Rosana Bond fala de seu livro

Rosana Bond fala de seu livro

A repórter tece um verdadeiro dossiê sobre Fujimori e a guerra popular dirigida pelo Partido Comunista do Peru

A jornalista brasileira Rosana Bond acaba de lançar o livro Peru: do império dos incas ao império da cocaína, mostrando que o ex-presidente Alberto Fujimori e seu assessor, o agente da CIA Vladimiro Montesinos, comandavam o esquema da cocaína no país.

A obra tem 432 páginas e foi publicada pela Coedita, Cooperativa de Trabalhadores em Produção Cultural e Editorial.

Em entrevista à AND, a autora revela também que o Partido Comunista do Peru não só está vivo, como hoje, surpreendentemente, dispõe de um grande contingente de mulheres, inclusive na sua direção, e continua na lista dos partidos que o USA mais teme no mundo.

Primeiramente, você poderia atualizar a memória dos leitores a respeito do Partido que muitos apenas conhecem pelo nome de Sendero Luminoso?

O Sendero é o Partido Comunista do Peru que foi reconstituído e desencadeou a guerra popular em 1980. Suas ações ficaram famosas e os magnatas do USA o consideram um dos adversários mais poderosos do mundo, por ser ideologicamente coeso, firme em seus princípios maoístas.

Embora seja quase que inteiramente omitido dos noticiários, o Partido Comunista do Peru — cuja censura exercida pelos monopólios de comunicação insistem em chamar de Sendero Luminoso — continua se fortalecendo e incomoda muito os ianques, porque, duramente combatido em todos esses anos ele jamais foi destruído. Ao contrário, se fortalece entre o povo. Os principais comandantes foram presos, mas surgiram outros que dão prosseguimento incansável ao seu projeto, que é o de derrubar o imperialismo e a semifeudalidade no Peru, constituir uma república popular e democrática no processo da guerra popular, indo direto ao socialismo.

O USA está preocupado com a firmeza da guerra popular…

Sim. Ele imaginava que a captura, em 1992, do líder máximo do PCP, o Doutor de Filosofia Abimael Guzmán — Presidente Gonzalo, como é conhecido entre o povo — fosse a sentença de morte do Partido. Mas não foi.

Em 1996, quatro anos após a prisão do Dr. Abimael Guzmán, o Departamento de Estado do USA confessava seu desapontamento, dizendo que o Sendero Luminoso era “uma das organizações guerrilheiras mais impiedosas do mundo”.

Em 1998, seis longos anos depois da captura do Dr. Abimael Guzmán, um informe do Departamento de Estado reconhecia que a guerrilha maoísta tinha protagonizado 454 ataques só nos 10 primeiros meses do ano. No ano passado, no dia 28 de maio, aquele que se dizia presidente do Peru, Alejandro Toledo, declarou estado de emergência em todo o país e concentrou nada menos que 30% das Forças Armadas nos vales dos rios Ene e Apurímac para combater o PCP. O interessante é que, horas antes de declarar estado de emergência, Toledo teve reuniões com o embaixador do USA e com Otto Reich, enviado especial do governo Bush para as Iniciativas do Hemisfério Ocidental. Isso mostra claramente a que ponto chega hoje a atenção que os ianques dão ao PCP.

Há outras informações concretas sobre a continuidade da guerra popular conduzida pelo Partido Comunista do Peru, além dessas que você acabou de mencionar?

Sim, há. Apesar do pouco espaço que os monopólios de divulgação no mundo dedicam ao assunto, o que chamam de Sendero Luminoso continua vivíssimo. A prisão do líder Abimael Guzmán não paralisou a guerra. Inclusive um livro escrito por dois jornalistas destacou o fato de que entre setembro de 1992 (data da prisão do Presidente Gonzalo) e março de 1993 registrou-se o maior número de ações guerrilheiras desde a deflagração da guerra popular no Peru, em 1980. O New York Times afirmou que durante toda a sua gerência (1990-2000) Fujimori tentou esconder isso. A maioria da imprensa peruana só publicava os dados passados pela polícia. Mesmo assim, para escrever o livro, apurei que a atuação comunista tem sido muito intensa. Tanto que em 1995, por exemplo, um policial não-identificado disse à revista peruana Caretas que o PCP estava funcionando com “uma capacidade assombrosa”.

