Sempre que retomamos nossa terra

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Sempre que retomamos nossa terra

Lutando pela destruição do latifúndio, camponeses do Norte de Minas trilham o caminho da verdadeira libertação

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— Estou de parabéns — responde Orico, entusiasmado quando a pergunta é sobre a produção. Orico, 47 anos, se alegra ao dizer que este ano vai colher feijão catador e de arranque, arroz, mandioca, quiabo, fava, andu, cana-de-açúcar, abóbora, batata, melancia, banana, além de contar com a criação de galinha e a produção de requeijão. Só de roça — por roça se entende, no Norte de Minas, a plantação de milho — Orico tem três hectares prontos para a colheita. Seu Anísio, com 50 anos, também comemora:

— Tem milho queimando o cabelo, milho de boneca e milho croado; com a chuva que deu, tá ganho! — afirma.

O Seu Zé, com seus 67 anos, brada satisfeito:

— Estamos em cima de uma riqueza que eu nunca pensava em adquirir.

Os mineiros de Varzelândia, Orico e Anísio, o baiano nascido em Feira de Santana, Seu Zé, e um dos coordenadores regionais da Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas, receberam a reportagem de A Nova Democracia na casa do Orico, localizada na antiga Fazenda Malhadinha/São Francisco (hoje uma área chamada pelos camponeses de Nova Esperança). Com quase três mil hectares de terras, o Nova Esperança foi desapropriado pelos camponeses dirigidos pela Liga, em 2002, e fica no município de Itacarambi, MG, na margem direita do São Francisco. Dividido em cerca de 60 lotes, medidos e cortados pelos próprios camponeses, para atender às famílias que nele acamparam.

Para si mesmos

Orico serviu o café e o requeijão. Diante dos elogios, afirmou ter sido ele próprio quem fez o requeijão. Depois, sorrindo, admitiu que ganhou de um amigo, um vizinho. Interessado nas novas relações que se desenvolviam entre os camponeses diretamente envolvidos nas desapropriações de terras e os demais, pergunto pelos vizinhos. A primeira resposta sempre é evasiva, curta, apenas positiva:

— É tudo bom!

Após alguma insistência, Orico vai aos poucos respondendo; uma observação aqui, uma constatação ali e, por fim, um pensamento. Os vizinhos do acampamento Nova Esperança constituem um assentamento do Incra, o PA Milagres (Projeto de Assentamento — denominação das terras desapropriadas pelo Estado); a Vila Florentina, um pequeno povoado; o latifúndio Cantagalo, composto de 22 mil hectares e ultrapassando limites de quatro municípios, pertencente ao vice-gerente do Estado brasileiro, José Alencar; a Brasnica, empreendimento que envolve a exportação de bananas para o Japão; e o Projeto Jaíba, o maior projeto de irrigação da América Latina.

— Nós somos bem apoiados — resume Anísio. Afinal, a partir do momento em que se organizaram na Liga, ocuparam a terra, resistiram às investidas policiais, derrotaram em sucessivas audiências na justiça um antigo gerente que reclamava as terras da Malhadinha/São Francisco. Cortaram-na em lotes e ali se estabeleceram os camponeses, que nunca mais precisaram trabalhar para outros. Bem diferente do que ocorre com muitos outros que, assentados pelo Estado (Incra) no PA Milagres, estão afundados em dívidas e sem créditos.
— No coletivo é tudo unido, tudo obedecido — explica Orico, referindo-se ao princípio do centralismo democrático que se encontra no texto de organização da Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas (LCP-NM).

Ele diz existir um respeito muito grande entre os companheiros, que dividem as responsabilidades de zelar pela área (limpar estradas, manter as casas que ficaram do antigo latifúndio e servem ao coletivo), trabalhar em mutirão nas roças, tomar conta dos barracos dos companheiros quando estes têm de ir à cidade, dentre outras tarefas. Orico elogia esta organização de base, os grupos de dez famílias organizados pela Liga, que acabam também sendo os grupos (uma espécie de brigadas) de produção; grupos de ajuda mútua.

Apesar de o plantio individual ainda predominar, Seu Zé explica que, dentre as 60 famílias que dividiram a terra conquistada, as 22 que participam mais efetivamente da organização coletiva plantaram este ano em torno de 80 hectares de roça (milho) na própria área, e não dependeram da lavoura nas "ilhas", uma prática tradicional entre os camponeses que não possuem terra na região, e que plantam em pequenas franjas do solo quase sempre inundadas pelo São Francisco.

