Além de fiéis à autêntica música popular brasileira, por décadas a fio, desde o início da carreira nos anos 40 até o momento, os Demônios são aquilo que a maioria dos políticos deveria ser: legítimos representantes do povo. Primeiro, eles também são povo, vindos de bairros operários da capital ou do interior paulista. Segundo, eles dizem, em letras, melodias e arranjos, não só o que o povo quer, mas também o que ele precisa. Terceiro, são excelentes embaixadores, não só de São Paulo mas de todo o Brasil, um de nossos melhores atrativos e “produtos” de exportação.
Vale lembrar, os Demônios têm três LPs lançados somente na Argentina e seu arranjo para Trem Das Onze, de Adoniran Barbosa, foi muito bem imitado pelo cantor italiano Riccardo Del Turco, o que ajudou a composição a se tornar uma das mais vendidas na Itália, em todos os tempos (embora lá ela atenda pelo título de Figlio Unico).
E você pode reparar: quantas pessoas sabem cantar, com poucos ou nenhum erro, Saudosa Maloca, Ói Nóis Aqui Tra Veis, Chum-Chim-Chum e muitas outras músicas celebrizadas pelos Demônios? Certamente bem mais pessoas que as que conseguem discorrer sobre política brasileira sem cair numa frase do tipo: “Esse ou aquele fato cruel ou pouco inteligente aconteceu durante o governo do Nilo Peçanha… ou do Getúlio? Ah, foi o Hermes da Fonseca? Ora, tanto faz, o poder iguala e nivela mesmo…”
Humildes com orgulho
Quase todas as frases notáveis que conseguirmos lembrar (além das popularizadas pelos próprios Demônios como Ói nóis aqui traveis; Deus dá o frio conforme o cobertor e Joga a chave, meu bem), se revelam adequadas para falar sobre eles.
Pois bem, o povo em geral é humilde, mal sabe onde fica o prédio da Bolsa de Valores, só conhece ações como as de despejo e pregões do sorveteiro ou do camelô, mas aprende rapidamente a sobreviver com o que lhe pagam, ou melhor, quando consegue receber. Esta humildade — não confundir com subestimação — garante ao povo brasileiro uma de suas mais notórias e saudáveis qualidades: o bom humor, zombando não somente do próximo e do distante, mas também de si mesmo. Pode-se dizer que o próprio compositor Adoniran Barbosa permaneceu adormecido por décadas, embora seguindo brilhante carreira de comediante, até o despertar de sua vocação para compositor popular satírico, grande observador dos costumes e atribulações dos cidadãos das classes empobrecidas. E os Demônios, comprovados sábios da música popular, deram às obras de Adoniran, e às de outros, a roupagem mais adequada para torná-las sucesso. Aliás, convém lembrar a definição de sucesso formulada por Jackson do Pandeiro: “Sucesso que eu digo não é uma música tocar muito no rádio, mas você ir a qualquer lugar e alguém cantar tua música”. Precisaríamos acrescentar que a maioria dos profissionais do rádio e TV de hoje, cuja dieta é feijão, arroz e jabá, desconfiam, ao menos, do verdadeiro significado de sucesso?
A melhor crítica
Os Demônios quase nunca fizeram outra coisa que, rindo, castigar os costumes. Prescindindo de engajamento político, como de etiquetas de “esquerda” ou direita, eles seguem o critério de que todo e qualquer comentário sobre o povo pode ser considerado política — sem falar nos shows do grupo, cheios de brincadeiras. Alguns exemplos são o samba A Lei Do Morro (de Jorge Duarte e Sérgio Moraes) que, gravada em 1958, continua atual: Lá no morro a ordem é ver e calar…, além da condenação resignada da especulação imobiliária de Saudosa Maloca:
Mato Grosso quis gritar
mas em cima eu falei
os homens tão com a razão
‘nóis arranja’ outro lugar
só nos ‘consolemos’
quando o Joca falou
Deus dá o frio
conforme o cobertor.
