Donald Woods e Stephen Biko são retratados em Um grito de liberdade
A conquista da liberdade, da liberdade real para as massas, nunca foi conseguida em mesas de negociações. Embora quase sempre elas façam parte do processo, as classes oprimidas só se libertam quando derrotam a classe opressora de forma cabal.
A África do Sul é um exemplo muito esclarecedor disso. O Governo fascista do Apartheid foi "derrotado", os governantes mudaram de cor mas a sociedade não. Os negros, em sua grande maioria, continuam em casebres nas favelas e os brancos em belas casas. É permitido a um negro comprar uma casa em um bairro antes reservado aos brancos, o único problema é ter dinheiro. Ou seja, o rumo daquela sociedade não mudou. Como isso foi possível?
Da mesma forma que a primeira década deste século foi marcada pela subida de "forças alternativas" ao poder, como um negro na casa branca e a camarilha de oportunistas da "esquerda" domesticada mais ao sul, a década de 1980 foi a década da "queda das ditaduras". Exemplos não faltam na América Latina e o processo sul-africano deve ser encarado neste contexto: o das mudanças de fachada para manter as coisas como estão.
Dois filmes sobre a África do Sul são bastante didáticos. O primeiro, Um grito de liberdade, de Richard Attenborough, conta a história de um jornalista branco (Donald Woods, interpretado por Kevin Kline) que foge para o exílio para publicar um livro sobre Stephen Biko(interpretado por Denzel Washington), importante líder popular assassinado no cárcere.
"Steve" Biko era natural da Província do Cabo e se formou em medicina. Ainda estudante fundou a Organização Sul-Africana de Estudantes, saindo da União Nacional de Estudantes Sul-Africanos, dominada por brancos liberais. Posteriormente, Biko ajudou a fundar a Convenção do Povo Negro, que congregava cerca de 70 entidades anti-aparteid. Em 1973 foi banido1, mas continuou atuando com a ajuda de sua esposa e outros companheiros. Não acreditava em "escurecer" um pouco uma sociedade eminentemente branca, mas em resgatar a cultura dos povos ali existentes, tratar a todos como iguais e criar uma nova sociedade.
Biko faz parte de uma longa lista de lideranças negras cujas mortes foram atribuídas a suicídio, greve de fome, "causas naturais", entre outras sandices, enquanto estavam encarcerados. O próprio Mandela só não "escorregou no chuveiro" ou se enforcou, porque seu nome estava em evidência na impressa internacional, o que dificultou sua eliminação. Logicamente não se podia prever, mesmo porque os fascistas mais truculentos são péssimos nisso, o papel que ele desempenharia depois. Essa foi a estratégia: eliminar as lideranças mais combativas e depois negociar o acordo.
É justamente sobre o acordo que trata o segundo filme, Sombras do Passado (título original Red Dust). Mostra o trabalho da Comissão da Verdade e Reconciliação. Como o próprio nome sugere o trabalho desta comissão era virar a página, reconciliar torturadores e torturados, assassinos e as famílias dos assassinados, enfim, colocar uma lente cor de rosa na realidade e "mostrar" que a África do Sul havia mudado que o problema estava resolvido.
Ao contrário do primeiro filme, é uma história de ficção onde até a cidade é inventada. Não poderia ser diferente, se a ideia é promover a tal "Comissão da Verdade e da Reconciliação". O critério para um torturador receber anistia era tão somente assumir todos os seus crimes, ou seja, ao contrário de qualquer tribunal no mundo o criminoso precisava apenas confessar para que não pudesse mais ser condenado. O resultado não podia deixar de ser a liberdade dos criminosos e a manutenção da velha sociedade. Uma cena do filme é muito esclarecedora. Na audiência eram necessários instrumentos de tortura para ilustrar o sofrimento no cárcere. Não havendo nenhum no recinto, alguém foi buscá-los na delegacia. Ou seja, depois de anos do "fim" do apartheid, continuavam lá, esperando nova oportunidade de utilização.
Este acordo começou a ser celebrado bem antes. Antes assassinaram os líderes mais combativos, depois os restantes foram domesticados. A seguir, reforma-se a constituição, mantém-se as coisas como estavam.
O apartheid se tornou uma política oficial em 1948 e durou também oficialmente até o início da década de 90. O Acordo com Mandela começa a ser costurado algum tempo antes. Em 1989 o então presidente Pieter Botha se reúne com ele para preparar sua libertação. Em 1990, Frederick de Klerk (sucessor de Botha) anuncia as primeiras medidas para o fim do apartheid. Em 11 de fevereiro de 1991, Mandela é libertado, após 28 anos na prisão, e oficialmente são iniciadas "negociações multirraciais para um período de transição". Em outubro de 1992 de Klerk pede perdão pelo apartheid e um ano depois ele e Mandela recebem o Prêmio Nobel da Paz.
Nada mais romântico que dois inimigos de outrora receberem juntos tal honraria, vale ressaltar que também foram agraciados com ela, em anos diferentes Rousevelt, Shimon Perez, Yitzhak Rabin, Jimmy Carter e em 2009 Barack Obama "Pelas ideias de ‘boas intenções’ para reforçar o papel da diplomacia internacional e a cooperação entre os povos". Ou seja, o prêmio deveria se chamar Paz Para os Ricos ou Paz dos Cemitérios.
Como a celebração da paz não poderia ser completa sem a benção divina, o filme termina com a seguinte citação do Arcebispo anglicano Desmond Tutu, "Tendo olhado a besta nos olhos, tendo pedido e recebido perdão. Vamos fechar as portas do passado, não para esquecê-lo mas para não permitir que ele nos aprisione".
Resta perguntar quem foi libertado.
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1 O termo foi usado pelo regime do apartheid de forma diferente do usado no Brasil. Não se trata de expulsá-lo do país sem direito a retorno. O banido era proibido de se encontrar com mais de uma pessoa por vez, incluídos familiares, se afastar da cidade onde morava, de visitar vários locais públicos. Não se podia ainda fazer-se citações de nada escrito ou falado por ele na imprensa.