Soberania e dignidade, legado de Jango

Soberania e dignidade, legado de Jango

De tempos em tempos a CIA confessa, através da sua imprensa, a autoria dos assassinatos de líderes políticos e chefes de Estado, golpes, sabotagens, aliciamento e formação de quadros contra-revolucionários, como sua presença no tráfico de drogas para destruir a juventude etc., etc. — crimes que todos estão cansados de saber. Ela age assim, para cometer outras e mais terríveis atrocidades, em seguida.

A atitude da família do último Presidente da República no Brasil, para que o governo brasileiro reconheça a agressão do USA — de fato mentor e executor no golpe contra-revolucionário de 1964, destinado a escravizar o nosso povo —, é digna e honrada, e precisa chegar ao conhecimento das massas, especialmente de nossa juventude.

A ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), encontra-se na iminência de definir de que modo seu nome ficará gravado na história jurídica do Brasil. Encontra-se sobre sua mesa, desde o dia 16 de abril, o Recurso Ordinário 57, interposto por Maria Thereza, João Vicente e Denise Fontella Goulart — viúva e filhos do ex-presidente Dr. João Belchior Marques Goulart — contra a extinção, sem julgamento, do processo no qual pretendem ver oficialmente reconhecida a responsabilidade do USA pelo golpe de 1964.

A sentença do juiz da 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Alberto Nogueira Junior, é uma pérola de submissão. Ele declara a impossibilidade de a justiça brasileira sequer analisar o caso, já que “os atos alegados teriam sido praticados por agentes do Estados Unidos da América, quando em serviço no país”.

Ora, é exatamente por tais atos — financiamento e articulação de grupos golpistas, compra de parlamentares e órgãos de imprensa, envio de forças militares ao litoral brasileiro — terem sido praticados por agentes ianques que aquele Estado deve ser responsabilizado.

De fato, os Estados gozam, uns em relação aos outros, da chamada imunidade de jurisdição quanto aos atos de império. Isto significa que um país não pode ser processado perante a justiça de outro por suas decisões de governo e atos que sejam expressão de sua soberania. Significa que os monopólios ianques ITT e Bond & Share, por exemplo, não podem ir à justiça ianque processar o governo brasileiro — ou o do Rio Grande do Sul — pela nacionalização de seus ativos, determinada em 1961-62 pelo então governador Leonel Brizola.

Não significa, todavia, que um país esteja isento de responder pela promoção de golpes de Estado em outro. O que aconteceu em 1964 não foi um ato soberano e legítimo do USA, mas uma agressão ianque à soberania brasileira.

Ação insólita

É verdade que a ação movida pela família Goulart é insólita. Insólita era também, em 1976, a ação movida por Clarice Herzog contra o Estado brasileiro pelo assassinato de seu marido Vladimir nas mãos dos torturadores do DOI-CODI. Em 1978, a União foi condenada e o juiz daquele caso, Márcio Moraes, inscreveu indelevelmente seu nome na história judiciária do país por seu pioneirismo e coragem.

Nos 29 anos transcorridos daquela decisão até aqui, várias famílias conseguiram o reconhecimento judicial da responsabilidade do Estado brasileiro pela tortura e assassinato de seus entes queridos. Outras tantas vítimas diretas das atrocidades do regime de 64 receberam algum tipo de reparação. Não há justificativa para que não se aprecie a responsabilidade ianque pela participação — aliás, crucial — de seu embaixador e outros agentes imperialistas na instauração do regime sob cujo signo esses crimes foram cometidos.

O que o STJ tem que decidir não é sequer se o USA é responsável ou não pelo golpe, porque isso não chegou a ser apreciado até agora — e desde o ajuizamento do processo, lá se vão quatro anos. O recurso interposto pela viúva e filhos de Jango visa simplesmente que o Estado ianque seja citado — isto é, informado oficialmente que o processo existe, que nele é réu e convidado a apresentar sua defesa. É isso que a justiça se recusou a fazer até hoje — com respaldo, aliás, do Ministério Público (!), instado a se manifestar através de parecer.

