Durante 2006, AND publicou várias denúncias de violações aos direitos do povo trabalhador e oprimido, principalmente no que se refere às atividades policiais. A violência perpetrada pela polícia dirigiu-se, na maioria dos casos, contra a população pobre do campo e da cidade. Seus alvos são os moradores dos bairros pobres, camponeses e pessoas organizadas em movimentos populares — estudantes, operários, servidores públicos e povos indígenas.
Wânia Pasinato Isumine e Cristina Neme, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, definem como graves violações aos direitos humanos os crimes praticados por agentes do Estado contra a população, no exercício legal de suas atividades ou atuando além delas.
A questão é que o próprio Estado se organiza com base na execução de tais violações e a polícia atua como força especial repressiva que visa à manutenção da ordem da classe dominante. Segundo as pesquisadoras, a principal característica da organização policial tem sido o uso excessivo da força — expressa nas altas taxas de letalidade em que resultam os confrontos — além do envolvimento em extorsões e no crime organizado.
Elas alertam para o fato de que muitos dos assassinatos são execuções policiais e que os envolvidos seguem impunes, na maior parte dos casos. Informações do Movimento Nacional de Direitos Humanos contabilizaram, em 2001, um total de 13.917 mortes originadas por conflitos com a policia, em todo o país.
Há uma clara diferença nas abordagens da polícia, principalmente a militar, em regiões centrais e periféricas das cidades. A PM julga subjetivamente a população pobre como criminosa em potencial, ou seja, como "inimiga da corporação". O tratamento dispensado a partir desta análise é o dispensado aos criminosos. Nos bairros pobres, eles saem com armas à mostra e a abordagem à população é baseada em provocações físicas e verbais e disparos. Não é raro o deslocamento forçado de pessoas para lugares ermos, onde a agressão e a execução ocorrem com frequência.
A PM goiana
A atuação da Polícia Militar do estado de Goiás (PMGO) ficou internacionalmente conhecida em 2005, devido à desocupação da comunidade Sonho Real, onde dois operários foram assassinados (oficialmente), 800 pessoas presas e várias feridas.
A partir de 2005, famílias denunciaram assassinatos e desaparecimentos de familiares após abordagens policiais. A maioria das denúncias aponta a Rotam — Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas — como executora das ações.
De acordo com as informações da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do estado de Goiás, em pouco mais de dois anos, foram registrados 117 homicídios ou cerca de um por semana, cuja autoria é atribuída a policiais militares. Das 117 vítimas, 48,7% (57 pessoas) não tinham passagem pela polícia. Os dados levantados pelo jornal Diário da Manhã (06/01/ 2006) são mais alarmantes. Os assassinatos resultantes da ação policial, sejam execuções ou "confrontos", responderam por 12% do total de homicídios no estado, em 2005. Ainda não há dados relativos a 2006, mas a média do ano anterior é de mais de 30 assassinatos por mês, um saldo apenas oficial.
A Rotam
A Rotam — ou 9ª Companhia Independente da PM—, conta com um efetivo de 134 policiais. Segundo o manual do II curso operacional da corporação, de 2005, o objetivo da companhia é "controlar e conter situações de crise". O regimento interno e doutrinário da Rotam afirma que a 9ª Cia é tropa de elite e reserva tática do Comando Geral da Corporação, tendo como objetivos — além do tradicional "combater o narcotráfico e o crime organizado" — saturar em prevenção/repressão áreas com índice elevado de criminalidade, executar a contra-guerrilha urbana e rural, etc.
A companhia é dividida por equipes formadas por quatro pessoas fortemente armadas, portando armas de grosso calibre como carabinas, submetralhadoras e fuzis. O manual da Rotam afirma que demonstrações de força e do armamento pesado são importantes porque desestimulam reações dos "inimigos". Toda a formação da Rotam é baseada na existência de um inimigo da corporação que deve ser combatido.
A PM vê a população pobre como criminosa em potencial, colocando em prática uma doutrina assassina. Os policiais atuam torturando, assassinando e sempre se justificam dizendo: "só atuamos assim contra bandidos". Mas uma significativa parcela da população já foi alvo, ao menos, das revistas ("baculejos") truculentas.
Matar, matar
A violência contra a população civil do estado, principalmente da capital e os vários casos de desaparecimento e execuções levaram o Ministério Público Estadual (MPE) a abrir o Procedimento Administrativo nº 001/2006 para apurar, em tese, excesso na atuação de certos integrantes da Rotam. Ao analisar o fato de que de 2000 a 2006, oficialmente, 14 pessoas foram vítimas de "desaparecimento forçado", após abordagem da Rotam, o MPE afirmou que "flagrantemente integrantes daquela unidade policial hodierna e continuamente estão violando os direitos humanos".