Ou o otimismo da sua continuação, Abrigo de Vagabundos:
Eu arranjei o meu dinheiro
trabalhando o ano inteiro
numa cerâmica fabricando pote
E lá no alto da Moóca
eu comprei um lindo lote
Dez de frente e dez de fundo
Construí minha maloca
Me disseram que sem planta
não se pode construir
Mas quem trabalha tudo pode conseguir
João Saracura
que é fiscal da Prefeitura
foi um grande amigo, sim
Arranjou tudo pra mim
Por onde andará
Joca e Mato Grosso,
aqueles dois amigos
que não quis me acompanhar
Andaram jogado
na Avenida São João
ou vendo o sol quadrado
na detenção
A minha maloca,
a mais linda que eu já vi,
hoje está legalizada,
ninguém pode demolir
A minha maloca,
a mais linda deste mundo,
ofereço aos vagabundo
que não têm onde dormir.
Subserviência? Clientelismo? Ou, ainda que não sendo revolucionária, simplesmente uma crônica proletária?
Escapando à censura
Mesmo durante o gerenciamento militar e sua já proverbial censura a tudo que o contrariasse, os Demônios conseguiam dizer muita coisa, usando a camuflagem do bom humor, gravando críticas sociais em forma de samba, atuais em pleno século 21. Porque hoje continua e evolui, em particular, tudo o que atormenta a vida do povo: do trabalho não pago à ineficiência do transporte coletivo (Trem Das Onze), segurança nenhuma e o terrível desconforto das favelas, como em Barracão Pegou Fogo, de Ary Carvalho e Ary Borges:
Barracão pegou fogo
nóis fiquemos sem lar
Isabé saiu gritando:
“Onde nóis vai morar?”
Abracei a Isabé
Que chorava sem parar
enxuguei suas lágrimas
vendo o barraco queimar
Só Deus sabe a minha dor
quanto eu sofri
de ver o fogo destruir, consumir
o barraco onde nóis foi feliz
Isabé vive a perguntar:
“Onde é que nóis vai morar?”
(falado:) “Paciência, Isabé, nóis vai pra casa da minha véia!
Uma característica dos Demônios, que funcionou a favor deles durante o gerenciamento militar, foi justamente sua musicalidade simples e direta — embora fãs mais atentos percebam que eles não se saem nada mal ao enveredar por estilos mais intrincados como a bossa nova.
A censura federal, preocupada em perseguir artistas mais ostensivamente perigosos, a exemplo de Chico Buarque, não deu muita bola para os Demônios e seus sambas gaiatos sobre malocas (embora, convém esclarecer, o governo tenha implicado, mas sem proibir, o samba Despejo na Favela, de Adoniran, por causa do verso Mas essa gente aí, hein, como é que faz?). De modo que em Apesar de você, de Chico Buarque, que foi imediatamente proibido na interpretação do autor, na dos Demônios seguiu liberada — lançamento que coincidiu, inclusive, com a proibição do disco de Chico.
E para muitos que, parece, de tanto comer melado fizeram questão de se esquecer da letra, aí vai:
Amanhã vai ser outro dia (três vezes)
Hoje você é quem manda
falou, tá falado
não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
falando de lado e olhando pro chão.
Viu?
Você que inventou esse Estado,
inventou de inventar
toda escuridão.
Você que inventou o pecado
esqueceu-se de inventar o perdão.
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Eu pergunto a você onde vai
se esconder
da enorme euforia?
Como vai proibir
quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
e a gente se amando sem parar.
Quando chegar o momento
esse meu sofrimento
vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
esse grito contido,
esse samba no escuro.
Você que inventou a tristeza
ora,tenha a fineza
de desinventar
Você vai pagar, e é dobrado,
cada lágrima rolada
nesse meu penar.
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
o jardim florescer
qual você não queria.
Você vai se amargar
vendo o dia raiar
sem lhe pedir licença.
E eu vou morrer de rir
e esse dia
há de vir
antes do que você pensa.
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Você vai ter que ver
a manhã renascer
e esbanjar poesia.
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
impunemente?
Como vai abafar
nosso coro a cantar,
na sua frente.
Apesar de você.
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal,
etcetera e tal,
La, laiá, la laiá, la laiá…
— O serviço secreto do Exército vasculhou nossa vida e não encontrou isso — comentou Toninho Gomes, quase unindo o polegar e o indicador ao descrever o fato. Toninho — último remanescente da formação original dos Demônios surgido nos anos 40, teve como causa mortis a falência múltipla de órgãos, em 25 de fevereiro último —, tocava violão tenor (de quatro cordas), no seu dizer, “o melhor do Brasil porque era o único”.
