Ruínas não destroem Sonho Real

Ruínas não destroem Sonho Real

Os moradores do Sonho Real (setor industrial de Goiânia – GO) não eram “pobres” ou “necessitados”, mas proletários em luta pelo incontestável direito à moradia. E foi justamente a ousadia de viver que fez com que 3 mil famílias transformassem um lugar antes inóspito num bairro proletário cheio de vida e alegria.

Nas ruas do Setor Sonho Real era possível ver nos olhos de cada morador a certeza de um futuro melhor, o direito conquistado de se abrigar condignamente.

— O setor Sonho Real era tudo nas nossas vidas porque ali nós investimos o que a gente tinha em busca da nossa moradia — exclama Francisco, morador do Sonho Real.

E, de fato, os que ali viviam — catadores de papel, garis, empregadas domésticas, operários da construção civil etc — investiram seus parcos recursos na construção do sonho de ter uma moradia. Muitos deles investiram seus próprios empregos, já que diante da grande campanha de criminalização efetuada pelo monopólio dos meios de comunicação, ao revelarem seus endereços, os patrões preferiram demiti-los. Outros que tentavam conseguir o tão sonhado emprego, como grande parte da população brasileira, só recebiam negativas quando declaravam que eram moradores do Sonho Real.

Diante de todas as dificuldades para manterem-se empregados, muitos deles optaram por dedicar-se integralmente à luta, porque eles sabiam que mesmo trabalhando duro por toda a vida dificilmente conseguiriam construir uma casa.

A partir do dia 25 de novembro último, quando a juíza Grace Corrêa, da 10° Vara Cível, determinou ao secretário de segurança pública, Jônathas Silva, urgência no cumprimento da reintegração de posse, todas as soluções foram substituídas pelas expectativas de confronto, tornando o clima bem mais tenso.

Grande parte dos moradores teve que abandonar seu trabalho e dedicar-se integralmente à defesa da área. Por isso, era muito comum ver nas Assembléias ou nas feiras da região e do próprio setor, os moradores trabalhando no comércio improvisado vendendo toda a espécie de produtos, em busca das condições materiais para continuar resistindo.

Especulação e corrupção

O terreno desapropriado pelos trabalhadores (cerca de 27 alqueires) era apenas mais uma das grandes áreas urbanas que se encontram abandonadas, enquanto os especuladores empregam mecanismos de supervalorização da terra.

O advogado da família, Semy Hungria, afirmou claramente ao O Popular (20 de fevereiro, p. 5) existir ligação da família com as grandes imobiliárias. Segundo ele, os proprietários teriam planos em conjunto com as imobiliárias para a construção de um condomínio destinado à classe média. Também há rumores de que a área poderia sediar mais um dos condomínios horizontais que viraram febre entre os ricaços de Goiânia.

A desocupação

O Secretário de Segurança Pública afirmou diversas vezes que a desocupação seria pacífica, filmada pela imprensa, acompanhada pelo Ministério Público, pela OAB, pela Secretaria de Direitos Humanos, etc. O que se sabe, de fato, é que nenhum deles estava lá.

Ao contrário do que a imprensa fez crer, a operação não se deu num único dia. Os moradores do Sonho Real viveram a tensão de um confronto do dia 31 de janeiro ao dia 16 de fevereiro. Durante este período, a polícia não cumpriu a liminar, mas preparou a operação, utilizando-se da tática de cansar e amedrontar os moradores. As barricadas montadas nas entradas para o setor ficavam agitadas durante todo o dia. A polícia as atacava com uma certa freqüência, utilizando bombas de gás, ateando fogo nos pneus que estavam na barricada da entrada principal e chegando a usar armas letais. Esta foi a chamada “Operação Inquietação”.

Na madrugada do dia anterior à expulsão, o tenente do GATE (Grupo de Operações Táticas Especiais), Ricardo Mendes, foi baleado.

Os dias da “Operação Inquietação” foram de muito combate. Durante 15 dias eles lutaram contra a fome e o poder público. Resistiram bravamente a todas as incursões da polícia, aprendendo a organizar-se, a coletivizar o trabalho e a comida.

No dia 16 de fevereiro todas as ameaças feitas pela “Operação Inquietação” foram cumpridas. A polícia montou uma das maiores operações já realizadas em Goiás, nos últimos tempos. Foram gastos R$ 1,5 milhão (O Popular, 27/02/05, p. 2), o efetivo policial chegou a 2.500 homens, incluindo a PM-GO, a ROTAM, o Choque e o GATE, o Hospital de Urgências de Goiânia, policiais civis, inclusive disfarçados, e até o Exército. Sucedendo à Operação Inquietação, a que recebeu o nome de Triunfo foi violentíssima, mas os moradores não ofereceram resistência, sendo essa a orientação da direção do movimento.

A polícia cercou a área num raio de 3 quilômetros, ninguém saía e ninguém entrava. Até o espaço aéreo foi bloqueado. Ninguém deveria ter acesso ao massacre. A ação da polícia foi rápida. Houve confrontos isolados, mas nada que pudesse oferecer grandes riscos ao propósito policial de retirar os moradores da área. Oitocentas pessoas foram presas e levadas ao 7° BPM, inclusive estudantes que estavam no local no momento da operação e prestavam apoio à população. Outros foram levados a um ginásio estadual de esportes e, depois, várias pessoas desapareceram. Apesar da versão oficial de serem apenas dois o número de mortos, os moradores denunciam que há dezenas deles, o que indicam esses depoimentos:

— A gente tava lá tranqüilamente, quando de repente eles chegaram atirando sem pensar em nada. Tinha criança lá na frente e bala passando para tudo quanto é lado e a gente com medo (…) A gente tava ali vendo que os policiais foram lá só para matar mesmo, não estavam olhando nem cara, nem idade, nem nada (…) Aí a gente ficou lá de fora pedindo pelo amor de Deus pra deixar a gente pegar as crianças, eles não quiseram deixar, e tiro comendo pra tudo quanto é lado e não foi só duas pessoas que morreram, tem muito mais gente morta. — comentou Luiza, moradora do Sonho Real.

