Esse breve artigo tem como único propósito situar o setor dos “cooperativistas” mineiros no contexto da luta de classes em uma nação oprimida — a Bolívia —, onde se desenvolve um capitalismo burocrático. Destacamos que o ocorrido em Huanuni tem sido um enfrentamento de massas contra massas, e não um confronto de novos burgueses contra proletários, como faz crer o governo de Evo Morales, que praticamente tem responsabilizado seus — até há pouco — aliados mineiros “cooperativistas”. Também Morales nega que seu governo tenha lançado provocações ao movimento, ou aos outros setores (como, de fato, anda fazendo) como o cocalero, o fabril e as organizações sindicais departamentais das quais, no devido momento, forneceremos detalhes.
O governo de Evo Morales tem levantado as mãos diante do conflito entre mineiros sindicalizados da Corporación Mineria de Bolivia — Comibol e os “cooperativistas” mineiros na localidade de Huanuni. Como desde o início de outubro, escusa-se de qualquer responsabilidade, sem economizar palavras para denunciar a ambição dos “cooperativistas”, pretendendo desconhecer que este último setor foi seu aliado eleitoral — principalmente da camarilha dirigente “cooperativista” —, estendeu um cordão de isolamento em torno da Praça Murillo no dia da sua posse na Presidência, numa grotesca imitação 1 do que fizeram em 9 de abril de 1952 os operários fabris, na posse de Victor Paz Estenssoro 2 no contexto da chamada Revolução de 1952.
Para os meios de comunicação favoráveis a Morales, os “cooperativistas” mineiros são empresários ou proletários transformados em pequeno burgueses 3, uma falácia que pretende desconhecer as complexas relações sociais de produção que se entrelaçam num país onde se desenvolve o capitalismo burocrático.
Pretende-se, por acaso, dizer que as reformas neoliberais dos anos 80 na Bolívia, identificadas com o simbólico Decreto Supremo Nº 21060, de agosto de 1985, converteram operários mineiros em empresários ou em pequeno burgueses? Pretende-se estabelecer que, na produção mineira boliviana, os grandes beneficiados já não são nem o imperialismo nem os burgueses bolivianos?
Com as reformas neoliberais, as demissões massivas dos mineiros trabalhadores da Comibol e a paulatina privatização da mineradora estatal, coincidentes com um contexto econômico mundial de queda dos preços internacionais e dos minerais — em particular do estanho —, muitos dos mineiros demitidos optaram pelos mais diversos caminhos, entre os quais trabalhar como vendedores ambulantes nas cidades do eixo La Paz/Cochabamba/Santa Cruz de la Sierra, como cocaleros (plantadores da folha de coca), motoristas do transporte urbano, ou mesmo se aferraram à mineração, fazendo-se “cooperativistas” mineiros.
O termo “cooperativista” vai entre aspas, porque a rigor não existem cooperativas, porém associações de mineiros desempregados que foram atuar nas minas pouco atraentes de investimentos, em condições paupérrimas, cujo funcionamento infringe toda norma de segurança industrial e ocupacional, com tecnologias rudimentares e condições de trabalho desumanas.
Esses “cooperativistas” mineiros operam sem ter uma relação de trabalho concreta e direta. Inexiste um empregador formal ou aparato administrativo para controlar o processo de trabalho, o processo de emergência, que sofreu sérios rebaixamentos. Também se fragmentou o que Marx chamou de cooperação no processo produtivo 4, característica do capitalismo que converte o resultado da produção em um produto social.
Sob tais condições, acabou surgindo entre os “cooperativistas” e as empresas mineiras nacionais e transnacionais uma casta de intermediário, a dos “resgatadores”. Instalados fora das minas, compravam os minerais extraídos pelos seus outrora companheiros para logo vendê-los em seguida aos que entraram por conveniência para esse tipo de exploração capitalista, a qual Marx denomina de inserção formal no trabalho em capital 5.
As distintas posições que os “cooperativistas” mineiros foram assumindo no processo de produção, fizeram com que uma ínfima parte deles se aburguesasse. Outra, submetida apenas formalmente pelo capital, se semi-proletarizou, e ainda outra parte se lumpen-proletarizou. Em todos os casos, sua relação com capitais, tanto nacionais como transnacionais, se manteve, como dissemos, de maneira indireta.
