O processo de resistência do povo brasileiro contra aqueles que o oprimem frequentemente revela fatos pouco conhecidos e traz boas surpresas. É o caso dos indígenas.
O índio, formador basilar da identidade nacional, se considerado apenas etnicamente, são 300 mil pessoas que habitam aldeias espalhadas por todo o país e 45 milhões de cidadãos brasileiros com sangue indígena.
Porém a questão não se limita a isso. O índio é o brasileiro pobre, que, como diz Aracy Lopes da Silva em sua obra “Índios”, (Ática, 1988) enfrenta os mesmos problemas dos brasileiros pobres — proletários e camponeses.
Mesmos problemas, mas com formas originais e específicas de resistir e lutar contra o sistema que o oprime. É isso que apresenta Deise Montardo neste artigo.
A professora revela um fato muito interessante: que o povo guarani vem utilizando a música e a dança como instrumentos de combate. Na verdade, mais que isso, a música e a dança ritualística aparecem conduzindo exercícios corporais que remetem às artes marciais. A música e a guerra intimamente ligadas.
E de que guerra se trata? A da reivindicação da terra, primordialmente. O revolucionário peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), um dos mais importantes pensadores marxistas da América, já dizia que “o problema do índio é o problema da terra”.
“Somos dançadores e guerreiros”
Escutei esta frase de um jovem guarani nhandeva no contexto de uma mobilização que acompanhava o processo de identificação de uma área indígena no Estado do Mato Grosso do Sul (MS). Os guaranis sabem que precisam do papel (kutia) para conseguir as terras, das quais foram expulsos, de volta. No entanto, indispensáveis, durante todo o processo de reconquista, são os rituais musicais, durante os quais tocam seus instrumentos — o chocalho (mbaraka) e o bastão de ritmo (takuapu) —, cantam e dançam. Quero destacar neste artigo o papel importantíssimo, para este povo, da música e da dança, tanto na criação quanto na manutenção do mundo.
Os guaranis são os povos indígenas falantes de guarani, uma língua da família linguística tupi-guarani, do tronco Tupi. A partir da confrontação dos dados de pesquisas da Linguística, da Arqueologia e da Etno-história, é consensual afirmar que estes povos saíram da Amazônia há cerca de três mil anos. Quando os europeus chegaram ao Brasil meridional, no século XVI, os falantes de guarani, contando com dialetos diferenciados, haviam se expandido e ocupavam extensos territórios nas bacias dos rios Paraguai, Paraná, Uruguai, e no litoral sul brasileiro — a costa e o interior do que hoje são os estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, no Brasil —, departamentos do Paraguai e províncias da Argentina e do Uruguai.
Sobre os três primeiros séculos do contato conta-se com vasta documentação composta por relatos de viajantes e relatórios dos jesuítas. Os guaranis passaram por processos de perseguições, aprisionamento, expulsão de seus territórios por parte dos encomenderos espanhóis, de um lado, e dos bandeirantes portugueses, de outro, e por um intrincado processo de aldeamento nas reduções promovidas pelos jesuítas, que durou até a expulsão destes em 1768. Alguns pesquisadores da história guarani tentam responder perguntas sobre o que teria ocorrido com estas populações no processo de aldeamento e posterior extinção das missões. Após um século e meio de lacuna bibliográfica a respeito dos guaranis, no final do século XIX conta-se, novamente, com registros da sua presença no Brasil, grosso modo e de maneira rarefeita, no mesmo território amplo que ocupavam na época da chegada dos europeus.
Os subgrupos guaranis são três: kaiová ou païtavyterã, nhandeva e mbyá. A população guarani no Mato Grosso do Sul é de cerca de 32.500 pessoas divididas entre os subgrupos kaiová e nhandeva, que se autodenominam guarani. Este enorme contingente populacional se encontra espremido em pequenas reservas criadas pelo governo brasileiro no decorrer do século XX, com o objetivo de desocupar o território daquele estado para que os desbravadores o ocupassem, o que de fato ocorreu.
O papel central da música já está colocado num mito guarani, no qual a diferença entre índios e brancos se dá pelo oferecimento, por parte do herói criador, do mbaraka (instrumento musical) para os índios e do kuatia jehairä (papel para escrever) para os brancos, e pela opção do índio pelo mundo sonoro e musical, quando escolheu para tomar como seu o mbaraka, e do branco pelo mundo da palavra escrita, quando escolheu o papel. Estas escolhas originais são recorrentes nas mitologias indígenas, e na maioria dos grupos recaem sobre a distribuição das armas, ficando os índios com o arco e flecha, e o branco, com a espingarda.
No caso dos guaranis, no entanto, o divisor de águas parece estar ligado à música. Hoje, entretanto, o papel é visto por eles como recurso importante na reivindicação dos seus direitos à terra, embora o mbaraka seja o recurso considerado eficaz. Sem um xamã (que é sempre um mestre de música), homem ou mulher, reconhecido que acompanhe os movimentos de reivindicações pela terra, não há movimento. A adesão de um xamã ao processo é peça-chave para o sucesso da empreitada.
Por outro lado, no ritual observa-se um comportamento que remete à noção de artes marciais. Um dos treinamentos mais significativos efetuados nos rituais guaranis é o aprender a “desviar-se” em danças/lutas. O comportamento de não se contrapor, característico dos guaranis, é trabalhado musical e corporalmente. O que aparentemente é uma não-resistência se apresenta como uma estratégia desenvolvida diante dos desafios que vêm enfrentando há séculos e na qual a música e a dança ocupam papel constitutivo.
Não há possibilidade de vida na Terra se os guaranis não estiverem cantando e dançando. O Sol, ou o dono do Sol, o herói criador, é responsável por manter a sonoridade do mundo durante o dia. Durante a noite esta responsabilidade é dos homens. Entre os kaiovás ouvi uma explicação para o porquê de os rituais serem noturnos. O Sol, o Pa´i Kuara, é um xamã, e ele canta e toca seus instrumentos durante o dia. Durante a noite os homens são os responsáveis por tocar, cantar e dançar, o que têm que fazer para manter o mundo, a vida na Terra. Caso parem de fazê-lo, o Sol cessará de iluminar, e a Terra, que é como um mbejuguasu (“beiju grande”), com a forma de um prato, virará de ponta-cabeça.
Para os guaranis, a música em seu ritual cotidiano é um caminho a percorrer ao encontro dos deuses. Este caminho não está isento de perigos e obstáculos, o que aparece nas coreografias de lutas, nas quais realizam movimentos de ataque e defesa. Os guaranis pretendem, neste caminho realizado no ritual, embelezar e fortalecer os corpos, dotando-os de força e de alegria, combatendo a tristeza. É de sua responsabilidade essa espécie de treinamento e preparação para a vida, o que garante a sobrevivência do grupo e a manutenção da própria Terra, numa ação análoga à desenvolvida pelos deuses.
Através da música e da dança se comunicam com as divindades e recebem delas instruções de como encaminhar suas ações. Nos rituais se preparam como guerreiros para proteger e lutar pelo bem-estar de seu grupo, o que ocorre no cotidiano e é mais forte nas situações em que estão lutando para reaver parte de seu território.
*Deise Lucy Oliveira Montardo é Doutora em Antropologia Social e pesquisadora do Museu Oswaldo Rodrigues Cabral/Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)