Josemar dos Santos é um brasileiro comum. A história que se passou com ele poderia ter acontecido com seu pai, sua tia, seu irmão ou mesmo com você ou comigo.
Josemar nasceu numa família numerosa. Eram 13 irmãos. Uma família grande tem suas vantagens, mas no caso de Josemar, eram, quase sempre, desvantagens. Ele tinha que dividir o colchão com mais três irmãos e também a única refeição diária, além de ajudar a cuidar dos menores.
Aos cinco anos, ele já ajudava os pais na roça. A roça não era deles, é verdade, mas o pai cuidava como se fosse. O suor que caía do rosto dos 15 integrantes da família Santos transformou o patrão do pai de Josemar em um homem de muitas posses. O pai de Josemar não sabia explicar muito bem este fenômeno, mas se o padre dizia que era porque Deus queria assim, não era certo duvidar.
O patrão do pai do Josemar era um homem muito ocupado. Diziam que ele era deputado. A primeira vez que Josemar ouviu a palavra deputado, ainda criança, teve medo. A verdade é que o patrão do pai causava medo nele. Ele sempre reclamava e dizia que o serviço estava mal feito, não importa o quanto todos tivessem trabalhado. De tão ocupado, o patrão do pai de Josemar resolveu mandar todos os colonos embora da roça. Ficou apenas o caseiro. A roça agora seria apenas para o descanso do patrão do pai de Josemar.
A família Santos resolveu descer mais um pouco no mapa do país. Inicialmente, a mãe de Josemar achava que cada pessoa que falava diferente e se comportava diferente era de outro país. Depois ela aprendeu que o que ela chamava de país, eram, na verdade, os estados brasileiros.
O pai, a mãe, e os 12 irmãos de Josemar acabaram se fixando numa cidade que se destacava pela produção de café. Havia trabalho durante os quatro meses da colheita, depois era se virar como pudessem, fazendo uma diária aqui, outra acolá. Mas o mais fascinante para Josemar, desde que começou a trabalhar na colheita do café, foi beber café de verdade. Na roça em que morou, a família Santos só plantava um mundaréu de cana. O patrão era que trazia o café da cidade, já moído em pacotinhos de 500 gramas. Na colheita do café, Josemar aprenderia que a melhor parte do café era exportada, sobrando apenas as cascas para o café nacional.
Quando começou a colher café, nem 10 anos completos ainda, Josemar se recusava a esconder o café nas roupas para levar para a casa. O pai e a mãe tinham ensinado que era pecado. Depois, aos poucos, a própria família Santos foi aprendendo que aquilo fazia parte do trabalho cotidiano. Era uma forma de compensar os poucos reais que ganhavam por cada saca de café colhido e carregado sobre os ombros até o armazém. O café que era armazenado em roupas e na marmita não era vendido, servia apenas para o uso da família até a colheita vindoura.
Josemar, com muita dificuldade, concluiu a 4ª série do ensino primário. Ele sempre abandonava a escola no segundo semestre do ano letivo, período da colheita. A cada ano os patrões pagavam menos pela saca de café colhido e Josemar precisava trabalhar ainda mais para ajudar no sustento da família.
Um dia Josemar conseguiu um trabalho fixo, carteira assinada. Nesta época, já era casado e tinha dois filhos pequenos. Ficou animado, voltou a estudar. Era numa empresa de exportação de café. Ele trabalhou na empresa por vários anos. O patrão de Josemar estava abrindo uma filial em outro estado e resolveu transferi-lo. Ele deu baixa na carteira de trabalho de Josemar. Na filial ele teria cargo e salário melhor.
Tudo certo para a mudança. A nova vida prometia ser brilhante. Apesar de estar sem carteira assinada, Josemar deveria continuar a trabalhar até a véspera da viagem. Um dia, à porta do trabalho, ele foi atingido por uma bala perdida.
Josemar perdeu a mudança, a promoção, o emprego e a perna esquerda. O patrão havia dito que sem uma perna, Josemar não poderia carregar as sacas de café.
Ele ficou meses hospitalizado. Quando saiu, passou a andar com a ajuda de muletas. Com as muletas dirigiu-se ao posto do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) para requerer o auxílio-doença. Após exames, perícias médicas, pilhas de documentos e alguns meses, Josemar começou a receber o auxílio de um salário mínimo, duas vezes menos do que ganhava antes.
A cada seis meses, de muletas, Josemar retornava ao INSS para refazer a perícia médica. Josemar ia dar entrada no pedido de aposentadoria por invalidez, mas o médico lhe disse que quando fosse à hora, aconteceria automaticamente. E Josemar viveu assim por três anos. Certo dia, ao refazer a perícia, o médico lhe disse que mesmo sem uma perna, ele estava apto a trabalhar. Apesar de não ter qualificação, ele poderia trabalhar com informática, telemarketing e dezenas de outras funções. O médico negou a renovação do auxílio-doença de Josemar. Mais tarde, o mesmo médico viria a ser morto por um senhor de 61 anos, doente, a quem negou o pedido de aposentadoria.
Josemar foi para casa indignado e desesperado. Pensou até em se matar. Num país em que bacharéis não conseguem emprego, quem daria trabalho a um homem de uma perna só? Toda a vida de Josemar passou por sua cabeça. A cada minuto, crescia a indignação.
Como um martelo insistente, algumas memórias não o deixavam em paz. Josemar lembrou-se do dirigente do sindicato, ao qual ele jamais filiou-se. Achava que eles eram muito radicais.
O dirigente, em um dos piquetes da última greve, havia dito que os políticos nada faziam pelo povo, apenas para si próprios. Josemar achava exagerada a opinião do sindicalista. Agora, lembrava-se exatamente que, para convencer os grevistas do que falava, o sindicalista afirmou que o presidente havia chamando os aposentados de preguiçosos. O sindicalista contou que o presidente havia se aposentado porque a metade do dedo mindinho lhe fora arrancado durante o trabalho em uma fábrica de automóveis. Contou também que os senadores, após roubarem o povo por oito anos — coisa que tinham a audácia de chamar de trabalho — eram aposentados automaticamente. O medo que tinha da palavra deputado, quando pequeno, transformou-se rapidamente em ódio.
Josemar chegou em casa decidido. A tristeza havia desaparecido e somente a revolta povoava sua face. Ele tinha tomado duas decisões. A primeira e que valeria por toda a vida, era a de não mais votar em candidato nenhum. A segunda, procurar o sindicalista para exigir seus direitos.
Essa é a história de Josemar, mas poderia ser a minha ou a sua. Ele ainda não conseguiu na justiça o direito à aposentadoria. Mas segue firme, mesmo sem uma das pernas, e a cada ano eleitoral faz questão de não comparecer às urnas.