—Eu tava na casa da vizinha quando os policiais chegaram. Aí eu saí correndo e vi a polícia atirando numa mulher com uma criança de colo, menos de 1 ano. Eles deram 2 tiros em cada uma. Foi aí que eles pegaram a criança e jogaram dentro da cisterna. Eu vi. Não vi o que eles fizeram com a mulher porque eu saí correndo se não eu morria também — Leidiane, moradora do Sonho Real.

Teve grande divulgação a versão policial de que apenas os oficiais portavam armas de fogo durante a operação, mas o que aparece em quase todas as imagens do despejo são soldados apontando espingardas e revólveres para a população. Ademais, a própria morte dos trabalhadores já evidencia a mentira.

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Dor e Revolta

Mulheres e crianças fizeram uma manifestação, em frente à Assembléia Legislativa de Goiânia, mostrando toda a sua dor e revolta contra o Estado genocida. No início da noite, todos os moradores que estavam livres foram levados para a Catedral Metropolitana de Goiânia. Era preciso velar os mortos.

Pedro Nascimento da Silva, 26 anos, mecânico; e Wagner da Silva Moreira, 20 anos, montador de forros,foram os únicos dois corpos liberados pelo IML. Os corpos chegaram à Catedral pela madrugada do dia 17. Ao ver os corpos, a revolta tornou-se ainda maior. Os dois trabalhadores traziam sinais de tortura. Wagner tinha marcas em todo o corpo, dentes quebrados, o maxilar deslocado e uma marca na mão: RMV, que provavelmente significa Ricardo Mendes Vingança ou Vitória, referindo-se ao tenente do GATE, ferido na madrugada anterior ao massacre. O povo demonstrou todo seu ódio contra todo e qualquer inimigo que aparecia. Um câmera da TV Anhanguera (repetidora da Globo) foi expulso da catedral sob os gritos de “mentirosos”. Ele teve sua filmadora totalmente destruída pela massa de moradores, pelo fato da repetidora ter veiculado mentiras durante todo o processo de luta, colocando povo contra povo, impedindo que mais pessoas apoiassem os moradores.

Durante todo o velório os desabrigados não se cansaram de relatar os momentos de terror que viveram e sua revolta diante da situação. No dia 17, por volta das 15 horas, quando os caixões já seriam fechados e levados num cortejo, os moradores descobriram um policial disfarçado dentro da igreja. O agente tentava prender um dos líderes do movimento, o Serjão. Tão logo foi descoberto, os moradores tentaram desarmá-lo. O policial sacou a arma e atirou em direção à multidão, enquanto surgiam mais dois policiais em seu auxílio, efetuando mais cinco tiros para dispersar o povo e possibilitar a fuga do provocador. Um deles foi capturado pelo povo e tornou-se alvo de toda a ira popular. Mas logo vieram os oportunistas, dentre eles elementos da direção da igreja, procurando “proteger” os policiais. De repente, chegaram dezenas de outros policiais apressando-se em escoltar os colegas.

Oportunistas e criminosos

O oportunismo esteve presente na luta por moradia desde o primeiro momento, dando ar de verdadeiros comícios às assembléias, onde ao povo só cabia aplaudir. A massa passou a tomar o microfone diante da iminência do confronto para contrapor-se às propostas de retirada da área feitas pela direção. O povo queria lutar até o fim e acabou obrigando a direção a aceitar esta decisão. Eram cheias de vigor, razão e emoção as falas dos moradores.

Oportunistas de todo o tipo dividiam o palanque sem nenhum constrangimento. A direção do movimento, na figura do presidente da Associação de Luta Pró-moradia, Américo Rodrigues, era ligada ao MTL (Movimento Terra, Trabalho e Liberdade), que por sua vez é ligado ao P-SOL. Mas não era esta a única organização, também havia PSDB, PT, PDT, quadros das igrejas católica e evangélica, sempre afirmando que o Poder Público efetuaria a desapropriação da área, avalizando as promessas de campanha dos, então, candidatos, muitos deles eleitos, inclusive o atual prefeito Íris Rezende. Todos se diziam os autênticos porta-vozes dos moradores do Sonho Real. — No início, no pleito eleitoral, o governador Marconi e o Sr. Íris Rezende nos prometeram o céu no lugar da terra e nos mandaram para o inferno no final — disse um emocionado morador, durante o velório dos dois trabalhadores assassinados.

Todas as casas do Setor Sonho Real foram derrubadas. A população conseguiu reaver apenas uma pequena parte do que possuíam porque a polícia roubou, quebrou e ateou fogo ao que podia. O cenário é revelador: em meio às ruínas do que antes eram dignas residências de proletários, é possível ver móveis, eletrodomésticos, calçados, brinquedos, tudo destruído ou queimado. Até o fechamento desta edição, as famílias despejadas do Sonho Real se encontravam alojadas em dois ginásios da periferia de Goiânia, no setor Novo Horizonte e Capuava. Não há colchões para todos e a alimentação é a mesma servida aos detentos da casa de prisão provisória e de péssima qualidade. Muitas pessoas estão doentes por causa das péssimas condições de higiene e alimentação, apresentando diarréia e até um surto de sarna. A tragédia se completa quando se verifica que os doentes não foram atendidos no posto de saúde, localizado atrás do ginásio, simplesmente porque não têm endereço.

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