Até o fim

Em entrevista ao O Globo do dia primeiro de julho, João Vicente diz que vai até a Corte de Haia se o poder Judiciário brasileiro recusar-se a citar o USA. Pois é justamente em Haia que esse processo deveria estar — e tendo como autor não os familiares de Jango como pessoas físicas, mas o Estado brasileiro em nome de todo o povo. É o que seria de se esperar desde que o ex-embaixador ianque e principal articulador do golpe, Lincoln Gordon, confessou o financiamento da CIA desde a preparação.

Se as declarações de Gordon — feitas em despudorado tom de jactância — não provocaram maiores reações, é porque o processo iniciado em 64 levou o Estado brasileiro a um quadro de submissão estruturalmente enraizada. A própria Rede Globo, que primeiro noticiou a existência da ação dos familiares de Goulart contra o USA, recebeu dinheiro ianque antes, durante e depois do golpe.

O Judiciário regride aos tempos do infame tratado de 1810, que dava à Inglaterra o privilégio de enviar juízes para cá com a atribuição de julgar, de acordo com a lei inglesa, os atos que os ingleses cometessem no Brasil. E os sucessivos presidentes da República cada vez mais demonstram que só o são nominalmente, atuando, na prática, como administradores coloniais.

Último presidente

Nosso último presidente digno desse nome, foi, precisamente, João Goulart. Eram muitas suas contradições e equívocos, como divergentes, dentro do campo progressista, são as avaliações sobre sua figura e seu legado. Entre os que lhe foram próximos, João Pinheiro Neto1 traça-lhe um retrato bastante generoso. Paulo Schilling, por outro lado, é particularmente duro ao sublinhar a permanente contradição entre “o latifundiário João Goulart e o líder populista Jango”2. Aspecto interessante é que Goulart — que lutava pela reforma agrária e pelas demais reformas de base — foi o único latifundiário expropriado pelo regime de 64, que lhe tomou as três fazendas enquanto promovia uma política de aberto favorecimento à sua classe.

Entre essas avaliações, situa-se a perspicaz análise de Darcy Ribeiro3: “O governo de Jango era reformista, mas a profundidade das reformas que propunha fez com que ele passasse a ser percebido como revolucionário, provocando, assim, uma contra-revolução preventiva. Caiu porque a única forma de enfrentar uma contra-revolução é fazer a revolução e isto excedia a tudo o que aquele governo pretendia”.

Certamente, também excede em muito o que pretendem sua viúva e filhos. Defender a dignidade nacional, contudo, era a bandeira de seu governo — e eles, agora, continuam a empunhá-la.

O golpe de 64 se constituiu num dos maiores crimes na história contemporânea cometidos contra um povo. Pior, contra a parte proletária de todo um continente. O imperialismo, notadamente o ianque, já havia dominado toda a infra-estrutura brasileira necessitando tomar posse da superestrutura para incrementar seu domínio na economia, na ideologia e na política.

Onde há movimentos…

O movimento de massas, antes do golpe de 64, foi o mais intenso já verificado no Brasil. Naqueles dias, a reforma agrária estava sempre presente na mesa do proletário, assim como as grandes reformas e a independência nacional.

O ministro do Trabalho, Almino Alfonso, dizia numa manifestação na Praça da Bandeira que os trabalhadores não deviam, jamais, aceitar a conversa de que era o aumento de salários que determinava a inflação.

Na administração João Goulart, várias garantias trabalhistas foram conquistadas, inclusive o 13º salário e outros instrumentos jurídicos de combate ao salário vil.

Sob sua administração se tornou possível estabelecer inúmeros pactos intersindicais contra a velha estrutura sindical, até a formação do Comando Geral dos Trabalhadores, mesmo quando a Federação Sindical Mundial era golpeada mortalmente pelos revisionistas “soviéticos”. É possível comparar as CUT, Força Sindical etc. (entidades servis da Ciols fascista, dirigida pelo imperialismo do USA) à CGT daqueles dias?

Foi a administração Goulart que trouxe o estatuto do trabalhador rural e nesse momento de relativa democracia se expandiram as Ligas Camponesas e inúmeras outras organizações populares e democráticas, embora os fascistas, dominando o aparelho de Estado, iniciassem suas “atrocidades experimentais” contra o povo.