— Esse ano, quem dependeu das ilhas ficou "lorado": o rio lambeu tudo — lembrou Anísio. Na Fazenda Cantagalo, o gerente do latifúndio ameaça de demissão todos os seus empregados que ousarem, em suas horas de folga, visitar os "sem-terra", referindo-se ao camponeses da Liga, numa tentativa de manter os empregados afastados do sonho pela liberdade, conquistada pelos trabalhadores do Nova Esperança.

— Você se lembra daquele companheiro que passou por nós, aquele na carroça, que cumprimentou sorrindo? — me perguntou o coordenador da Liga. Respondi que sim, sabendo depois que aquele camponês trabalhava na Cantagalo, para o José Alencar, e não aceitou as ameaças, exigiu as contas e foi com a mulher e os filhos para o Nova Esperança, onde tem hoje um lote cercado e uma roça produtiva.

Orico e Anísio ouvem o coordenador da Liga, se entreolham e entram na conversa expressando o orgulho que têm de, no meio de tanta "gente grande", possuir aquele pedaço de terra conquistado por eles, só com o apoio da sua Liga; e de ser aquele pedaço de terra um símbolo de progresso, liberdade e de um novo tipo de democracia.

Na sala do Orico, uma velha estante de aço, caprichosamente limpa, mostra o pouco que ele ainda precisa comprar na cidade: sal, óleo, café, biscoito, sabão em pó, e também algumas garrafas de mel de [abelha] "europa". E, se certa emoção já envolvia a entrevista, a história da tomada da terra, contada pelo Seu Zé, revela um pouco mais da profunda transformação que o movimento camponês dirigido pela Liga opera nos sertões do Norte de Minas.

Em 21 de dezembro de 1967…

— Não, Seu Zé, estou perguntando quando foi que o senhor chegou aqui na Malhadinha — insisti, ignorante, quando o Seu Zé respondeu data, mês e ano.

— Meu pai saiu de Feira de Santana, se não me engano na década de 1950. Comprou um terreno em Carinhanha, pequena cidade do sul da Bahia que faz divisa com Minas Gerais, na altura em que o rio Carinhanha desemboca pelo lado esquerdo no São Francisco. Fomos com ele, todos os dez filhos. Não deu certo, muito ruim de chuva, uma "escassidão" de água danada.

Prossegue Seu Zé:

— Atravessei o rio, vim pra cá. Fui empregado na Fazenda Malhadinha. Derrubei muita madeira, serviço bruto. Tirei madeira para todas as construções daqui de dentro. Aqui, nunca teve nada. Um ‘capinzinho’ só. No mais era lenha e carvão. Já estava abandonada fazia um tempo, quando o Antônio Lopes — um oportunista e, então, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itacarambi — trouxe o pessoal. Eu era empregado, dei apoio. O Antônio Lopes traiu o pessoal quando o Incra falou que não podia comprar porque a Fazenda estava em área de APA (Área de Preservação Ambiental).

Mais de 50% das áreas rurais de Matias Cardoso e Itacarambi foram decretadas de interesse ambiental pelo governo do Estado para atender exigênci as dos investidores do Banco Mundial (capital japonês) e continuar financiando o Projeto Jaíba.

— Antônio Lopes então tirou todo mundo, falou que depois voltava, foi se assentar com os que lhe pagavam os lotes no Milagres, e aí acabou tudo. O gerente me mandou embora. Mandou procurar meus direitos. Eu procurei. Nunca tive nada assinado. Não deu em nada. Isso foi há uns sete anos, em 1998. Eu fiquei sabendo da Liga tem uns quatro anos, conhecia o companheiro da Liga, procurei ele. Ele deu apoio, explicou, leu a cartilha, eu peguei o caderno para listar os companheiros e caí no mundo. ‘Avancemo’ e ‘tomamo' de conta! — conclui Seu Zé alteando a voz. Orico também tinha estado no Milagres com Antônio Lopes. Recusou-se a comprar a vaga, foi sabotado até sair. Como Anísio, perambulou muito tempo tirando madeira e plantando nas "ilhas". Os dois vieram de Varzelândia, MG, hoje dividida em dois municípios. A região de onde Orico veio hoje é chamada de Verdelândia, onde fica Cachoeirinha, cenário de um massacre em que, em 1967, mais de cinco posseiros foram assassinados e 62 crianças morreram de sarampo, enquanto seus pais eram perseguidos por policiais e pistoleiros.