Pecadilhos perdoáveis
De fato, os Demônios parecem sempre ter estado acima de qualquer crise. Em 1973, quando Adoniran gravou seu primeiro LP, o Samba do Arnesto, de sua autoria, foi vetado pela censura, por não ser nem um pouco gramaticalmente correto. Mas a gravação dos Demônios continuou à solta, inclusive num dos pouquíssimos LPs brasileiros (Trem Das Onze, Chantecler, 1964) que nunca saiu do catálogo e adentrou a era do CD.
Aliás, para deixar ainda mais evidente a incoerência dos censores, no mesmo ano de 1973, os Originais do Samba também regravaram Samba do Arnesto e, além de nem serem notados ou perturbados pela censura, trouxeram a música de volta às paradas, ajudando a revelar Adoniran para as novas gerações.
É verdade, os Demônios merecem mil elogios por serem um excelente grupo vocal e instrumental, de estilo próprio e grande competência. Artistas como os Demônios da Garoa não se medem por pecadilhos de gravações, como a marcha Ontem, hoje e sempre (de Aluísio Figueiredo, Mário Aguinaldo e José Guimarães) “Ontem, hoje e sempre/isto é que é nação”; a interpretação de um jingle para a campanha presidencial de Adhemar de Barros pai e participações em show-mícios de figuras como Jânio Quadros e Paulo Maluf. Afinal, para os pobres, toda busca por melhores condições de vida, por melhor sucedida que seja, tem seus momentos nada agradáveis. Ao contrário do que pregava uma das formas com que assumia a falsa esquerda, a festiva nos anos 70, a qualidade artística de uma obra não se mede por seu vocabulário político. Lembra Tom Zé: — A classe média sempre começa discutindo arte e termina falando sobre moral.
Sem se aprofundar em coisa alguma, cabe dizer.
E, até onde sei, os Demônios nunca foram convidados como porta-vozes do governo, mesmo nas comemorações dos 150 anos de nossa, por assim dizer, independência, ao contrário de outros artistas (embora alguns destes tivessem aceitado o “convite” a contragosto). A máxima concessão de que tenho notícia é a de os Demônios, ao se apresentarem em uma pequena cidade, terem feito alguns shows com o nome “Anjos da Garoa” ao saberem que a população estava fugindo de um espetáculo apresentado por “demônios”. O que traz à lembrança o astrônomo Galileu, vítima que sobreviveu à Inquisição, ao dizer: “Eppur si muove”…*
Comédia em cada tragédia
Se nunca foram “guerrilheiros musicais” como um Geraldo Vandré ou Chico Buarque, os Demônios da Garoa também nunca puderam ser chamados de alienados. A alegria de suas interpretações nada tem a ver com escapismo. Muito pelo contrário, uma de suas grandes características é justamente interpretar temas trágicos em tom alegre (numa comparação aparentemente absurda, eles são o equivalente musical de um Will Eisner, que temperava os textos fortes de seu Spirit com um desenho caricato). Estes temas incluem a mortalidade infantil (Samba Da Criança, de Jorge Costa e Demóstenes Gonzales), a baixa qualidade da vida nas favelas (Barracão pegou fogo; Güenta a mão, João — de Adoniran e Hervê Cordovil) e até o saudosismo causado pelo progresso que beneficia apenas uma ínfima minoria, em Maloca dos meus amores, de Canarinho:
Que saudade da maloca que eu morava
tinha tudo que ‘adifício’ não tem
água na fonte não faltava, não
a luz de querosene não apagava também.
Há quem diga que o jeito gaiato dos Demônios trivializa a obra de Adoniran; já outros acham que Adoniran é mais Adoniran quando interpretado pelos Demônios, caso em que podemos ainda lembrar a famosa Diz-me com quem andas…
Falamos sobre o engajamento político dos Demônios limitar-se a um jingle e participações em show-mícios. Se eles sobrevivem, não é por terem sido elogiados por este ou aquele figurão da política. E se podem ser acusados de algum favoritismo/politicagem musical, foi terem gravado composições de pessoas a quem deviam grandes favores, movidos mais pelo caráter de tais pessoas que do talento demonstrado por elas.
— Gravamos cada troço besta… mas hoje não fazemos mais isso, não, resumiu Toninho. Parafraseando um adágio popular, amigos, amigos, música à parte…
Ayrton Mugnaini Jr., paulistano de 1957, é jornalista, compositor e pesquisador de música popular em geral.