Os brasileiros vêm sendo alvo de uma monumental tentativa de embuste, na sequência de uma série de casos de grampos telefônicos legais ou ilegais e, principalmente, da gravação e divulgação de uma conversa entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres.
São investigações de fachada, falsos surpreendidos, mentirosos fingindo-se de escandalizados, CPI dos grampos comandada por um legítimo representante do Estado policialesco, e promessas de regulamentação daquilo que foi criado exatamente com o objetivo de funcionar na surdina, à revelia de qualquer supervisão de caráter verdadeiramente democrático.
As classes populares não podem se deixar iludir por toda esta concertação, que tem por objetivo fazer passar em brancas nuvens o ponto-chave de todo o imbróglio, ora vindo à tona com os sucessivos escândalos de arapongagem: A Abin (Agência Brasileira de Inteligência) não passa de uma reedição do SNI, o Serviço Nacional de Informações, criado sob a supervisão da CIA em 1964 pelo gerenciamento militar então recém instaurado no Brasil.
A Abin foi criada há quase dez anos, e quase dez anos depois do fim do seu antecessor. O "monstro" — nas palavras do antigo manda-chuva do SNI, o general Golbery Couto e Silva — foi extinto em 1990 e ressuscitado em 1999 por obra e graça de Fernando Henrique Cardoso, sendo então devidamente rebatizado.
Neste meio tempo, não se interrompeu a espionagem e o monitoramento das chamadas "ameaças", a fim de respaldar as classes dominantes empenhadas num amplo processo de desmantelamento e entreguismo dos setores nacionais da economia e serviços públicos. Na década de 1990, entre SNI e Abin, este trabalho sujo esteve a cargo de órgãos da antiga Casa Militar, que por sua vez estiveram sob o comando de um agente da Interpol.
Hoje, os sucessivos casos de grampos ilegais que chegam ao conhecimento público — além das exorbitantes 407 mil autorizações judiciais para escutas telefônicas — nada mais são do que a ponta do iceberg. Valendo-se das atualizações tecnológicas, generalizou-se uma prática fascista do SNI na época dos milicos sob o nome de "sangrar linhas". Ontem e hoje o objetivo é o mesmo: a espionagem e a sabotagem das organizações populares que têm objetivos revolucionários.
Abin, órgão da ditadura burguesa
Não poderia ser de outra forma, uma vez que, em linhas gerais, manteve-se para a Abin a dupla missão que norteava o SNI, ou seja, minar a resistência interna às políticas de entreguismo e colaborar com o USA na perseguição internacional àqueles que se opõem à dominação imperialista — ainda que agora isto seja levado a cabo por uma rede contra-revolucionária de agentes sob um órgão com status de agência governamental subordinada à legalidade dita "democrática".
Em 2005, Luiz Inácio criou agências da Abin em vários países da América Latina, além das que já existiam na Argentina e no USA. O objetivo, clara e oficialmente expressado na época, era — e ainda é — trocar informações sobre terrorismo, tráfico de drogas, segurança em geral e até sobre economia. Em outras palavras, a "expansão" da Abin pode ser traduzida como ampliação da colaboração com a rede de informações do imperialismo ianque. Lula amplificou assim uma das principais razões de ser do próprio SNI.
O que ora se assiste na TV e nos jornais é a utilização descontrolada de todo este aparato como instrumento de disputa de poder entre as frações e grupos de poder das classes dominantes, espalhadas pelas esferas de poder do Estado. Em outras palavras, as escutas telefônicas — com autorização direta da direção da Abin ou encomendadas por fora a seus agentes — estão servindo de trunfos para as frações da grande burguesia se chantagearem entre si.
É o que fica muito claro com o teor pouco comprometedor da conversa entre Gilmar Mendes e Demóstenes Torres, recentemente divulgado com alarde pela revista Veja. Parece ser o caso de um aviso, não necessariamente dirigido aos dois grampeados do momento, mas a qualquer cachorro grande que possa ser prejudicado pelo que andou conversando ou confessando por telefone.
É um círculo vicioso do qual os meios de comunicação participam de forma ambígua. Por um lado, não fogem à sua vocação de recorrer ao sensacionalismo para se viabilizarem como empresas e, indo além, para buscar protagonismo no oligopólio da mídia. Neste caso, são parte dos esquemas criminosos de arapongagem. Ainda neste caso, Globo e companhia atuam com a demagogia de costume ao alimentarem a falsa discussão sobre a legalidade dos grampos ao mesmo tempo em que fazem circular as famigeradas gravações, sempre evocando o lema hipócrita de que "o povo tem o direito de saber".
Por outro lado, calam-se quanto à natureza de um órgão como a Abin, que existe apenas para monitorar o povo e suas formas de organização para a luta, a fim de tentar miná-las depois. Neste outro caso, os meios de comunicação agem como legítimos representantes que são das forças que perpetuam não apenas o SNI, mas, sobretudo, uma ditadura não mais militar, mas ainda da burguesia.
Acostumar-se à vigilância?
A missão de um órgão de inteligência funcionando numa democracia de novo tipo passaria pela tarefa de proteger as instituições do povo contra a sabotagem e a bisbilhotice de seus inimigos.
Em um regime de democracia falsificada, como o que vigora no Brasil, isto está fora de cogitação, e a coisa funciona exatamente ao contrário: alega-se que a Abin não estaria capacitada para realizar este trabalho elementar, e se utiliza esta justificativa picareta para repassar a tarefa a empresas privadas.
Foi o que aconteceu em 2001, quando o ministério da Saúde, então sob o comando de José Serra, assinou contratos milionários com a empresa Fence Consultoria Empresarial para fazer varreduras antigrampos nos gabinetes de Serra e se seus subordinados. A rigor, a Fence é uma firma privada de espionagem e contra-espionagem, como fica evidente observando-se o fato de que seu dono é o coronel da reserva Enio Gomes Fontenelle, ex-SNI.
Na época, o então secretário-executivo do ministério da Saúde, Barjas Negri, justificou a contratação da consultoria em arapongagem dizendo que a Abin não teria nem pessoal nem estrutura suficientes para fazer o trabalho. A verdade é que a Abin não tem este propósito, não foi criada com este fim. Sua razão de ser é outra.
Da mesma forma, em uma democracia de fato, e no caso específico da segurança institucional, as tecnologias da informação deveriam ser mobilizadas para resguardar as informações que devem ser preservadas segundo os interesses do povo.
Sob o Estado burguês, as tecnologias de ponta são instrumentalizadas ora para alimentar a espionagem entre as classes dominantes, ora para implementar o fascismo generalizado, como admitiu o ministro da Justiça de Lula, Tarso Genro, quando vergonhosamente disse que os cidadãos precisam se acostumar com a idéia de que podem estar sendo bisbilhotados.