O pai de Orico não estava entre os cinco companheiros oficialmente assassinados. Mas foi preso, levado para Montes Claros e torturado em sessões de afogamento.

— Foi muita água no nariz — conta Orico — Nunca mais se recuperou, vindo a falecer alguns meses depois.

E Orico seguiu no mundo: Cachoeirinha, Jaíba, Itacarambi, dentre outros.

Foi enganado por um oportunista, mas seguiu lutando e encontrou o Anísio, o Seu Zé e, por fim, encontrou a Liga. Hoje tem terra com água — velho sonho de seu falecido pai e de todo sertanejo do Norte de Minas. A emissão de um documento lhe passando a posse da terra até que seria bom. Porém, mesmo sem ele a posse é respeitada.

Até o IEF (Instituto Estadual de Florestas) deixou de dar batida nas lagoas, já que estão protegidas pelas posses dos camponeses. E o mais alto representante do Estado na região, o vice-presidente da República, seu vizinho, mesmo com todo o dinheiro que dispõe, lhe têm medo; medo de deixar que os homens e mulheres que edificam a sua riqueza sejam contagiados pelo sorriso simples e livre de Orico e seus companheiros, agora organizados. Falta muito, mas já começou!

Novas condições de existência

No final da década de 60, o governo do estado de Minas criou a Fundação Ruralminas sem esconder que buscava uma saída para o problema da propriedade da terra, principalmente no norte do estado, entre os vales dos rios São Francisco e Jequitinhonha. Nessa região, as terras historicamente eram reconhecidas como devolutas — pertencentes à coroa portuguesa e nunca legalmente transferidas a possíveis proprietários; irregularmente repassadas a terceiros por eventuais exploradores que não tinham título de propriedade. Eram terras que, pela lei da República — inclusive pela Lei de Terras de 1850 — deveriam retornar ao controle do Estado. A Ruralminas receberia as terras do estado e, por seu regime jurídico, as repassaria para proprietários que, documentados, estariam então aptos a participarem do processo de desenvolvimento capitalista no campo. O imperialismo, o latifúndio e a burguesia manejavam para impedir que as lutas camponesas se elevassem ao nível de uma revolução agrária e democrática. O objetivo de titular terras para o latifúndio era encoberto com propaganda da "titulação de terras para todos" e a criação de "projetos de colonização". O próprio Projeto Jaíba de Irrigação (300 mil hectares, sendo 100 mil irrigados) foi desenvolvido a partir de uma destas colônias da Ruralminas.

Para muitos pequenos sitiantes a intervenção do Estado aparecia como uma saída contra a violência desencadeada pelo latifúndio local, que cobrava seu apoio ao regime de 1964 promovendo matanças e se apropriando de tudo que pudesse cercar.

Nas pequenas vilas e povoados semeados, desde Montes Claros até a divisa com a Bahia — nas encostas da Serra da Jaíba, às margens dos rios São Francisco, Verde Grande e Gurutuba (antiga região de quilombos) — até hoje a população exibe pequenas fichas que dariam direito a um título definitivo de propriedade que, até hoje, passados quase 40 anos, jamais lhes foi concedido.

Entretanto, os latifundiários locais e grandes grupos industriais, nacionais e multinacionais, receberam os documentos e financiamentos a fundo perdido, via Finor (Fundo de Investimento do Nordeste, gerenciado pela Sudene). O Grupo Ommeto, Tracbel, Agrivale, etc, para citar alguns, receberam milhões em financiamentos.

Um exemplo, e dos pequenos, encontra-se num documento que nos foi repassado pelo advogado da Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas. A Fazenda Yasmine, da Monvep — uma concessionária de veículos da Volkswagen, em Montes Claros — com uma propriedade avaliada em 76 milhões de cruzeiros, recebeu, à época, um financiamento de quase o dobro de seu valor: 128 milhões. O projeto que justificou este empréstimo público previa, quando de sua última etapa, o emprego direto de 32 trabalhadores, a produção diária de 5.000 litros de leite, mais de 4.000 cabeças de gado… Quando desapropriada pelos camponeses, em 2002, não havia na propriedade senão algumas dezenas de bois de um vizinho, uma vez que o caseiro alugava o resto de pasto para receber um salário mínimo, pois nem isso vinha conseguindo nos últimos anos.

