Um dos conhecidos compositores da música popular brasileira, autor de famosas canções que embalaram clássicos do cinema novo, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (64) e Terra em Transe (67), o também cantor e instrumentista Sérgio Ricardo, fora do mercado fonográfico desde a década de 80, conseguiu furar o duro bloqueio imposto pelas gravadoras e lançar o CD Quando Menos se Espera.
Sérgio é autor, entre outros, dos sambas Zelão e Nasceu uma Rosa na Favela, do afoxé Ponto de Partida, da toada Arrebentação, do grito literário Esse Mundo é Meu e da canção Buquê de Isabel, seu primeiro sucesso, gravado por Maísa, em 1958, pela RGE.
Para o teatro o artista compôs: Ponto de Partida, de Gianfrancesco Guarnieri; O Coronel de Macambira, de Joaquim Cardoso; Os Gigantes da Montanha e Godspell, tradução.
Considerado um artista versátila, Sérgio também atua como cineasta, ator, escritor e pintor. Autor dos filmes Menino da Calça Branca; Esse mundo é Meu; O Pássaro da Aldeia; Juliana do Amor Perdido; Balanço do Vidigal; Traço e Cor; Voz do Poeta; o Espetáculo Continua e A Noite do Espantalho.
Descendente de uma família libanesa, o menino Sérgio Ricardo nasceu em 18 de junho de 1932, em Marília, interior de São Paulo e já aos oito anos de idade começou a aprender piano. Aos dezessete iniciou sua carreira na Rádio Cultura de São Vicente, SP, mudando-se para o Rio em 1952 e ingressando na Escola Nacional de Música. Por essa época, Sérgio começou a tocar nas boates da zona sul da cidade.
Uma das suas participações mais marcantes foi no chamado Movimento de Música de Resistência, nos anos 60, quando aparecia nos palcos dos festivais da canção, apresentando músicas que chamavam o povo à uma conscientização política, linha que segue até hoje. Foi também um dos fundadores do Circuito Universitário, iniciado no Rio, em 1968, e do Sombras, uma espécie de associação a favor da luta pelos direitos autorais e de intérpretes. Em 1972, criou o projeto "Disco de Bolso", lançando-se como produtor de "Águas de Março" de Tom Jobim, assim como dos estreantes João Bosco e Fagner.
Apresentou-se em importantes festivais no Brasil e no mundo, entre eles o Show da Bossa Nova no Carnegie Hall e a Temporada no Village Vanguard, em Nova Iorque, ambos em 1962; o Festival de Varadero, em Cuba, em 1980, e a apresentação do Cordel Sinfônico "Estória de João Joana", no Teatro Villa-Lobos, em Brasília (1985). Além desses, foi finalista no Festival de MPB da TV-Record de São Paulo, em 1967, no Festival Internacional da Canção Popular, da TV-Globo, em 1968 e primeiro lugar no Festival da Juventude na Bulgária, em 1968. Mesmo com todo esse repertório, Sérgio sofre marginalização por parte do mercado do disco no Brasil.
O artista vê nas gravadoras uma espécie de sinal vermelho para a música popular. Segundo ele, a proposta dos artistas não é condizente com o ideal dos diretores, que visam o imediatismo de resposta e o lucro máximo, não se preocupando em trabalhar a favor do povo, no sentido do crescimento da sua identidade, gosto e instrução, investindo na educação musical, afim de presenteá-lo como o que há de melhor na história, música, poesia, teatro e dança. "Eles acham que o povo é ignorante e jogam a ignorância para cima dele, pensando que essa é a resposta ideal", afirma.
Sérgio lembra que o mercado não dá importância ao processo histórico da evolução cultural da música, e nem busca na linguagem do povo o que há de mais bonito, através do seu atavismo cultural, para elaborar em cima disso, algo construtivo que venha colaborar com a beleza da linguagem da música brasileira, fazendo com que o melhor volte aos ouvidos do público.
Bossa Nova para o Tropicalismo, como se entre uma coisa e outra, não houvesse nada. No entanto, houve e foi a semente para muitos talentos de hoje, como Chico Buar-que, Gil e Caetano. "Há um mistério em torno deste momento chamado de protesto, em que queríamos conscientizar a nação de uma necessidade de transformação", recorda-se demonstrando não ter perdido esse desejo.
