Novembro é um mês cheio de acontecimentos históricos e personagens inesquecíveis. Entre eles, a revolta contra a chibata, castigo aplicado até o início do século 20 na marinha brasileira, a Guerra de Canudos e a Revolução Praieira. Há também que render homenagens a três heróis brasileiros na resistência ao gerenciamento militar (1964 – 1985) que implantou o semicolonialismo ianque em nosso país e que, de forma sofisticada, perdura até hoje.
Madrugada de 22 para 23 de novembro de 1910. Eclode um motim em um navio de guerra ancorado na Baía de Guanabara. Pouco mais tarde, às sete horas do dia 23, a cidade do Rio de Janeiro estava sob mira dos encouraçados São Paulo e Minas Gerais. As tripulações desses barcos tinham se sublevado, eliminado o comandante Batista das Neves e prendido os oficiais.
Naqueles anos conturbados da Primeira República, os rebeldes marinheiros não estavam disputando o poder: tinham apenas chegado ao limite da tolerância dos maus tratos comuns na Armada, especialmente a aplicação do chicote como punição para marinheiros considerados faltosos.
Comandados por João Cândido, os sublevados exigiam o fim dos castigos corporais e, como o restante da massa trabalhadora explorada nas fábricas, reivindicavam o aumento dos salários e redução da jornada de trabalho. Advertiam que, se não fossem atendidos, bombardeariam aparatos do governo na então capital da República.
Para reprimir o movimento, a Marinha atacou os rebeldes com dois navios menores. Os revoltosos responderam, inclusive com bombardeio à Ilha das Cobras. O governo, em desvantagem, fingindo atender as reivindicações dos sublevados, incluiu uma declaração de arrependimento no acordo e a deposição das armas. Os revoltosos foram presos na Ilha das Cobras e submetidos aos mais terríveis tormentos físicos e psicológicos.
Porém, um novo levante ocorreria na prisão, em dezembro. O governo chefiado por Hermes da Fonseca reprimiu a insurreição com toda violência, como de costume. Muitos dos líderes foram assassinados sob tortura. O principal deles, João Candido, conhecido como “Almirante Negro”, acabou sendo absolvido em 1912, em razão das pressões populares.
A seguir, reproduzimos um depoimento de João Cândido ao jornalista Edmar Morel sobre os acontecimentos da Revolta da Chibata1:
Pensamos no dia 15 de novembro. Acontece que caiu forte temporal sobre a parada militar e o desfile naval. A marujada ficou cansada e muitos rapazes tiveram permissão para ir à terra. Ficou combinado, então, que a revolta seria entre 24 e 25. Mas o castigo de 250 chibatadas no Marcelino Rodrigues precipitou tudo. O Comitê Geral resolveu, por unanimidade, deflagrar o movimento no dia 22. O sinal seria a chamada da corneta das 22 horas. O Minas Gerais, por ser muito grande, tinha todos os toques de comando repetidos na proa e popa. Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate. Cada um assumiu o seu posto e os oficiais de há muito já estavam presos em seus camarotes. Não houve afobação. Cada canhão ficou guarnecido por cinco marujos, com ordem de atirar para matar todo aquele que tentasse impedir o levante. Às 22h50m, quando cessou a luta no convés, mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os navios comprometidos. Quem primeiro respondeu foi o São Paulo, seguido do Bahia. O Deodoro, a princípio, ficou mudo. Ordenei que todos os holofotes iluminassem o Arsenal da Marinha, as praias e as fortalezas. Expedi um rádio para o Catete, informando que a Esquadra estava levantada para acabar com os castigos corporais.
Em seu livro, A Revolta da Chibata, Morel também reproduz o ultimato enviado pelos rebeldes a Hermes da Fonseca (respeitada a grafia original):
Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá, e até então não nos chegou, rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo. Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os oficiais, os quais tem sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Excia. faça aos Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira; bem assim como: retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir a Nação Brasileira. Reformar o Código Imoral e Vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; aumentar o nosso soldo pelos últimos planos do ilustre Senador José Carlos de Carvalho, educar os marinheiros que não têm competência para vestir a orgulhosa farda, mandar pôr em vigor a tabela de serviço diário que a acompanha. Tem V. Excia o prazo de doze (12) horas, para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a pátria aniquilada. Bordo do Encouraçado São Paulo em 22 de novembro de 1910. Nota: não poderá ser interrompida a ida e a volta do mensageiro. [assinado] Marinheiros.
1 Retirado de www.projetomemoria.art. br/ RuiBarbosa/ glossario/r/revolta-chibata.htm
Heróis de novembro, entre tantos
Antônio dos Três Reis Oliveira nasceu em Tiros, Minas Gerais, em 19 de novembro de 1946. Estudou economia na Faculdade de Apucarana (PR). Engajou-se nas lutas estudantis e na defesa da democracia, solidarizando-se com a causa operária. Foi indiciado por sua participação no XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP). Desapareceu em 10 de maio de 1970, em São Paulo, quando tinha 23 anos. Em documento de março de 1976, presos políticos denunciaram que Antônio fora metralhado, junto com outros companheiros, em sua residência em Tatuapé, São Paulo, por agentes da organização terrorista ligada ao CIA, Operação Bandeirantes (OBAN). Antônio foi enterrado como indigente em São Paulo, no dia 21 de maio de 1970. Em dezembro de 1991, técnicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tentaram a exumação de restos mortais que supostamente seriam de Antônio. No entanto, a quadra onde deveria estar enterrado sofrera profundas alterações. Coveiros disseram, na ocasião, que “as ossadas foram jogadas em algum canto do cemitério”. Apenas com a abertura dos arquivos do DOPS/PR foram encontrados dados reais sobre sua morte e sobre o local onde ele fora enterrado.