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Nem capitalismo

Ao invés de prevalecerem os métodos capitalistas — tão decantados em prosa e verso pelos oportunistas de hoje, que fazem a apologia do "agronegócio" para justificar sua aliança carnal com o latifúndio na gerência do capitalismo burocrático — prevaleceram (na aliança entre o imperialismo, o latifúndio e a burguesia burocrática e compradora de então) os métodos do latifúndio.

Ao invés de empresas rurais, trabalhadores com carteira assinada e devidamente remunerados etc, etc, o que se viu foi a destruição das matas, transformadas em carvão, e o trabalho semi-escravo, em substituição ao semi-feudal. O antigo sistema que prevalecia na região era caracterizado pela "permissão" dos antigos coronéis para que os camponeses plantassem em suas (dos latifundiários) terras, desde que abandonassem ou lhe vendessem, a preço irrisório, toda a produção.

Já dando sinais de esgotamento e fracasso, uma vez que prevaleceu o poder e as relações de produção do latifúndio, inicia-se a fase dos grandes projetos de irrigação, financiados pela política desenvolvimentista do imperialismo na região — através do Banco Mundial, com a participação dos governos estadual e federal, estes através da Ruralminas e Codevasf/Banco do Nordeste/Sudene. Seriam criadas, então, ilhas de capitalismo, com água em abundância, energia, estradas… O Estado controlaria tudo para garantir que os recursos não fossem desviados, e seriam "assentados" pequenos e médios camponeses. Quem dera…

No Projeto Jaíba de Irrigação, o maior da América Latina, mais de 400 milhões de dólares foram investidos na construção de canais, estações de bombeamento de água, instalação de energia elétrica, depósitos e galpões, máquinas, implementos, equipamentos e insumos para irrigação, etc. Mais um fracasso. O Japan Bank, principal investidor de recursos via Banco Mundial, fez com que a compra dos equipamentos, tubos e máquinas fosse feita das empresas de capital majoritariamente japonês. Como os recursos eram liberados mediante a apresentação de resultados, como o "assentamento" de famílias camponesas, centenas destas foram listadas como tal sem nunca sequer terem acesso a um lote para morar, quanto mais para plantar.

Atualmente apenas a primeira etapa do projeto está concluída, sendo que a etapa II deve começar a operar completamente em breve, segundo anuncia a gerência FMI-PT. Dos 1.400 camponeses assentados "irrigantes", com direito a plantar em lotes de cinco hectares — se todos os 100 mil hectares irrigados fossem distribuídos para pequenos camponeses, a capacidade seria para 20.000 famílias — perto de 500 abandonaram seus lotes, outros tantos estão com água e luz cortadas, enquanto os restantes sobrevivem administrando dívidas ou resignados a uma produção sempre desvalorizada em relação à obtida pelos latifundiários japoneses (como a Brasnica, exportadora de bananas e frutas) ou empresários que receberam lotes no Projeto (em torno de 200 na primeira etapa, com lotes de 20 a 50 hectares, outro tanto na etapa II, sem limite de tamanho). Dos projetados 100 mil hectares irrigados, se concluída a etapa II do Projeto Jaíba, a área que será utilizada ficará em torno de 19 mil, ou seja não alcança os 20%. Dos dez motores utilizados para bombear a água, comprados da Toshiba, atualmente apenas um está em funcionamento. Das terras utilizadas, os pequenos camponeses respondem por menos de 40%. Praticamente todos os grandes latifundiários da região, como José Alencar, tem o seu quinhão no Projeto. A grande maioria das áreas vizinhas, nos municípios de Jaíba, Matias Cardoso, Itacarambi e até mesmo Januária, foram decretadas Áreas de Proteção Ambiental ou Parques Ecológicos.

Enquanto isso, mais de 5.000 famílias estão acampadas em barracos de lona, cadastradas no Incra, a grande maioria desde 2002 e, em alguns casos, já há sete anos. É intensa a perseguição dos órgãos de proteção ambiental aos pequenos camponeses.

