Na madrugada do dia 12 para o dia 13 de novembro, 3,2 mil homens das polícias Civil e Militar, além de fuzileiros navais subiram os morros da Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu, abrindo caminho para a 19ª Unidade de Polícia Pacificadora. A bordo de 18 veículos da marinha e sete caveirões da PM, os militares contaram ainda com a ajuda de 160 policiais federais e 46 homens da Polícia Rodoviária Federal. Durante a ocupação, que lembrou as paradas militares do exército reacionário, os agentes de repressão do velho Estado revistaram imóveis e moradores. Enquanto isso, o monopólio dos meios de comunicação ocupava-se com a publicidade da futura UPP, tecendo elogios mil à militarização e insinuando que a paz chegara à Rocinha. Paz ou medo? Eis a questão.
No dia 10 de novembro, a reportagem de AND subiu o morro do Vidigal para fazer um balanço do clima no Complexo da Rocinha às vésperas da ocupação pelas tropas do Estado reacionário. Na ocasião, nossa reportagem percorreu as vielas da favela e conversou com moradores. Todos diziam que os traficantes varejistas que dominavam a região já haviam fugido e o clima era de aparente tranquilidade. Mesmo assim, o circo da guerra aos pobres montado pelos gerenciamentos de turno não foi cancelado. Uma legítima parada militar para inglês ver.
As três favelas do Complexo da Rocinha têm quase 200 mil habitantes e ocupam as bases do morro Dois Irmão e do Maciço da Tijuca. As favelas dividem espaço com a Gávea, São Conrado e Leblon, esse último bairro detentor do título do metro quadrado mais caro do Brasil.
Quatro dias antes da invasão ao complexo, os chefes do tráfico na Rocinha e Complexo de São Carlos, conhecidos como Nem e Coelho, respectivamente, foram presos pela polícia e exibidos como troféus pelos gerentes de turno. Ambos os traficantes estavam sendo escoltados por policiais militares e civis quando tentavam fugir da Rocinha.
História mal contada
Quando foi preso tentando escapar da favela no porta-malas de um carro de luxo, o traficante Nem estava de posse de 200 mil reais e acompanhado dos advogados André Luis Soares Cruz, que disse ser cônsul honorário do Congo; Demostenes Armando Dantas Cruz, que afirmou ser funcionário do consulado; e Luiz Carlos Cavalcanti Azenha. Muito influentes, os dois últimos citados são grandes aliados políticos de outro advogado, Jovenal da Silva Alcântara, assessor especial do gerente estadual Sérgio Cabral Filho. Como se não fosse o bastante, um delegado da Polícia Civil abordou o comboio da PM que conduzia o carro para a sede da Polícia Federal e também tentou liberar o veículo.
Estranhamente, nos dias seguintes, a cúpula da Polícia Civil se pronunciou em favor do delegado e dos advogados que estavam com Nem no carro. A versão dada pelo gerenciamento Cabral foi de que eles negociavam a rendição de Nem, o que aconteceria depois que o carro deixasse a favela. Resta saber porque um bandido levaria 200 mil reais para sua rendição, dinheiro esse oferecido pelos advogados que acompanhavam o traficante aos PMs que escoltavam o veículo. À Polícia Federal, o traficante disse repetidas vezes que não pretendia se entregar, mas o secretário de segurança, estranhamente, diz o contrário.
Para inglês ver
Três dias depois, às 2h da madrugada, tanques blindados subiam as favelas do Vidigal, Rocinha e Chácara do Céu, esmagando carros de moradores como latas de sardinha e abrindo enormes crateras nas ruas. Atrás dos blindados, 3,2 mil policiais revistavam moradores e suas casas. Aqueles que não estavam em casa tiveram suas portas arrombadas pelos policiais, como de praxe.
Dias antes, o comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope), coronel René Alonso, chegou a se reunir publicamente com moradores para pedir-lhes paciência, referindo-se às revistas em residências sem mandado judicial. Na companhia do vice-governador, Luiz Fernando Pezão, o coronel disse ainda que aqueles que se recusassem a abrir suas casas seriam reprimidos com violência. Um claro sinal de que, diferente do que disse o monopólio da imprensa, o Bope não veio para pedir e sim para mandar.
Na TV, Sérgio Cabral, o secretário de segurança, José Mariano Beltrame, e a chefe da Polícia Civil, Marta Rocha, falaram uma, duas, inúmeras vezes, que agora uma nova era seria inaugurada no Complexo da Rocinha. Que agora, o ‘poder público’ subiria o morro. Que agora, o trânsito seria organizado, o lixo recolhido e o sistema de iluminação revitalizado. No entanto, os moradores sabem que o abandono continuará — falta de escolas, creches, hospitais, saneamento, emprego, etc —, agora incrementado com a opressão policial em tempo integral. É o que disse o presidente da associação de moradores do Vidigal, Wanderlei Ferreira, em um breve bate-papo com nossa reportagem.
