Dona Osorina teve o marido, de 73 anos, espancado pela polícia
Mais de um mês depois do criminoso despejo do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, São Paulo, ex-moradores da região seguem entregues ao abandono, a maioria ainda vivendo em abrigos, sem nenhum tipo de reparação pela destruição de suas moradias e seus pertences. Entre os inúmeros jurístas críticos da violenta ação, estão os juízes do trabalho e professores Jorge Souto Maior e Gerivaldo Neiva, da Associação Juízes Para a Democracia.
Um mês depois do despejo de 2,5 mil famílias da favela Pinheirinho, a situação dos ex-moradores não mudou. Apesar de ter recebido os cheques do auxílio-aluguel e do auxílio-mudança, no valor total de mil reais, a ex-moradora Eni Vieira Dias, de 57 anos, ainda vive provisoriamente no abrigo do Jardim Morumbi, em São José dos Campos.
— A gente procura, mas não acha casa, e quando acha é R$ 1.200,00, R$ 1.300,00. É uma despesa muito grande para o dinheiro que temos. Perdemos tudo, como vamos viver? O Cury — Eduardo Cury, prefeito de São José dos Campos — e o governador — Geraldo Alckmin— deveriam estar no nosso lugar. Vamos fazer o que com mil reais? Esse valor para eles é só o café da manhã que pagam. Nós não merecemos isso. Não temos vasilha, fogão, como é que vamos cozinhar?
Como é que nós vamos alugar uma casa nessas condições? — pergunta dona Eni.
Também no abrigo Jardim Morumbi, Dona Osorina — entrevistada por nossa reportagem no dia seguinte ao despejo, na ocasião abrigada na Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro — hoje encontra-se na mesma situação de abandono.
— Aqui fica todo mundo junto, não tem jeito não. Está ruim a convivência, mas é o que dá para fazer agora. Eu vou te falar a verdade, não aguento mais andar. Bem no comecinho a gente ainda encontrava casa, mas não tinha dinheiro. Agora que o cheque está para sair, não tem mais casa no valor que dá para pagar. E a imobiliária ainda pede três meses adiantado — lamenta.
Quando foi entrevistada pela reportagem de AND, Dona Osorina disse que seu marido, Ivo Teles dos Santos, estava desaparecido. Muito machucado, o senhor de 73 anos foi encontrado no Hospital Municipal de São José dos Campos depois de ter sido espancado por policiais. O caso de Ivo foi apenas um dos 507 casos denunciados pelos ex-moradores do Pinheirinho em um dia de coleta de depoimentos de violência física e de perdas e danos materiais ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).
Em audiência realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado no dia 23 de fevereiro, ex-moradores do Pinheirinho denunciaram as barbaridades que sofreram durante o criminoso despejo.
Tiro nas costas
Um dos depoimentos que marcaram a audiência foi o de Maria Laura, esposa de David Washington Castor Furtado, atingido por um tiro disparado pela Guarda Municipal de São José durante o despejo do Pinheirinho. David tentava proteger sua família dos disparos quando foi atingido. Ele ficou hospitalizado por 17 dias.
— Era para mim aquela bala. Vi quando o guarda apontou na minha direção. Saí correndo e gritando. Quando olhei para trás, meu marido já estava atingido — contou Maria Laura.
Segundo David, os exames comprovaram que a bala que o atingiu era de metal, e não de borracha. O rapaz disse que ainda apresenta sequelas, com o comprometimento da “raiz do nervo da perna esquerda”.
— Não desejo para ninguém o que vivi: primeiro, perder a casa; segundo, levar um tiro e correr o risco de ficar tetraplégico — lamentou o rapaz.
Integrante da Associação Juízes Para a Democracia, o juiz do trabalho e professor universitário Jorge Souto Maior, em entrevista ao programa Justiça & Democracia, da TV Justiça, disse ter ido ao local conferir com os próprios olhos a miserável situação em que ficaram milhares de trabalhadores pobres após o ataque do Estado reacionário contra o Pinheirinho.
— Eu fui até o Pinheirinho para saber, de fato, o que estava acontecendo. Até porque as notícias que eram veiculadas sobre o assunto vinham muito truncadas e me causavam muita estranheza. A melhor forma de entendermos uma realidade é participando dela. A primeira coisa que me assustou foi o bloqueio policial que cercava o local. Eu fui até lá para ver o que estava acontecendo e não pude chegar ao local — explica o juíz.
Propriedade versus humanidade
— Não dá pra entender qual foi a motivação da juiza Márcia Loureiro para tomar essa decisão liminar, que foi encampada pelo próprio Tribunal de Justiça de São Paulo. Ou seja, o próprio presidente do TJ assumiu a responsabilidade pela ação, o que, na minha opinião, não se justifica processualmente. O que há é uma limitação da análise da questão ao aspecto do direito de propriedade, que nós temos que lembrar que está ligado a uma função social. O que quer dizer que, necessariamente, deveria ser discutida a função social que estava sendo cumprida naquele local antes da reintegração de posse. O direito das pessoas que viviam ali, em última análise, eram direitos humanos: direito à habitação, direito à moradia, direito à dignidade. Esse aspecto do ordenamento jurídico, simplesmente não foi levado em consideração. Eu entendo o caso como uma grande tragédia humanitária. Na minha concepção o direito à propriedade não poderia se sobrepor a todos esses outros direitos — diz.
Outro juiz do trabalho e Membro da Associação Juízes para a Democracia, o professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP, Gerivaldo Neiva, também criticou a ação do Estado contra o Pinheirinho em seu artigo O caso Pinheirinho: Um desafio à cultura nacional, publicado em seu blog na internet. Disse o magistrado:
“O maior risco que vislumbro em situações como essas é o da produção, e acatamento, de argumentos que tentam legitimar as atrocidades verificadas, desconsiderando-as enquanto tais ou as justificando por intermédio do Direito, como se os atores não fossem responsáveis pelos seus atos, apresentando-se apenas como espécies de escravos de uma imposição legislativa. Essa racionalidade é destruidora dos vínculos de solidariedade, desvirtua a finalidade social e humanística do Direito e das estruturas de poder, gera a perda da própria consciência humana e, no caso específico do Brasil, acaba servindo para preservar, sem possibilidade concreta de oposição, a injustiça social que assola a maior parte da população brasileira. A falta de moradia e o desrespeito à dignidade humana das classes economicamente menos favorecidas.”
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Fontes: Associação Juízes para a Democracia, Agência Senado e Rede Brasil Atual