A incidência de mortes após abordagens da Rotam é maior do que em qualquer outra unidade. Também são maiores as denúncias de abuso de autoridade, agressão física e tortura.
Na investigação do MPE — uma ação civil pública — há uma denúncia de tortura semelhante às atrocidades cometidas na gerência militar fascista. Os policiais levaram o "suspeito" para o Morro do Além, local ermo na periferia de Goiânia. Lá, aplicaram-lhe choques utilizando fios desencapados na orelha, ânus e genitália. A PM queria que ele confessasse seu envolvimento com o tráfico de drogas e delatasse seus "comparsas", mas o "suspeito" nada declarou. O inquérito, aberto após a denúncia da vítima, está correndo no 12º Centro de Integração de Operações de Segurança (Ciops) da capital, sob o nº 047/2004.
As informações prestadas pela própria Rotam ao MPE, afirmam que dos 134 policiais da tropa de elite, 121 já foram ou estão sendo investigados internamente por "desvio de conduta", que vai de ultrapassagem perigosa a homicídio. Na listagem que figura nos autos de investigação do MPE a grande maioria está ou foi investigada por abuso de autoridade, agressão física, tortura, homicídio e furto. Em certos casos, há policiais que já foram investigados várias vezes. Não há registros dos policiais condenados ou afastados.
O Ministério Público analisou também imagens do treinamento militar da Rotam, considerando-o excessivamente violento.
O povo enfrenta
No dia 28 de abril de 2006, familiares de vítimas da violência policial fundaram o Comitê goiano pelo fim da violência policial, destinado a divulgar desaparecimentos e execuções ocasionadas pela policia e exigir a investigação e punição dos responsáveis, inclusive do Estado.
Também pretendem identificar outras situações em que a população encontra-se sujeita às arbitrariedades policiais — como nos casos de saques aos comerciantes, agressões aos trabalhadores ambulantes e à juventude da periferia. O Comitê tem questionado a decisão da Secretaria de Segurança Pública e Justiça do Estado de Goiás, que através da Resolução 686/ 2006/SSPJ atribui apenas à PM a competência de apurar os crimes dolosos contra a vida, praticados por policiais militares em serviço. Segundo o Comitê, esta decisão retira a investigação da esfera comum, estilo que relembra os tempos do fascismo sem máscaras da gerência militar, em que, em nome da governabilidade, os agressores não sofriam nenhuma punição.
Dor e resistência
Entre a emoção, o sofrimento e a indignação, nossa reportagem ouviu de duas famílias do Comitê um clamor por justiça:
Eronildes do Nascimento, vendedora (desempregada), 28 anos, é viúva de Pedro Nascimento, assassinado durante o despejo forçado da comunidade Sonho Real.
Eronildes – meu marido foi assassinado num despejo forçado, na ocupação Sonho Real em Goiânia. Na hora que a polícia estava se aproximando nós nos afastamos um do outro porque eu fui fazer uma ligação e aí a gente não conseguiu mais se encontrar.
Eronildes – Por pessoas que o viram ser executado. E antes de saber que era ele, todo mundo dizia: "eu vi um jovem sendo torturado lá dentro, ele levou um tiro pelas costas e a polícia terminou de matar, algemou e jogou no sol". O Pedro não aparecia e começamos a ir às delegacias e hospitais. Encontramos seu corpo no Instituto Médico Legal.
Eronildes – Não todas porque algumas ficaram com medo. Eles contaram que bateram muito nele, que torturam mesmo. Um policial chegou a ficar em pé, em cima do pescoço dele e aí ele não falava, e sangrava muito.
Eronildes – Com certeza.
Eronildes – Bastante,mas agora está mais leve. Eu, que nem era testemunha e fui vítima, sofri a maior perseguição. Quando comecei a questionar passaram a me ameaçar. Viaturas me perseguiam e fui muito coagida na época do depoimento.
Em setembro do ano passado, coloquei uma faixa na visita do governador à área provisória, no setor Grajaú, exigindo justiça. A Polícia me bateu e foi aí que vi que estava sendo mesmo perseguida. Eles me disseram: "Há muito tempo que estamos de olho em você. E tome cuidado".