Em 1997 a nota da inteligência policial nº 1022 advertia que a guerra popular havia transposto os limites de atuação no Alto Huallaga e se espalhado por 19 departamentos (estados). Em 1998 e 1999, os comunistas realizaram operações no Huallaga, Ancash, Ayacucho, La Libertad, Ucayali, Huánuco e Lima, inclusive com a tomada de povoados.

Em 2001 as ações se estenderam de norte a sul, com a imprensa noticiando atividades em 16 departamentos: Piura, Cajamarca, Ancash, Loreto, San Martín, Huánuco, Pasco, Lima, Junin, Huancavelica, Ica, Apurímac, Ayacucho, Cuzco, Arequipa e Moquegua. Em 2002 e 2003 a guerra popular se alastrava em quase todo o país. O número de ações típicas de guerrilha foi diminuído, o que não significa ter diminuído o seu poder político, tanto que as Forças Armadas reconheceram que “não estamos podendo combater o Sendero na (região da) selva”. E naqueles dois anos cresceu muito a presença comunista em outros setores, principalmente nos movimentos de massa.

Agora, em 2004, o governo tem mostrado preocupação com uma “infiltração senderista”, reclamando que em todos os campos da sociedade o PCP atua — dentro dos sindicatos, nos centros de educação e nos bairros pobres etc., inclusive em Lima. Na imprensa, as notícias são de que os guerrilheiros continuam “ganhando o campesinato”.

Você afirma em seu livro que a guerra popular do PCP está sendo dirigida por mulheres…

Sim. E creio que é uma coisa meio inédita em termos de guerra.

Os dados não são muitos, mas conto no livro que uma das características do Exército Popular Revolucionário, conduzido pelos comunistas, foi que, pouco a pouco, a partir da década de 90, ele se transformou numa organização marcadamente feminina.

Cogita-se também que atualmente mais de 60% do Partido seja constituído por mulheres. Inclusive, durante muito tempo, já cabia a elas a guarda pessoal do Dr. Abimael Guzmán. E pode parecer estranho àqueles que ainda vêem a mulher com olhos tradicionais e conservadores o fato de um dos partidos revolucionários mais atuantes do mundo ser conduzido por moçoilas e senhoras. Mas para o Sendero isso não tem nada de esquisito.

O jornalista Luis Arce Borja afirma que o PCP vê a coisa da seguinte maneira: “Na guerra popular não há distinções entre homens e mulheres, todos são filhos do povo, com direitos iguais (…) A mulher dentro do PCP não tem o mesmo papel que nos partidos burgueses, mesmo nos da esquerda burguesa. Nesses partidos, as mulheres são mais utilizadas para cozinhar, cuidar das crianças, distribuir copos de leite e sair ao estrangeiro à busca de doações. No Partido Comunista do Peru a mulher alcançou os mais altos postos, tanto na luta revolucionária quanto na direção.”

Uma parte importante do livro é o verdadeiro dossiê que você montou a respeito do governo Fujimori e sua vinculação à CIA e ao tráfico internacional da cocaína. Alberto Fujimori ficou dez anos no poder e foi muito elogiado pela imprensa. Dizia-se que ele estava “salvando” o Peru.

Pois bem, na verdade Fujimori assumiu a presidência da República em 1990 com o aval do USA, através de um esquema comandado por um agente do serviço de espionagem e terror do USA, a CIA: o ex-capitão do Exército Vladimiro Montesinos.

Embora sempre se tenha negado, Montesinos era da CIA e a verdade foi aparecendo aos poucos. O major José Fernandez Salvatecci publicou uma autobiografia, Yo Acuso, onde assegurou que Montesinos foi recrutado pela CIA nos anos 70.

Em 1996, Coletta Youngers, do Washington Office on Latin America (WOLA) informou que Montesinos contava com a benção do governo Clinton e o definia como “um caráter sombrio que possui laços com a CIA”. De acordo com Coletta, Montesinos “figura na lista de pagamentos da CIA”.

Esse Montesinos tornou-se o braço direito de Fujimori. Mas era, digamos, o verdadeiro governante. E mais: tornou-se o chefão do tráfico, com o beneplácito do USA.

