Se eu fosse o chefe Juscelino,
mandava botar na praça principal de Brasília
o trovãoíssimo nome de “Praça Antonio Conselheiro”
No ano de 2006 comemoram-se três efemérides da maior importância para a literatura brasileira: em 1946 foi editada Sagarana, a obra de estréia de João Guimarães Rosa. Dez anos depois, o escritor mineiro publicou suas duas obras maiores: o conjunto de novelas intitulado Corpo de Baile e seu único romance, Grande Sertão: Veredas.
A epígrafe, extraída de uma carta de Guimarães Rosa a Paulo Dantas e reproduzida no memorial Sagarana Emotiva, reflete bem o espírito norteador da relação de João Guimarães Rosa com seu país. Para ele, nada de praças General X ou Duque Y, melhor mesmo seria o trovãoíssimo nome de Antonio Conselheiro, o chefe da revolta de Canudos, símbolo da luta sertaneja.
O mais importante nessa afirmação de Rosa é que Antonio Conselheiro tinha, e ainda tem, em certos círculos, uma imagem de bandido comum e não, como deve ser, de autêntico representante das justas aspirações de nosso povo, dos sertanejos nesse caso em particular, por melhores condições de vida. Por isso, essa sugestão pró-Conselheiro reflete bem a ousadia da posição de Rosa, curiosamente um homem de vida pacata, funcionário público exemplar do Ministério das Relações Exteriores.
João Guimarães Rosa, escritor mineiro nascido em 1908 e falecido em 1967, é hoje considerado uma das glórias da literatura brasileira. Seu “caso” literário é dos mais complexos e não deslindável nem em livros grossos e nem em pequenos textos como este. Todavia o fascínio inicial que sentimos nas primeiras leituras de suas obras e o espanto trazido pelo impacto de sua genialidade que se apossa de nós quando as relemos e adquirimos consciência do prodígio de sua arte são verdadeiros e tendem só a aumentar.
Para muitos, ele é o inventor de um mundo à parte, o “sertão”, lugar mítico situado algures no interior do Brasil. Isso é verdade apenas em parte. O sertão brasileiro é tema de nossa literatura desde sempre: basta lembrarmos que grande parte da obra de José de Alencar se passa nesse mundo. Já na república, o escritor mineiro, Afonso Arinos, falecido em 1916, nos deu uma série de contos e novelas “sertanejas”. Seu livro mais conhecido intitula-se mesmo Pelo Sertão, mas há outros, inclusive um romance chamado Os Jagunços, em que trata de Canudos antes de Os Sertões de Euclides da Cunha.
Esse último escritor é referência obrigatória quando se trata do tema. Sua obra maior, que é de gênero indefinível, já que não é nem romance nem propriamente um ensaio histórico, seria antes uma análise sócio-antropológica, mas sua grande qualidade o fez ser incorporado ao nosso patrimônio como um de seus cumes literários. Há, também, uma série imensa de outros autores “sertanejos”, dos quais os mais importantes são os grandes Graciliano Ramos e José Lins do Rego, que deixaram obra excepcional.
Mas então qual o papel de Guimarães Rosa nesse quadro sertanejo? Se ele não inventou o sertão, se ele copiou o linguajar do povo sertanejo, o que o distingue dos outros regionalistas? A resposta, como tudo nesse autor, é ambígua. Ele, ao narrar a vida do povo do interior mineiro nos deu dessa gente sofrida a dimensão épica, a dignidade dos heróis da antiguidade, das cruzadas, dos grandes momentos de nossa cultura. Seus personagens-heróis podem ser pobres matutos, jagunços, prostitutas, vaqueiros, crianças, vendeiros, onceiros, toda a miuçalha humana que povoa o interior, mas não por isso, menos dignos de consideração, são seres de dimensão heróica, portadores de uma visão metafísica do mundo comparável às dos melhores filósofos.
Essa é uma das particularidades de Rosa. Ele não se apiedou do sertanejo, por este ser rude e sem recursos. Pelo contrário, ele assumiu com orgulho sua condição de sertanejo, vestiu o gibão e incorporou, sem folclorismos, essa cultura como matéria e substância, como elementos formadores de nossa nacionalidade e condição. E essa cultura do sertão é a cultura dele — ele, o autor, é um sertanejo que veio para a cidade e se urbanizou, e não o contrário. Por isso, não olha para seus personagens de cima para baixo. Ele os olha de igual para igual, como um membro participante dessa sociedade.