Cresce e fortalece

Talvez seja por isso que se multipliquem tão rapidamente os Oricos, Zés e Anísios. Talvez seja por isso também que a Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas, em pouco mais de seis anos de existência, atue hoje em meia centena de áreas, acampamentos, agrupamentos de pequenos e médios camponeses, posseiros, assentamentos, bairros pobres, em aproximadamente 20 municípios da região. Todos enfrentam uma violenta reação do aparato estatal — que inclusive treinou na região tropa especial para atuar em conflitos agrários —, pistoleiros e grupos paramilitares, organizados pelo latifúndio através das sociedades rurais.

Certamente, bem mais importante que a quantidade de acampamentos ou assentamentos — critério utilizado pelo oportunismo e classes dominantes para reivindicar autoridade hegemônica ou reduzir o caráter do movimento camponês às reivindicações econômicas — é a qualidade deste movimento que encontramos no sertão das Gerais.

Profundas transformações ideológicas se verificam a partir da desapropriação e imediata posse da terra pelos camponeses pobres, que vão impulsionando novas transformações no terreno econômico e político. O exemplo da Malhadinha/São Francisco, ou melhor, Nova Esperança, em Itacarambi, não é o único em que o caminho independente é trilhado pelas massas camponesas do norte de Minas. É o caminho da conquista e defesa da posse da terra, do desenvolvimento das forças produtivas a partir da organização de grupos de base que passam a fazer parte do cotidiano das massas camponesas. Esses grupos não representam mais o associativismo forçado e imposto de fora para dentro, que tanto indigna o camponês, mas o resultado da ação consciente, vinda da necessidade de construção do novo poder.

O exemplo da Agrivale

A Agrivale é uma propriedade cujo tamanho original chegava a 20 mil hectares quando foi adquirida pelo Incra para aquilo que chamam de reforma agrária, na década de 80. Antes disso, já estava abandonada e tinha sido ocupada por camponeses. Está localizada praticamente dentro do perímetro do Projeto Jaíba, na estrada que liga o Projeto a Matias Cardoso. No entanto, diversas negociatas entre os órgãos do governo (Incra, Codevasf, etc.) a deixaram abandonada. Atualmente, excluindo sua parte que virou reserva ecológica, restam em torno de quatro mil hectares.

As estruturas abandonadas (casas, depósitos, poços artesianos) dão bem a dimensão de quanto dinheiro público foi desperdiçado no auge da farra da Sudene/FINOR, na década de 70. Conquistada em 2001 pelos camponeses organizados na Liga, a Agrivale até hoje permanece como sendo sua propriedade.

Um dos coordenadores da área, José Ferreira, de 45 anos, trabalhava na construção dos canais que atenderão a Etapa II do Projeto Jaíba. Sempre conversava com um colega de serviço, então ativista da Liga e hoje também um coordenador. Nesse período foi reavivando um sonho antigo: ser dono de um pedaço de terra. José Ferreira disse que até aquele momento nunca lhe havia passado pela cabeça entrar na luta pela terra. Mas se interessou, porque aquele movimento levado a cabo por camponeses e que lhe parecia distante, difícil, um tanto perigoso, se aproximou a partir do instante em que conversou com o companheiro da Liga.

A Liga, os homens e mulheres que ocupavam e desapropriavam terras eram como ele mesmo, tinham os mesmos problemas, os mesmos sonhos, os mesmos inimigos. Quando seu sogro lhe avisou que em 2001 seria a vez da Agrivale, não pensou duas vezes.

José Ferreira, ao entrar na terra, tinha apenas um casal de patos, presente de seu sogro. Hoje tem 50, cada um valendo, em média, R$ 20. No primeiro ano ele plantou 20 quilos de milho, passou a criar porcos e galinhas. Colheu cerca de 30 sacos "na palha". Comercializou uma parte e alimentou a criação com a outra. No ano seguinte, plantou 90 quilos, tarefa facilitada porque o grupo de ajuda mútua do qual já era integrante contratou um trator. Colheu 30 sacos debulhados. Já no terceiro ano na terra, plantou 120 quilos.

