A realidade de crianças e jovens pobres no Brasil de hoje é vivida no caminho entre a prisão e a exploração. Tudo ao contrário do que tentam demonstrar as estatísticas sobre infância e juventude produzidas pelos institutos da moda e utilizadas pela gerência FMI-PT de acordo com as conveniências da hora. No meio do penoso vaivém, o risco de serem executados é uma realidade pouco compreensível para quem morre de medo de topar com crianças e jovens nas esquinas da vida e para quem continua a acreditar em coisas como anjo da guarda e Estatuto da Criança e do Adolescente.
A despeito de embromações mil, os filhos da classe trabalhadora estão submetidos a um cotidiano de humilhações e a uma rotina de violência imposta por políticas de repressão e escravidão. E tendo em vista o que vem por aí, com a conivência do Congresso Nacional, a meninada pode estar à beira de ser trancafiada mais cedo e, já na cadeia, permanecer mais tempo. O primeiro passo na incrementação do arrocho já foi dado: a aprovação na comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos.
Por um lado, a criminalização, a truculência policial e o encarceramento massivo deixam essas crianças e jovens à mercê dos humores de um sistema penal sedento de sangue — e de sangue novo! Por outro, o recrutamento para o trabalho precoce, precocemente mal pago, precocemente desregulado — desde já sem direitos, sem garantias, sem dignidade — os deixa nas mãos do poder econômico ávido de trabalhadores ainda mais baratos, apesar de que cheios de vigor juvenil, assustados, despolitizados e prostrados diante de sina tão amarga; a de serem jovens despossuídos de um meio de produção.
Enquanto crianças e jovens matam, morrem, trabalham ou se viram como podem, as soluções mágicas que a “elite” e seus jornais respeitáveis apontam para a catástrofe que salta aos olhos passam ao largo das questões de classe. E não poderiam ser mais reacionárias: mais prisão, mais trabalho precoce e precário. Tudo ao mesmo tempo e o mais rápido possível.
Enquanto se propagam vozes dementes, filmes, cartazes e programas educativos fascistas anunciam a redução imediata da maioridade penal para 16, 14, 12 anos ou menos, dependendo da melhor idéia de como fazer do “menor” o Judas ideal. Repete-se mil vezes a ladainha de que para manter a meninada na linha, de cujos pais tudo lhe arrancaram, é preciso enfiá-los aos montes (“e para já!”) em “cursos profissionalizantes”, para que possam ser cunhados de paupérrimos oficiais em qualquer coisa, por cuja “profissão”, pouco ou nada receberão em troca, à medida que se tornarem mais miseráveis na manhã seguinte, mas até o dia em que finalmente estarão aptos para receberem a sua redenção pós-túmulo.
Num passe de mágica, as manadas reacionárias internas submissas ao sistema imperialista tentam transformar a questão da infância e da juventude exploradas em caso de polícia e reduzir o ensino a mero treinamento técnico, despolitizado, com o único fim de garantir às empresas mão de obra que já não se interessa por outra coisa exceto sua própria sobrevivência. Quando o poder econômico atira contra a parede homens, mulheres, velhos, jovens e crianças — a ponto de lhes importar apenas prorrogar a morte comendo algo, beber e, finalmente, encontrar um chão para dormir — não existe mais liberdade; existe escravidão: escravidão assalariada.
Para os pobrezinhos que não se enquadram, se impõem os rigores da lei. Rigores que, não importa no que vem se tornar ou quantas vítimas farão. Ainda assim, nunca serão rigorosos o suficiente para saciar a ânsia do poder das classes dominantes pelo controle total das massas trabalhadoras. Esses rigores servem também para tranquilizar os tão sensíveis nervos da abstêmia e pequena burguesia rentista, aquela que, vez por outra, torna-se mais aterrorizada e covarde do que pretende o noticiário que lhe ministra diariamente fortes doses de pânico — por exemplo, por The Globe — ou seja, de um desses noticiários das classes criminosas que compõe o poder.
Preso em qualquer lugar
“Nessas condições, o panorama para as crianças é desolador. Morrem como moscas e, aquelas que sobrevivem, o fazem porque possuem excessiva vitalidade e enorme capacidade de adaptação à degradação que as rodeia. Não têm vida doméstica. Nas tocas e covis em que vivem estão expostas a tudo o que existe de obsceno e indecente. Assim como suas mentes, também seus corpos são afetados pelas más condições de saneamento, pela superpopulação e pela desnutrição.