Uma revelação bombástica ocorreu em janeiro de 1994, quando foi preso em Cáli, na Colômbia, o traficante Demetrio Limonier Chávez Peñaherrera, conhecido como Vaticano pela grande quantidade de igrejas (laboratórios de processamento de cocaína) que ele controlava no Alto Huallaga, a mais importante área cocaleira do Peru.

Demetrio confessou que pagava 50 mil dólares mensais a Montesinos e que também dava dinheiro a outras autoridades civis e militares. Pouco tempo depois, com evidentes marcas de torturas, Vaticano mudou suas declarações. Negou sua ligação com Montesinos e, ao contrário, disse que financiava o Sendero Luminoso. Mas, no dia 12 de dezembro de 2000, Vaticano divulgou uma carta confirmando que pagara mesmo 50 mil dólares mensais a Montesinos, em 1991, para que este o deixasse operar livremente no Huallaga. Esclareceu que Montesinos, nos seus contatos com o tráfico, era chamado de Rubén e que esteve duas vezes no povoado de Campanilla para negociar pessoalmente o embarque da droga peruana à Colômbia.

Na carta,Vaticano desmentiu que tivesse ligações com o PCP, como fora dito anteriormente. Negou também que tivesse sido o chefão da droga no país: “Eu não sou o Pablo Escobar do Peru”, disse ele. “O verdadeiro Pablo Escobar do Peru é esse delinquente chamado Vladimiro Montesinos Torres”.

Além disso, soube-se que, por meio de Montesinos, o cartel de Medellín — o mais famoso grupo de traficantes da Colômbia — foi um dos financiadores da primeira eleição de Alberto Fujimori à Presidência do Peru, em 1990.

A informação, bombástica, foi dada num livro escrito por Roberto Escobar, irmão do chefão Pablo Escobar, lançado em janeiro de 2001. A obra, com o título Mi hermano Pablo, inclusive estampou na capa uma fotografia de Fujimori.

O traficante-escritor Roberto afirmou que o dinheiro para a campanha eleitoral de Fujimori foi solicitado por Montesinos, que trabalhou para o Cartel antes de ser assessor presidencial e era amigo de Pablo Escobar, que na intimidade o chamava de Montecristo.

Após a revelação, segundo o Los Angeles Times, as autoridades peruanas passaram a investigar a possibilidade de que a doação do Cartel tenha sido de 1 milhão de dólares.

Seu livro é bem amplo e remonta também à questão dos incas.

Creio que é uma abordagem, de certo modo, inovadora. Tentei fugir da superficialidade e do lugar-comum de algumas obras didáticas, buscando atingir a alma do chamado Peru profundo. Mas isso foi feito sem pretensão acadêmica, procurando uma linguagem jornalística.

No livro, o leitor vai encontrar fatos pouco conhecidos, tirados de escritores incas e mestiços dos séculos XVI e XVII, cujos relatos na língua quêchua e em espanhol antigo infelizmente ainda não foram traduzidos no Brasil. Inclui também uma série de curiosidades, episódios extraordinários e detalhes divertidos da história daquele grande império.

Conto, por exemplo, que alguns soberanos incas tinham o costume de disfarçarem-se de homens comuns e andarem incógnitos pelas ruas para saber qual era a verdadeira situação do povo. Relato também que certas leis incas eram muito curiosas, como aquelas que puniam o cidadão que não tomasse banho e fosse relaxado com a limpeza de sua casa.

Mas o livro não deve ser confundido como uma espécie de história geral do Peru.

Não pode. Apesar do título, não houve neste trabalho a pretensão de traçar uma história geral do Peru. O objetivo foi mais modesto: retratar alguns episódios históricos homenageando o povo peruano, de origem majoritariamente camponesa, e suas incansáveis batalhas de resistência ao opressor. Seja ele o conquistador espanhol de ontem ou o tirano engravatado de hoje.

Quis enfocar a engenhosidade, a criatividade, a sabedoria e principalmente o espírito de luta e de superação de uma gente obstinada em busca da vitória contra inimigos terríveis. Dividi a obra em duas partes, Peru Antigo e Peru Contemporâneo, porque não consegui dar uma homogeneidade à coisa. Acabou resultando dois livros em um.

No que toca à luta armada, aproveitei muito do conteúdo de meu primeiro livro sobre o assunto, chamado Sendero Luminoso: fogo nos Andes, editado em 1991 e que teve uma repercussão muito boa.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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