Coletivamente, com a participação ativa dos companheiros e companheiras da área, cada grupo de cinco famílias plantou em torno de cinco hectares. Tudo com trator. E o tempo ganho com a coletivização do trabalho permitiu ao José Ferreira plantar um hectare de amendoim, outro de feijão catador, além de abóbora, melancia e fava.

— Os que tiveram melhor empenho nos grupos foram os que mais plantaram também individualmente — conta José.

A compreensão de José Ferreira sobre o grupo coletivo lembra as palavras de Orico:
— O grupo é bom. Os camponeses trabalham muito mais animados. O responsável fala e todos os companheiros respeitam.

E se na Malhadinha/São Francisco cabe uma comparação com o assentamento oficial do Estado, no "Assentamento Popular" da Agrivale a comparação é com os camponeses irrigantes do Projeto Jaíba, que vivem no cativeiro, não podem tomar nenhuma iniciativa, gastam muito com água e energia. E na Agrivale não existem pragas, como no Projeto.

— Depois que você veio para a Agrivale já precisou trabalhar fora? — perguntei.

— Não, nunca mais! — respondeu, orgulhoso, José Ferreira, sem alterar o semblante sereno e firme.

Ainda fez questão de contar que hoje, na Agrivale, estão organizados seis grupos de famílias, que reúnem as 62 famílias que já cortaram seus lotes de 50 hectares cada um. Estão na terra vários companheiros que eram irrigantes no Projeto Jaíba, que decidiram sair do cativeiro e hoje estão felizes na Agrivale.

Em uma parte das terras da Agrivale, estão os companheiros que viviam acampados no Parque do Cajueiro e na Fazenda Santa Idália, duas áreas vizinhas, e que foram despejados pela polícia depois de resistir a um intenso cerco em 2003. Persistiram na luta e, hoje, em uma parte da Agrivale, plantam coletivamente a roça. Já é o terceiro ano em que a luta pelo aumento da produção coletiva se dá na Agrivale, onde atualmente 60 hectares são plantados no coletivo, de um total de área plantada de 120 hectares. Todos estão satisfeitos por seguir o caminho independente, sem as amarras do Estado burguês-latifundiário.

O caminho das massas

O coordenador de produção da Liga, que havia chegado no final da entrevista, fala das casas de alvenaria e adobe em Miravânia, MG — na Fazenda JJJ, tomada em 2000 e dividida pelos camponeses em lotes que abrigavam, em 2001, 40 famílias, e hoje é chamada de Barra dos Quilombos — e conta das roças de mandioca que produzirão até 30 sacos de farinha da melhor qualidade, com o preço chegando a R$ 120, o saco. Também explica que em Miravânia nunca entrou um centavo do governo. No Acampamento Vanessa (homenagem a uma menina de seis anos assassinada na resistência de Corumbiara, em Rondônia), em Manga, 54 famílias dividem os lotes cortados pelos próprios camponeses e o grande problema encontrado por eles é como armazenar a produção de milho e arroz. No acampamento Renascer, ainda em Manga, são 150 famílias e as roças, plantadas coletivamente, mesmo que cada um tenha sua parcela, somam 140 hectares de milho, 80 hectares de arroz, 40 hectares de mandioca, abóbora, feijão catador e melancia, sem contar as 300 cabeças de gado. Em Juvenília, MG, os camponeses — que lutam pela terra e contra o poder imperial do latifundiário baiano Nilo Coelho — decidiram tomar para si e criar coletivamente as galinhas de um programa governamental de segurança alimentar.

Quando o coordenador de produção se preparava para falar de outras regiões, chegou o coordenador de finanças da Liga, com os novos carnês de contribuição individual. Decorado com fotos do trabalho coletivo e de uma atividade realizada durante o I Curso de Formação Política da Coordenação da LCP-NM, que ocorreu em fevereiro deste ano, o carnê estipula o pagamento mínimo de R$ 2 por mês, recolhidos pelos coordenadores de finanças de cada área. Ele explicou que esta contribuição é discutida em assembléia e que muitos companheiros acham pouco, incrementando a contribuição com doações de alimentos para a realização dos encontros, reuniões e seminários.

Não restam dúvidas, já começou. Sob fogo cerrado do Estado, e toda sorte de dificuldades e privações, brilha vermelho, e ilumina o verdadeiro caminho da libertação, o sol do Norte de Minas.

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