Tudo como as reformas neoliberais: longe de converter proletários em patrões, submeteram-nos a diferentes condições de exploração, reimpulsionando assim o capitalismo burocrático, que é a forma de desenvolvimento do capitalismo no Terceiro Mundo.
Marx observa que a inserção formal antecede a inserção real do trabalho ao capital nos países e na época em que realizou sua investigação sobre o desenvolvimento do capital, em um contexto onde o imperialismo recém surgia. No caso boliviano, mais especificamente,da produção capitalista mineira na Bolívia, ocorre um processo inverso — primeiro a inserção real e em seguida a inserção formal do trabalho ao capital.
Isso é explicado na plenitude da teoria do capitalismo burocrático 6, onde se inserem como categorias de análises do processo de produção capitalista ao imperialismo 7 e suas alianças com as frações burguesas — compradora e burocrática — de uma nação terceiro-mundista. Esta teoria desmantela as visões evolucionistas do século XIX, inseridas primordialmente pelas correntes positivistas, dotando de um corpo teórico que permite estudar a realidade social no movimento, que como síntese permite a compreensão para assumir novos desafios na luta pela emancipação do povo, a um processo onde a última palavra não está dita, onde os triunfos e derrotas do povo não são um desígnio divino, porém fruto de acertos e erros na concepção e nos métodos.
1- As patéticas imitações com as quais Morales tem pretendido, e permanece pretendendo, encenar um talento revolucionário, levam a recordar a frase com que Marx inicia seu O dezoito brumário de Luis Bonaparte, onde com ironia assinalava: “Hegel disse em alguma parte que todos os grande feitos e personagens da história universal aparecem, diríamos, duas vezes.Porém se esqueceu de agregar: uma vez como tragédia, outra como farsa”. Sobre o acordo da polícia sindical fabril e a mineira, veja O poder dual, de René Zavaleta Mercado. La Paz: Amigos del Libro. 1987.2- Líder do Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR, partido que, próximo do Partido Revolucionário Institucionalista -PRI, do México, deve ser um dos que mais tem governado e se mantido na cena política em um país da América Latina. Apareceu na década de 50, fazendo o seu discurso “nacionalizador” e populista,para reciclar-se na década de 80 como partido neoliberal. Outubro de 2003 marcou seu ocaso, quando o novo líder do MNR, Gonzalo Sánchez de Lozada, teve de exilar-se no USA, logo que se viu obrigado a renunciar em razão de forte mobilização popular em toda Bolívia.3- Ver o periódico O joguete raivoso, nº162, de 15 a 28 /10/ 2006. Miguel Lora. Los Mineros empresarios desataron la masacre de Huanuni. Pp 8-10.4- Ver “Cooperação”. Cap. XI, do Tomo I de O Capital, de Karl Marx.5- Ver o Livro I. Capítulo VI Inédito. Resultados do processo imediato de produção. De Karl Marx. México: Siglo XXI. 15 Ed. 2000. Pp 54-58. “O caráter distinto da subinserção formal do trabalho em capital se destaca, com maior clareza, mediante o cotejo com situações nas quais o capital já existe desempenhando determinadas funções subordinadas, porém não ainda em sua função dominante, determinante da forma social geral, em sua condição de comprador direto de trabalho e apropriador direto do processo de produção”.
6- José Carlos Mariátegui, sem conhecer a teoria do Capitalismo Burocrático foi certeiro na compreensão da complexidade do desenvolvimento do capitalismo em países do Terceiro Mundo, como o Peru do começo do Século XX. Ver seus 7 ensaios de interpretação da realidade peruana. Lima:Amauta. 56ta. Ed.91.
7- Sobre a participação das transnacionais em Huanuni,ver o periódico O Juguete ravioso, N° 162, de 15 a 18 de outubro de 2006. Magdalena Cajías. Huanuni, la mina que desafio al 21060 – Pp.11-12 e artigo “A garra transnacional no massacre de Huanuni”, em www.econticiasbolivia.com de 12 de outubro de 2006.