Eronildes – Nenhum. E no dia do ato eu fiquei sabendo que foi o Américo, membro das direções oportunistas, que pediram à polícia para me reprimir. Isso ocorreu porque eu ia expor uma faixa e "o governador poderia ficar ofendido". Agora ele está fazendo aliança com o governo que mandou fazer o despejo.
Eronildes – No meio desta luta eu aprendi que a justiça é para uns poucos; quero dizer, só para os ricos.
Eronildes – Está lenta, morosa demais. Lutamos para responsabilizar o Estado. Eles estão afirmando que a polícia foi truculenta e que houve crime eleitoral, que o governador também teve culpa. No assassinato do Pedro eles estão responsabilizando toda a corporação do Choque. Isso facilita a absolvição. Tem que individualizar a acusação. Mas eu não me interesso muito em quem executou porque a grande questão é quem mandou apertar o gatilho e a gente sabe que foi tanto o ex-governador como o secretário de segurança pública.
Eronildes – A idéia surgiu da comissão de direitos humanos da Assembléia Legislativa, através das audiências públicas que ela promovia. As famílias das vítimas da violência policial compareciam às audiências. Aí a comissão fez o convite para fazer parte do comitê para entidades e para as famílias. Hoje a comissão de direitos humanos participa, mas as famílias é que estão à frente. Nós ainda estamos nos consolidando. Somos 18 famílias. Nosso objetivo é criar forças, lutar contra o banditismo que existe dentro da polícia, exigir justiça nos casos de execução e desaparecimento.
Eronildes – Eu faço a minha dor virar resistência lutando por justiça. Hoje, eu penso que é melhor morrer lutando por aquilo que você acredita do que se acovardar e não fazer nada.
Eronildes – Sim, porque a polícia é bandida, então é perigoso e todo mundo sabe disso.
Maria das Graças Soares Silva Sena, dona de casa, 36 anos, mãe de Murilo Soares Rodrigues, 12 anos, desaparecido em abril de 2005.
Graça – No dia 22 de abril de 2005, próximo às 8h da noite, o Murilo foi com o amigo do pai dele, Paulo Sérgio, buscar uma peça de carro. Antes de chegar ao destino, eles foram abordados pela Rotam e nunca mais foram vistos. Depois de vinte minutos que o Murilo havia saído, começamos a procurá-lo porque a distância era muito pequena. Nós começamos a ligar no celular dele. Chamava, mas não atendia e depois foi desligado.
Graça – São 28 testemunhas que viram a abordagem policial. Viram quando puseram o Murilo e o Paulo Sérgio dentro do carro e quando um dos policiais entrou em seguida e o carro da Rotam seguiu atrás.
Graça – Com certeza eles deram sumiço nos corpos, para não deixar nenhum vestígio.
Graça – Latrocínio (roubo do som e rodas do carro) e ocultação de cadáver.
Graça – Relatou que não havia corpos dentro do carro e que a aparelhagem de som e as rodas do carro foram retiradas, antes de incendiá-lo.
Graça – Colamos panfletos, acho que no estado de Goiás inteiro. Estive no Comitê de Direitos Humanos de Brasília. Fui atrás de todas as autoridades que podiam me ajudar, e minha luta continua, até hoje. Eu nunca parei. Onde tem uma brecha eu entro, só que elas estão acabando, ninguém quer ajudar mais, fica um caso esquecido.
Graça – Eu não, mas o pai do Murilo sofreu ameaça. Ele parou de se expor na imprensa porque sempre havia um carro da polícia seguindo-o.
Graça – E muitas ameaças, principalmente o pai. Tanto que eles foram embora da cidade.
Graça – No dia 19 de novembro último, o juiz do fórum de Goiânia anulou o processo em que o juiz de Aparecida de Goiânia havia absolvido os oito policiais acusados, alegando falta de provas. Nós esperamos que com a anulação do processo, eles sejam levados ao júri popular.
Graça – Todas as 28 testemunhas relataram a abordagem policial. Mas os acusados negam o tempo todo, alegando que estavam em outra ocorrência, no Goiânia Shopping.
Graça – As nossas provas são as testemunhas e as provas que faltam não chegam nunca — impressões digitais, exame de DNA, a filmagem do posto de gasolina que mostra o carro da Rotam e a gravação do celular onde o policial fala que "tem dois passarinhos presos na gaiola".
Graça – No comitê um ajuda ao outro; você não está sozinho ali. Minha vontade é que as pessoas tivessem coragem e lutassem junto com o comitê. No filme sobre a Zuzu Angel eles mostram algo da época da ditadura, e nós estamos aqui para provar que isso acontece hoje: que a ditadura não acabou.