Mineiro de Coromandel, José Flávio Rodrigues Pereira nasceu em 23 de novembro de 1947. Mudou-se jovem para Belo Horizonte, onde fez o Ensino Médio. Em 1965, foi eleito presidente do Grêmio Estudantil do Colégio Técnico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Aprovado na escola de Medicina da UFMG, em 1966, teve como companheiros Ângelo Pezzuti, Jorge Nahas, Zezé e Dodora: todos unidos na luta contra o gerenciamento militar. Convicto de que a única maneira de transformação social viria pela guerrilha revolucionária, ingressou na organização Política Operária (Polop). Em 1969, integrou-se ao Comando de Libertação Nacional (Colina). No mesmo ano, foi para a clandestinidade. Morreu em 28 de julho de 1987.
João Lucas Alves nasceu em Canhotinho, Pernambuco, em 2 de novembro de 1935. Estudou na Escola de Especialistas da Aeronáutica, em Guaratinguetá (SP), onde se formou Terceiro Sargento. Foi preso e expulso da Força Aérea Brasileira (FAB), em 1964, pelo Ato Institucional 1 (AI-1). Posto em liberdade em seguida, foi novamente detido no Rio de Janeiro em novembro de 1968, denunciado como militante do Comando de Libertação Nacional (Colina) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Transferido para Minas Gerais, João Lucas foi covardemente torturado. Ele teve vários ossos quebrados, os olhos vazados, além de ter sofrido diversas queimaduras pelo corpo. Em nota oficial sobre sua morte, dizia-se que João cometera “suicídio” nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de Belo Horizonte. Contudo, o laudo cadavérico requerido pelo advogado Modesto da Silveira revelou a farsa: o corpo apresentava sinais de unhas arrancadas, além escoriações e esquimoses diversas.
Canudos enfrenta oligarquia agrária
Em 19 de novembro de 1896, chegou à Bahia a primeira das quatro expedições militares contra o movimento camponês de Canudos. As tropas do governo, a despeito da recepção pacífica do povo, abriram fogo contra os seguidores de Antônio Conselheiro. A resistência camponesa infligiria, entretanto, uma série de vergonhosas derrotas ao governo republicano ao longo de quase um ano. Mais de 10 mil soldados foram mobilizados. Estima-se que morreram mais de 25 mil pessoas.
O movimento liderado por Antônio Conselheiro, na verdade, refletia o repúdio a numerosos aspectos da realidade da época: a exploração latifundiária, a truculência do governo republicano frente aos movimentos sociais e a força inesperada (para as elites) da mobilização popular. De mero profeta sem importância, Conselheiro se transformou num mortal inimigo da oligarquia latifundiária. Ele havia irritado as bases do regime: a Igreja, que reprovava sua quebra de hierarquia, e os novos donos do poder (os republicanos), que pretextavam em qualquer gesto de oposição um desejo de restauração monarquista.
Antônio Conselheiro e seus seguidores fundaram, numa fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris, o Arraial de Canudos, uma sociedade independente dentro do Estado. Milhares de camponeses abandonaram os latifúndios, a miséria e a fome, rumando para Canudos — gesto imperdoável para os coronéis do sertão. O presidente Prudente de Moraes garantia que "Em Canudos não ficará pedra sobre pedra", mas o Exército só conseguiu exterminar os últimos sublevados em outubro de 1897, para alegria da elite genocida.
Idéias socialistas em Pernambuco
Em 7 de novembro de 1848, teve início em Pernambuco a Revolução Praieira, sufocada pelo governo imperial em 4 de abril de 1849. A disputa política entre conservadores e liberais seria a causa mais evidente do movimento. Entretanto, um forte teor social marcou os conflitos, porque Pernambuco (assim como todo o Nordeste) mostrava profundas desigualdades entre a oligarquia rural exploradora e a massa da população miserável.
O estopim para a revolta foi a indicação de um conservador, Herculano Ferreira Pena, para governar a província. Os dissidentes liberais do chamado “Partido da Praia” (nome da rua onde ficava sua sede) fizeram de Olinda a primeira cidade a pegar em armas.
Outro ponto de destaque é a influência de idéias socialistas (pelo menos em sua vertente “utópica”) e da Revolução de Fevereiro, na França. Muitos jornalistas da época (os jornais foram um campo de batalha ideológica acirrada) já denunciavam as mazelas do povo pernambucano e identificavam na propriedade privada dos latifundiários a fonte dos males sociais.
Como em outras revoltas, uma violenta repressão foi implementada pelo governo imperial. A resistência de Pedro Ivo, um dos comandantes revolucionários, não bastou para deter a derrocada. Vários praieiros foram presos, cumprindo pena até a anistia de 1851.