A música necessária
Além do momento musical, ele acredita que foram esquecidos, também, os artistas que fizeram parte deste e não mudaram os seus estilos de trabalho. Continuando sem falar de si, Sérgio cita Geraldo Vandré, que teve grande reconhecimento naquela fase e depois de ter sido proibido pela censura, existente naquele momento de ditadura, de aparecer em qualquer meio de comunicação, sumiu completamente. "Com a chamada abertura e o fim do regime militar no país, fiquei esperando aparecer na televisão, um especial do Vandré ou de qualquer outro daqueles artistas que faziam uma música chegada à realidade política, mas foi um silêncio total: nos esqueceram de vez", assume contristado.
Para Sérgio, esse é o maior furo histórico da música popular. A ditadura rompeu o famoso elo de ligação ou cultural, que existia naquele momento, com o público e, ao terminar o regime, não houve interesse, por parte dos que poderiam fazê-lo, em retomar esse elo. Na verdade, essa ligação representava os próprios artistas, que tentavam fazer a transição de um momento da música para outro.
"Enquanto não se recuperar esse momento e não se entender o que se queria naquele instante, não haverá evolução no processo da música popular. Ficará tudo parado, no marasmo que estamos vendo", expõe.
Na tentativa de resistência ao caos e imposição do mercado, a música popular marcha pela periferia ou espaços alternativos, como as Lonas Culturais e o Sesc de São Paulo. "Nesses locais, ela ainda consegue respirar um pouco", afirma o artista.
O Palco Livre é um desses espaços, que apresentou durante dois anos, na Estação Cantareira, em São Domingos, Niterói, o que há de melhor na música popular, virando uma plataforma para exibição dos seus melhores expoentes. Criado e coordenado por Sérgio Ricardo, o projeto tem o apoio da FAN – Fundação de Artes de Niterói, órgão da prefeitura, e encontra-se parado para reformas, aproveitando a falta de verbas da prefeitura para mantê-lo, devendo voltar em dezembro próximo.
Por lá já se apresentaram, entre outros: Carlos Lyra, MPB4, Guinga, Alceu Valença, Jards Macalé, Carlos Malta, Telma Tavares, Quarteto em Cy, e Léo Gandelman. "O projeto está tendo um sucesso incrível, porque há um público que procura loucamente o melhor dentro da música, por ainda não ter esquecido o que é bom. São cerca de duas mil pessoas que enchem o nosso cenário", conta com orgulho lembrando que os shows acontecem toda terça-feira e tem entrada grátis.
Destinados àqueles que se vêem sem opção de mercado em meio a tantas mediocridades artísticas, o evento apresenta músicas genuinamente brasileiras, que vão do samba ao choro, passando pela bossa nova, forró, xaxado e uma infinidade de estilos. "É uma tentativa de preservar e manter viva a verdadeira música brasileira: aquela que desperta inveja, admiração e curiosidade a qualquer gringo", dizem os organizadores.
Além de coordenar, apresentando e explicando para a platéia que importância tem os artistas que participam, Sérgio toca piano, violão e canta. "Na verdade, não temos o aval das televisões, mas a memória da música do povo, que ainda guarda um pouquinho da nossa cultura. Eles lotam essas salas e é sempre uma coisa muito bonita, mas insignificante perto do chamado grande mercado", fala com orgulho, notando que o espaço é bem em frente ao campus da UFF, ajudando a atrair muitos jovens.
Além dos grandes nomes, a maioria marginalizados pelo mercado, o Palco Livre apresenta os novos talentos, previamente selecionados, levando-se em conta a qualidade das músicas. Para Sérgio é uma grande surpresa, pois vê o processo da música popular continuar nas mãos desses, de uma forma que considera exuberante. "Apesar disso, as gravadoras e televisões continuam preferindo o lixo cultural e não querem nos abrir espaços", comenta, lembrando ainda que, por ser um país imenso, teoricamente, o Brasil tem espaço para todo tipo de trabalho.
Sérgio sabe bem o que fala quando diz que o mercado encontra-se totalmente fechado, já que tem enfrentado uma grande resistência na tentativa de levar a música popular para a televisão. "Estou querendo encontrar uma brecha dentro da Tv Globo, mas resistem, principalmente por estarem viciados em uma linguagem que aposta na ignorância do povo", lamenta-se.
A idéia do artista é fazer um programa gravado no próprio local do espetáculo, ou, até mesmo, dentro de um teatro ou estúdio da tv. "As formas são muitas, no entanto, mantendo-se a filosofia de mostrar o que há de melhor na música, do afamado artista ao totalmente desconhecido", observa.