— O governador está falando para a classe média que vai compensar os 40 anos de abandono do poder público aqui, em apenas dois meses. É mentira. Porque nós não queremos só obras de maquiagem. Colocar lâmpadas novas, varrer o lixo e recapear as ruas é mole. Nós queremos escolas, pois as nossas não têm professores o suficiente, nós queremos que acabem com o esgoto a céu aberto, nós queremos postos de saúde sem falta de remédios e profissionais. O Estado não vai nos dar isso, nem em dois meses, nem em dez anos, porque os moradores sabem que eles não têm esse interesse. A verdade é que todos estão com medo da polícia. Nós sabemos como a PM age na favela. Todos sabem — diz o líder comunitário.
A discreta expulsão
Ele também afirma que, após o início da militarização, o preço dos imóveis no Complexo da Rocinha subiu muito e que os moradores antigos estão sendo substituídos por pessoas de classe média, turistas de outros países e outros estados e empresários do setor imobiliário.
— A luta da associação, há mais de 40 anos, sempre foi contra a especulação imobiliária. Nosso medo sempre foi do asfalto subir o morro e expulsar o morador. O vice-governador disse que, até o final do ano, vai distribuir 5 mil títulos de propriedade provisória. Aqui nós temos 50 mil moradias. E as outras 45 mil? Vários gringos, paulistas, mineiros estão comprando casa aqui. Eles não pagam taxas e o preço do imóvel, na maioria dos casos, é irrisório. E o morador já está começando a sair. O pessoal que está em área de risco, o governo disse que vai colocar naquelas casas do programa ‘Minha Casa, Minha Vida’, lá em Campo Grande. Uns apartamentos que parecem caixas de fósforo: tá ali, bonitinha, até chover. Quando chove, o troço desmancha. O morador não quer isso. Nem que fosse uma boa casa, ele não quer ir para Campo Grande — queixa-se.
Segundo uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, um dia após a entrada da polícia no Complexo da Rocinha, os preços dos imóveis tiveram um aumento de até 15 mil reis. Ainda segundo a pesquisa, os aluguéis nas favelas militarizadas tiveram uma valorização média de 6,8% superior à do ‘asfalto’. De acordo com os dados, antes das UPPs, os aluguéis nessas favelas eram 25% mais baixos.
Registros de abusos
Dias depois que nossos colaboradores conversaram com Wanderley, os primeiros abusos de PMs contra moradores já começavam a ser registrados. Um morador que preferiu não se identificar teve sua casa invadida por policiais do Bope que reviraram o imóvel e furtaram fotos íntimas dele com a esposa.
— Eu cheguei em casa, abri a porta e estava tudo revirado. Todas as roupas dos armários jogadas no chão. As gavetas quebradas, papéis espalhados, uma bagunça. Quando olhei as coisas pra ver se algo tinha sumido, dei falta de umas fotos da minha mulher. Porque eles levaram isso? Vão falar o quê? Que eu sou bandido e minha mulher é vagabunda? Morando em uma quitinete e trabalhando em loja de roupas? Isso é um absurdo. Na delegacia, os policiais não quiseram registrar ocorrência. Disseram que eu ia ter que esperar três horas. Eles tratam a gente que nem lixo — contou o homem, que é operário da construção civil.
A vizinha dele, que testemunhou a invasão, ficou quase uma hora detida sofrendo tortura psicológica dos policiais.
— Eles diziam ‘Cadê a droga? Cadê as armas? Qual é o cargo do seu vizinho no tráfico?’. Eu falei que eles estavam no lugar errado. Que ali todos éramos trabalhadores, mas não adiantou. Eu precisava ir trabalhar e eles não deixavam. Ficaram vários homens de preto, com os fuzis na minha cara e me tratando como se eu fosse bandida. Por essas e outras, que a gente que mora em favela não gosta de polícia. Pode perguntar. Quem aqui nunca sofreu um abuso da polícia? Todo mundo. Mas para eles, se você é contra a polícia, você é fechado com o tráfico — diz.
Próximo alvo: Complexo da Maré
O próximo alvo da militarização no Rio de Janeiro, como anunciou o secretário de segurança, José Mariano Beltrame, será o Complexo da Maré, nos bairros de Ramos, Bonsucesso e Manguinhos. O conjunto de 15 favelas, assim como a Rocinha e o Complexo do Alemão, está entre os maiores bairros pobres do Brasil.
No dia 22 de novembro, policiais civis cercaram as localidades Nova Holanda e Parque União, ambas no Complexo da Maré, e começaram a atirar a esmo para o interior das favelas. Na correria dos moradores em plena luz do dia, o comerciante Altair Bento de Oliveira, 46 anos, foi baleado nas costas e morreu no local. De acordo com a população, policiais impediram parentes do trabalhador de levá-lo ao hospital e ameaçaram as testemunhas do assassinato.
— Foi tudo muito rápido. Logo depois do barulho, ele caiu. Nós estamos revoltados. Perder um parente querido desta forma, aos 46 anos, nascido e criado ali. Estão dizendo que um criminoso atirou, mas não tinha mais bandido na rua. O Bope ficou fazendo operações lá por quase um mês e você não via nem boca de fumo — disse um dos primos de Altair.
— A minha filha de 11 anos ligou pedindo para eu ir para casa. Eu pedi para falar com o pai dela e ela só dizia para eu ir para casa. Minha patroa pegou o telefone e falou com a minha filha, que contou o que havia acontecido. Ela me perguntou: ‘mãe, o que vai ser da nossa vida agora?’ — disse a esposa da vítima, Clesiane Silva Ferreira.