Quando três ou quatro crianças moram com os pais num quarto onde é preciso se revesar para espantar os ratos, quando nunca têm o bastante para comer, e quando são picadas, enfraquecidas e arrasadas pelas pulgas e piolhos que infestam o ambiente, o tipo de homens e mulheres em que se transformarão pode ser facilmente imaginado”.
As citações acima não vêm de um desses matutinos diários, facilmente encontrados numa banca de jornal perto de você; elas têm origem nas reportagens de um dos maiores escritores de todos os tempos, Jack London, e falam da miséria na capital inglesa de Londres, no início do século XX. Beira o inimaginável que algo semelhante possa ser publicado em qualquer jornalão “brasileiro” dito, parte integrante do oligopólio dos meios de comunicação que opera no Brasil de hoje.
Relatos dos dramas de um cotidiano degradante vivido por crianças e jovens empobrecidos são tão raros e descontextualizados quanto é freqüente e articulado o noticiário abundante em insultos e preconceitos dirigidos aos “menores”. A tônica é a criminalização das estratégias de sobrevivência de uma juventude massacrada no seu dia-a-dia e incapaz de vislumbrar um futuro de liberdade e dignidade.
A Rede Globo, através do seu RJTV do dia 20 de abril, por exemplo, alardeava:
Na Avenida das Américas (Barra da Tijuca), dois menores foram flagrados com material para lavar pára-brisas. Eles foram detidos e levados para o juizado de menores, onde receberam penas sócio-educativas.
O repórter da Rede Globo não se acanhou em confessar que o Ministério Público investiga e penaliza essas crianças e jovens que lavam vidros de carros nos sinais de trânsito — não importando que a legislação proíba a prisão de menores de 18 anos de idade.
O mesmo Ministério Público que anda na cola dos lavadores de pára-brisas acovardou-se quando o Jornal do Brasil resolveu “afrontar” o tão decantado Estado de Direito. O JB publicou na capa de sua edição, do dia 26 de novembro do ano passado, uma foto sem tarja de um menino, apenas, suspeito do assassinato de uma mulher rica, moradora do Leblon. A publicação da foto foi justificada pela chefia como um ato de protesto contra o Estatuto da Criança e do Adolescente.
As manadas reacionárias tentam transformar a questão
da infância e da juventude exploradas em caso de polícia
O ECA está longe de ser um primor legislativo no que diz respeito à garantia dos direitos da infância e da juventude, mas mesmo assim é entendido pelas classes dominantes e que cometem os mais terríveis crimes nesse país, como uma “lei a serviço do crime”, como vociferou o próprio JB no editorial da mesma edição em que mostrou a dimensão do seu ódio de classe — e,ao mesmo tempo, cometeu o crime que, no fim das contas, ficou impune.
Não surpreende que as exigências por repressão ainda maior e mais sangrenta sobre esses meninos e meninas encontrem tanto eco na TV e nos jornais ligados às classes dominantes, como demonstram os clamores pela alteração da lei no sentido de institucionalizar a punição aos que tem idade inferior aos 18 anos.
O cineasta, jornalista e pesquisador Maurício Caleiro há muito estuda a situação da infância e da juventude empobrecida no Brasil — e sobre sua representação no monopólio da imprensa. Segundo ele, a caracterização de crianças e jovens nesse tipo de imprensa costuma obedecer a dois tipos de abordagens, baseadas na identificação de dois seres diferentes:
— Um é a criança, (quando criatura não-pobre, não-negra), representante da ordem familiar, habitante do universo lúdico da infância. O outro é o “menor” (ente de pele escura, geralmente descalço), retratado em meio ao caos urbano ou entre os barracos da favela. Uma tarja preta tapa-lhe os olhos ameaçadores nas fotos. Essa diferenciação, repleta de preconceitos de classe e de mentalidade racista, tornou-se tão naturalizada no imaginário brasileiro que basta um sopro de estímulo “midiático” para instituí-la definitivamente como regra jurídica. A “mídia”, por sua vez, não se furta a soprar, numa atitude através da qual, por um lado, aproveita a identificação de um público para quem a violência, endêmica num país que sofre as conseqüências de três décadas de crise econômica, atingiu um ponto insuportável; e, por outro lado, reafirma a posição histórica das grandes empresas de comunicação como defensoras da manutenção de uma ordem sócio-econômica excludente e violenta, na qual se alia aos interesses do grande capital.