A Eletrobrás foi criada em junho de 1962; instituiu-se o monopólio da importação de petróleo; iniciou-se a cassação de todas as concessões de pesquisa e lavra de minérios que atentavam contra o patrimônio nacional; começa o Plano Nacional de Telecomunicações, simultâneo à criação da Embratel, que são apresentadas hoje como rebentos do gerenciamento militar.

Com ele chegou o primeiro planejamento de fato, o Plano Trienal; as preocupações de que o capital estrangeiro não dominasse a vida material do nosso povo; as bases (inteiramente outras) do mercado comum latino-americano, formalmente criada na administração Kubistchek (aumentou três vezes o volume de negócios do Brasil, da Argentina e do Uruguai), contra a Aliança para o Progresso; o plano da indústria de capital nacional; o decuplicar da capacidade das hidrelétricas. Manteve a taxa de crescimento do PIB em 75% ao ano. Era outra a mentalidade da universidade brasileira liderada pela UnB, antes do vergonhoso acordo Usaid-MEC e havia uma UNE respeitada pelos estudantes.

Nos últimos meses de governo (que sob o sistema presidencial durou exatamente um ano, dois meses e dez dias) e mesmo após a usurpação do poder, a imprensa fascista, teleguiada do USA, gerenciada pelo grupo Time-Life, continuou lançando suas campanhas difamatórias no Brasil. Goulart fez uma procuração em causa própria ao diretor-presidente da gang do Time-Life comprometendo-se a vender, por um dólar, cada fazenda que tivesse em seu nome ou de parentes, adquirida desde que assumira a Presidência da República.

A resposta foi o silêncio covarde.

Sua vida privada foi inteiramente devassada pelas gangs que comandaram os inúmeros inquéritos policiais-militares. Nada encontraram.

Goulart tinha muito mais cultura política do que qualquer um dos “sucessores” pós-golpe até os dias de hoje.

Dele diziam manobrar para instaurar um regime de exceção e que se recusou a preparar a resistência.

Todas as pesquisas da época revelavam sua grande popularidade e apoio das massas. Desde o momento em que foi eleito vice-presidente, superou a estrondosa eleição de Juscelino Kubitschek (três milhões e 77 mil votos, contra 3 milhões e 591 mil votos de Jango), passando pelo plebiscito, aos dias que antecederam ao 1º de abril. Os golpistas tinham lançado as candidaturas de Juscelino e Lacerda quando fizeram a emenda parlamentarista para que Goulart não assumisse.

No entanto, a falsa esquerda foi a primeira a repetir as intenções de “golpe janguista” quando — no seu último recurso para fazer abortar a contra-revolução imperialista, apoiada pelo latifúndio e pela burguesia burocrática nativa —, entrou com o pedido de Estado de Sítio. Nesse momento, já quase todos tinham abandonado o barco e muitos fiéis democratas viravam anticomunistas. Restava o povo sem orientações, à mercê das intrigas, das calúnias, dos fuzis e punhais inimigos.

O Dr. Goulart faleceu em 6 de dezembro de 1976, no Uruguai, onde estava exilado. E, no entanto, os gerentes semicoloniais da época, queriam proibir que o corpo fosse sepultado em São Borja, sua terra Natal.

Pois Jango foi sepultado em São Borja, sua terra natal.


Jango — um depoimento pessoal. Rio de Janeiro, Record, 1993.
1 Os Protagonistas. São Paulo, Global, 1979.
2 Como se coloca a direita no poder
3 Testemunho. São Paulo, Sisciliano, 1990.
Nota do Editor: O conceito de populismo no Brasil incorpora o dicionário injurioso e anti-comunista que reflete o pavor ante a possibilidade do povo constituir uma frente única. Nelson Werneck Sodré explica (em Capitalismo e Revolução burguesa no Brasil, Oficina de Livros, Belo Horizonte — 1990) que se pretende com a expressão indicar “uma conexão direta entre um povo mitificado e uma liderança carismático-messiânica que dilui a realidade das classes sociais”. Não se aplica, portanto ao governo João Goulart.
Quanto à expressão populismo caracterizando o comportamento de Goulart carece de rigor científico e seu uso acaba favorecendo à direita…
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