Essa postura tanto é mais importante e surpreendente por ter sido Guimarães Rosa um reconhecido erudito. Quem privou de sua intimidade deixou testemunho do alcance e profundidade de seus conhecimentos linguísticos, científicos, filosóficos, históricos etc, ou seja, sua adesão humana e cultural se deu por escolha consciente em um universo culturalmente riquíssimo, e não por falta de opção. Sabendo muito do mundo, aderiu ao seu, à sua origem, com orgulho e tenacidade.
Médico formado em Belo Horizonte, diplomata por concurso, poderia ter se transformado em mais um de tantos brasileiros dessa infeliz elite, deslumbrados com o que vem de longe, com as importações culturais efêmeras, com a última moda acadêmica. Mas não: homem de gênio intuiu, sentiu, viu que seu universo era o sertão e nele mergulhou sem pejo, sem justificativa outra que sua grande, sua imensa arte.
II
Essa arte, grande como o Brasil, é, como esse, fonte de debates e equívocos. Há os conhecedores legítimos do povo e da cultura do sertão mineiro, como Tavinho Moura, autor de belíssimas canções, várias delas sobre temas roseanos, que sentem profunda identificação com a obra de Rosa, e afirmam ser sua linguagem uma reprodução fiel desse falar matuto, feito de idas e vindas, de negaças e avanços, de apócopes, síncopes e elisões, de improvisos e de formas arcaicas, aqui cristalizadas, e que em outras regiões mais urbanizadas se foram há séculos, o que, na visão de Guimarães Rosa, enfraqueceu a língua, tornando-a mais tão frouxa quanto a gente que dela faz uso.
Em oposição a essa visão encontramos a linha dos acadêmicos que desconhecem o sertão, mas sabem garimpar as influências exógenas, e por isso preferem uma visão mais pessoal para essa linguagem, que seria então uma invenção consciente, cuja base são os neologismos oriundos da fusão de palavras de diversas línguas, além dos arcaísmos que dão o sabor profundamente original à obra do escritor mineiro.
Como exemplo dessa última posição podemos considerar duas palavras. A primeira, um legítimo neologismo, é Sagarana, no dizer do próprio Rosa uma fusão de saga, a palavra escandinava para epopéia e rana, de origem tupi que significa à maneira de. Dessa junção temos à maneira de saga, e tem uma real sonoridade sertaneja, tão real que se incorporou à nossa língua sem maiores dificuldades.
A segunda palavra é a famosíssima nonada, vocábulo com que se abre o Grande Sertão: Veredas. Embora alguns autores mais descuidados a categorizem como um neologismo, nonada é antiga em nossa língua, e foi usada pela primeira vez — segundo o Dicionário Houaiss — em torno de 1570. Mas nem por isso pode ser considerada arcaica. Essa palavra usada por autores como Gonçalves Dias, Godofredo Rangel, Alberto Deodato e João Guimarães Rosa, está bem viva no interior mineiro. Se ela morreu nos grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, continua viva e expressiva no interior de Minas. Essa, aliás, é uma das características linguísticas do sertão: pelo seu isolamento do mundo exterior há uma tendência de cristalização da linguagem, da permanência de certas formas que em regiões mais abertas desaparecem pelo desuso.
Mas o que nos diz a análise desses dois vocábulos roseanos? Quem está certo? Os defensores da origem popular ou os da origem erudita da linguagem de Guimarães Rosa? A resposta, bem ao gosto do autor, é ambígua: se, por um lado, os defensores do eruditismo de Rosa têm argumentos irretorquíveis, e que são facilmente demonstráveis, eles no fundo justificam também a posição dos defensores da vertente popular, uma vez que o escritor usou de toda a sua erudição, de todo o seu talento com o objetivo de criar uma linguagem que, pela sua sonoridade, ritmo, musicalidade, conteúdo, aparência, sabor, cheiro, e essência, fosse a criação literária, ou a recriação, do linguajar desse povo que habita nosso sertão. Em suma, ele usou de seus inesgotáveis recursos para tentar fixar uma linguagem que se perde à medida que a fronteira agrícola se expande, e conseguiu. Graças à sua contribuição, ela está aí bem viva.