Perseguição, tortura e morte
O grande capital projeta lucros fabulosos no quadro de desesperança das crianças e jovens pobres em relação ao futuro, e a legislação burguesa está aí para garantir que assim seja. Apesar de a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente proibirem o trabalho de menores de 16 anos, o próprio ECA prevê a condição de “aprendiz” para maiores de 14 anos. Uma engenhoca do fantasioso Estado de Direito através da qual, na prática e na realidade, aos meninos e meninas marginalizados e com educação precária se assegura o direito de ingressarem por baixo no mercado de trabalho — e por baixo permanecerem ao longo de toda sua vida.
Maurício Caleiro garante que, ainda assim, pouquíssimas empresas seguem essa determinação legal. Ele diz que o trabalho infantil em idades muito inferiores a 14 anos é altamente disseminado no Brasil.
Não deixa de ser curioso que, até no que diz respeito à fiscalização, a corda arrebente sempre no lado mais fraco, ou seja, em meio ao drama cotidiano das famílias pobres. Abundam as prisões dos pais desempregados, obrigados a vender bugigangas nas ruas com seus filhos e, por outro lado, sobram batidas dos fiscais do trabalho em busca de meninos e meninas que ajudam no dia-a-dia da lavoura familiar. Ao mesmo tempo é nulo qualquer esforço para garantir aos meninos pobres as condições necessárias para a formação de cidadãos — apesar de o marketing empresarial do capitalismo monopolista repetir mil vezes que seus programas sociais de fachada “resgatam” uma cidadania que nunca existiu de fato e tampouco pode ser vislumbrada num horizonte de violência e escravidão.
Caleiro ressalta que, diante desse quadro, como ocorre com qualquer contingente populacional composto de milhões de indivíduos socialmente excluídos, acontece um incremento da atividade criminal, que se oferece para a infância e para a juventude marginalizadas como um caminho aparentemente menos penoso e seguro, sobretudo para uma criança de formação educacional precária. Diante disso:
— Qual é a reação da “elite” e da pauperizada “classe média”? Fechar os vidros do carro e clamar por uma “legislação mata-e-esfola”, que combine o rigor e as baixas faixas etárias do modelo do USA e a crueldade do “modelo” brasileiro, de tortura institucionalizada, no qual as cadeias não passam de depósitos de presos, amontoados em condições que, se tratasse de outros mamíferos, despertariam a ira das associações de defesa dos animais.
Maurício Caleiro considera que o ECA constituiu um avanço em relação ao antigo Código Menorista, mas ressalta que o Estatuto se adapta mais à realidade de violência e degradação do que essa realidade se adapta a ele. Ou seja, não é cumprido. Ele adverte que a natureza conservadora das tentativas de reformar o ECA causa extrema preocupação. Diz que a única conquista efetiva da infância pobre no Brasil é o direito a estudar — em condições terríveis, recebendo uma educação de baixa qualidade (a mesma que formou professores) e muito mal os remunera, sonegam treinamento e motivação e os lançam (assim como as crianças) em instalações precárias desprovidas de segurança. No caminho entre a prisão e exploração, Caleiro lembra que a rua é o terceiro elemento na realidade de crianças e jovens pobres do Brasil:
— Mas a rua é também o único espaço em que esses meninos e meninas pobres podem exercer sua afirmação identitária, de forma autônoma, sem a mediação ideológica do aparato “midiático”. Não há como falar em direitos no que concerne à criança economicamente oprimida no Brasil, a menos que sejamos cínicos ou mistificadores. Seu único direito é, com o perdão pelo sarcasmo, servir de inocente útil, protagonizando campanhas alegadamente beneficentes de grupos de “comunicação”. Campanhas essas que, por um lado, são vantajosas para os benefícios fiscais de tais emissoras e, por outro, aplacam, por míseros caraminguás, a consciência culpada dos demais setores da população. É fato notório que os sistemas estaduais voltados ao “menor infrator” transformaram-se, à revelia do que estabelece o ECA, em verdadeiras prisões, com a rotina macabra de maus tratos, tortura e morte que essas instituições representam no Brasil.