O mercado alternativo de discos
Apesar de toda dificuldade, Sérgio Ricardo, assim como outros artistas, encontraram no mercado alternativo de discos uma saída para os seus problemas. Quando Menos se Espera, foi gravado em seu estúdio caseiro, no Vidigal, no Rio. Para isso usou o computador como base e chamou amigos para gravarem alguns instrumentos. A voz também foi gravada em casa.
"Ao fechar negócio para o Palco Livre, o ex-prefeito de Niterói, Jorge Roberto, firmou também um apoio ao meu cd, para que fosse feito pela Niterói discos, que é uma dessas entidades interessantíssimas da periferia, existente há onze anos, que estimula a criação musical patrocinando a feitura do disco, para que o artista fique com mil unidades e saia distribuindo como puder e com o máster, para fazer suas repercussões como queira", explica elogiando.
A Niterói Discos produziu a metade que faltava do cd, ou seja, prensagem, capa e finalização. "Ela favorece e muito a vida dos artistas de Niterói", garantiu Sérgio Ricardo, que aproveitou para mudar-se para a cidade e tornar-se um cidadão niteroiense, como brinca.
Mais uma obra prima
O disco está muito bom, como todo o trabalho do artista. É composto por quatro releituras de sucessos seus: Zelão, Nosso Olhar, Beto Bom de Bola e Calabouço, e músicas inéditas.
À faixa Zelão, que fala de um favelado que perde o seu barraco com a chuva, acompanha um desenho animado, em forma de clipe, feito por ele no computador. "É muito interessante. O desenho começa com a queda do barraco e depois a comunidade, em mutirão, o ajuda a reconstruí-lo. São quatro minutos de animação", comenta descontraído.
Calabouço fala da morte do estudante André Luis, no restaurante universitário, no Rio de Janeiro, durante invasão da polícia, na ditadura militar. No disco que trazia essa música, em 1973, Sérgio aparece com uma tarja tapando-lhe a boca. O Samba Beto Bom de Bola e Nosso Olhar, também tratam do social, sendo que a primeira o levou as finais de um festival da canção, em 1967.
Entre as inéditas estão: Vida brasileira, uma música política composta para o filme de Otávio Bezerra: Lado Certo da Vida Errada. Com ela ganhou, neste ano, em Brasília, o prêmio de melhor trilha sonora; Morro à Matriz é um comentário muito interessante sobre a deterioração dos grandes centros; O Predador é a história de um estupro, algo delicadíssimo para se trabalhar em música; Um Abraço a Marília é um choro em homenagem a sua terra natal; Presa às Grades da Paixão, fala de liberdade, mas de uma maneira bem poética; Chama é outra música romântica; e Quando Menos se Espera é a faixa que dá o nome ao disco.
Um Show Quando Menos Se Espera
Além do disco, Sérgio Ricardo, está com o show Quando Menos se Espera, em excursão por todo o país, pretendendo também levá-lo para o exterior, como Portugal e Espanha.
Recentemente, apareceu com ele na TVE. "Eles gravaram um show e colocaram no ar", conta com alegria.
Em Quando Menos se Espera, o artista apresenta as músicas do disco, mas com a presença de músicos, que tocam ao vivo. "Estou com uma banda, composta por violão, flauta, sax, baixo e bateria. Os arranjos e violão são de Rogério Souza, que faz parte do grupo Nó em Pingo D'água. As canções recebem pequenas modificações, apenas para ficar dentro de um conjunto músical, já que usei muitos recursos de computador e isso não fica bom em show ao vivo", afirma do alto dos seus cinqüenta anos de trabalho.
Trechos do Manifesto Palco Livre
"Quando se fala em política cultural, os mais corrompidos viram as costas, os menos torcem o nariz pra não perderem suas médias conquistas, e as vítimas choram mágoas. Raros aqueles que acordados ante a deformação, tentam recompô-la, e quase sempre acabam engolidos pela indiferença e apatia geral. Água que não se escoa. Assim é que, em meio a esse marasmo, foi se perdendo o rumo da nossa identidade cultural".
…. "Para certos setores, cultura é sinônimo de comércio"….. "Não se percebe, com antolhos para a realidade, que a cultura é o mar onde desembocam todos os afluentes da transformação de um povo, e que, por conseguinte, cabe a ele fazer seu próprio caminho".