Quem quiser testar o que eu escrevo tem apenas de fazer uma pequena excursão ao interior de Minas, não nas regiões turísticas, que essas, como em qualquer lugar do mundo, se falseiam, mas nas pequenas cidades ou vilas ainda fora do circuito, onde se mantêm espontaneamente certas tradições. Por exemplo, Azurita, pequeno distrito de Mateus Leme, a sessenta quilômetros de Belo Horizonte, povoado que se desenvolveu em torno de uma estação ferroviária. Nele encontrei, em maio de 2004 dois personagens que João Rosa não desdenharia em colocar em seu universo.
O primeiro e mais modesto, não guardei seu nome, apareceu em uma visita a um sítio próximo ao distrito em busca de peças para o museu local. De dentro de um jabuticabeiral veio um ser humano quase nu, meses sem ver água, unhas, barbas e cabelos totalmente sem cuidados, linguagem quase incompreensível pela falta de hábito do convívio social. Pensei logo em João Felpudo saído dos livros didáticos de minha infância. Mas não, ele era um bom personagem roseano, a encarnação de João Urugem, homem do mato, meio bicho, que, saído da novela Uma Estória de Amor do livro Corpo de Baile, vinha nos oferecer suas, não por ser o proprietário, mas por tê-las plantado e colhido, frutas com toda dignidade e generosidade. E era bom aceitar, porque a recusa significaria ofensa grave.
O segundo personagem foi seu Zé do Zico, homem do povo, construtor de profissão, que aprendeu seu oficio não nos bancos escolares que lhe foram negados por sua condição humilde, mas na lida. Uma tarde, após o monumental almoço tradicional da região, na varanda de sua casa, mais uma vez sua, não por ser o proprietário, que esse era outro, mas por tê-la concebido, projetado e construído, ele nos contou sua estória, do seu nome, da maldade de seu pai, o Zico, que, mesmo depois de separado, batia na mãe; de como ele, ainda adolescente, deu uma surra no velho para que ele deixasse a mãe em paz; de como os moradores do local foram defendê-lo junto ao delegado para que ele relaxasse a prisão, que o malvado era o outro; e, finalmente, do pacto que o famigerado Zico fez com o Diabo, o Cramulhão, o Sem Nome, para que este lhe desse uma pedra de valor.
Aí a narrativa se transfigurou. Se antes já tínhamos todo o ambiente roseano, pela linguajar rico e brusco do narrador e pelas situações às vezes cômicas, às vezes violentas do conflito pai e filho, com a entrada do Demo esse ambiente se metamorfoseou e passamos a ter à nossa frente o próprio Riobaldo Tatarana a contar metafisicamente não as suas próprias, mas as peripécias paternas. Destarte ficou patente a ligação indissolúvel do universo do escritor mineiro com a realidade de onde ele vem, com o mundo magicamente sentido e explicado e tão magnificamente elevado por ele à categoria épica e mística das grandes criações universais.
Na estória de seu Zico, pai de seu Zé do Zico, de como ele escapou de Belzebu por ter em seu peito um escapulário de Nossa Senhora das Dores, mesmo que nessa escapada tenha perdido a pedra, objeto do pacto, está a semente, o microcosmo de Guimarães Rosa em toda sua sutileza, riqueza e grandeza. É o caso clássico do universal obtido pelo local, não um local pitoresco, envergonhado, mas consciente e orgulhoso de seu valor, de seus valores, tão bons e universais em Azurita quanto em qualquer outro lugar desse mundo. A grandeza do escritor está em assumir e respeitar esses valores e não tentar justificá-los perante uma ótica urbana e distorcida, em ser o personagem e não em lamentá-lo por sua pseudo-ignorância e fraqueza.
Para encerrar, uma citação de Guimarães Rosa bem característica: em seu conto intitulado Barra da Vaca, presente no livro Tutaméia — um outro falso neologismo — João Guimarães Rosa usou como epígrafe um tôo, que segundo Paulo Dantas em sua Sagarana Emotiva, seria um improviso de Rosa ao rezar a Ladainha de Nossa Senhora. Esses versos que Chico Buarque usou como início de sua bela canção Assentamento refletem bem essa simbiose da criação artística com a sua cultura geradora. Embora pareça ter origem folclórica é inventada pelo escritor, e bem poderia ter sido usado como seu epitáfio:
Quando eu morrer,
que me enterrem
na beira do chapadão
contente com minha terra,
cansado de tanta guerra,
crescido de coração.