A gente estava com o bar aberto no último sábado e, quando deu 0:30h, eles mandaram fechar. Pode isso? Sábado? Nós não estamos tirando nada de ninguém. Os mais prejudicados com tudo isso são aqueles que trabalham em comércio, restaurantes que fecham muito tarde. A hora que eles têm para dar uma relaxada, tomar uma cervejinha, jogar uma sinuca, bater um papo com o vizinho, é justamente a hora que nós temos que fechar. Sem contar que nós não usamos som alto. A maioria dos birosqueiros deixa o som ambiente. Eu mesma só ouço Roberto Carlos, uma musiquinha suave — conta Dona Sônia.
— Outro dia tinha vinte pessoas aqui no meu bar. Eles chegaram já gritando: “pode fechar tudo. Paga a conta e vai todo mundo para casa”. Eu falei: “Isso é hora de fechar, meu amigo?”. Isso era 1h da manhã. Ainda teve um rapaz que falou “Mas eu acabei de chegar do serviço e já vai fechar?”. Esse sujeito ainda ganhou um desaforo do soldado. Se a gente não fechar, apanha. Eles chegam aqui e mandam você fechar. Eles dizem que podem impor essa regra porque nós aqui no morro não temos alvará de funcionamento. Quem é que tem alvará na favela? Para ter alvará, tem que ter a escritura do imóvel e, nas favelas, as pessoas só têm declaração de posse. Aqui, eles usam isso para fazer essa ditadura — conta outro comerciante.
A equipe de reportagem registrou as denúncias da população. Assista ao vídeo no blog de AND
Além dos toques de recolher, segundo alguns moradores, as ordens da Força Nacional para interromper festas particulares acontecem a qualquer hora do dia. Além disso, bailes funk estariam proibidos desde a chegada da polícia ao morro Santo Amaro.
— Eu estava em casa comemorando o meu aniversário, quando, às 16h, a polícia veio aqui e mandou desligar o som. Sendo que o nosso direito é até 22h. Depois, umas 21h, eu saí de casa para tomar uma cerveja no bar e comemorar com meus amigos, mas a dona da birosca disse que a polícia mandou fechar. Baile não pode acontecer, porque eles dizem que nós não temos uma quadra e que, se rolar baile, vai ter tráfico, consumo de drogas. Não é porque a pessoa mora no morro que ela é marginal. Aqui, a maioria de nós somos trabalhadores — protesta um jovem morador, que também denunciou agressões e humilhações contra a população do Santo Amaro.
— Têm vezes em que você está brincando com os amigos, falando um pouco mais alto, e eles [policiais da Força Nacional] já chegam mandando encostar na parede, já vêm te agredindo, chutando as suas pernas, gritando com você. A gente fica na rua porque somos trabalhadores, não devemos nada à justiça. Nunca achei que fosse passar por situações constrangedoras como essas na porta da minha casa — lamenta.
Dois moradores que conversaram com nossa reportagem contaram os momentos de terror que viveram durante uma revista policial em um dos acessos ao Santo Amaro. As vítimas teriam passado por horas de humilhações, agressões e ameaças e ainda teriam sido presas arbitrariamente.
— Eles jogaram o meu amigo no chão, jogaram spray de pimenta na cara dele, um deles me chutou. E ainda disseram na frente da minha mãe que iam fazer da minha vida um inferno se eu contasse o que eles estavam fazendo. Me levaram para a delegacia e disseram para o delegado que eu era traficante. Eu achei que eles fossem uns caras legais, mas pelo visto são bandidos também. E quando chega na frente do delegado, eles fazem papel de bonzinhos — conta um dos jovens.
— Quando eu levantei, ele [policial da Força Nacional] pediu para eu entrelaçar os dedos e apertou minhas mãos. Doeu muito. Depois, ele me pegou e disse que ia me jogar da laje. Eu comecei a gritar para ele não me jogar e isso começou a chamar a atenção de quem passava pela rua. Ele disse que eu o estava desacatando e que ia me levar preso. Depois me algemou, jogou no chão e mandou que eu me esfregasse no cocô do cachorro. Foi a maior humilhação da minha vida. Depois ele disse: “agora você vai ver a violência de verdade”. Me colocaram na viatura e, no caminho pra delegacia, eles continuaram me agredindo. Chegou uma hora que eu não estava enchergando mais nada. Só sentia eles me chutando e pisando na minha perna — conta outra vítima, aparentemente abatida pela sessão de tortura sofrida no dia anterior à entrevista.
As denúncias eram intermináveis, assim como as lamentações pela dura vida de quem mora em favelas e bairros pobres militarizados pelo Estado reacionário.
— Disseram que eles vieram aqui para trazer a paz, mas eles só estão plantando a discórdia. Você está ouvindo o povo falar. Todos nós sempre fomos muito felizes vivendo aqui, mas agora estamos tristes porque perdemos o nosso direito de ir e vir. Eu não posso ter um momento de lazer no bar, nem na minha casa, porque mesmo respeitando o direito do meu vizinho, eu sou proibido — reclama outro morador.
— Nós, comerciantes, vamos fazer o quê? Vender tudo que temos e virar bandido, só se for. Porque para ficar aqui proibido de ganhar o pão de cada dia, vendo seus filhos passando fome, melhor ir embora. Estou falando sério. Eu vou embora. E nós temos que passar por isso tudo de boca fechada porque ninguém deixa você falar. Eu não sou mudo. Você só tem deveres aqui. Não tem direitos — diz um comerciante.