Não demorou nem dois anos para a pobre população do Norte de Goiás descobrir o engodo representado pela festa promovida por Cardoso passado. Em 24 de maio de 2002 foi implantado, em meio a grandes comemorações, o segundo maior lago artificial do mundo, o reservatório de Serra da Mesa, com 54,4 bilhões de metros cúbicos, no curso principal do Rio Tocantins, no município de Minaçu (GO), a 1.790km de sua foz e a 640 km de Brasília. A festa de entrega de 1.784km2 do território goiano aos interesses estrangeiros contou com a inundação de 13 vilarejos, comandada por Furnas, além das transnacionais Tractebel e Suez, antecedida logicamente pelos submissos e pegajosos discursos de Cardoso.
Reservatório de Serra da Mesa
A Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, responsável pela ligação entre o sistema energético Sul/Sudeste/Centro-Oeste e o Norte/Nordeste, sendo o elo da Interligação Norte-Sul no panorama energético brasileiro, entrava em operação naquele dia com três unidades geradoras subterrâneas instaladas no município de Minaçu, para beneficiar principalmente o Distrito Federal e o estado de Tocantins, a centenas de quilômetros de distância.
Seis mil famílias hoje recorrem à Justiça para reaver pelo menos parte do que perderam ao acreditarem nas promessas de melhores dias reiteradas na peça de subserviência lida na ocasião por Cardoso, saudando Gerárd Mestrallet e Murilo Bahr, os manda-chuvas da Suez e da Tractebel. E as esperanças de ajuda externa forçaram todo mundo a ignorar o besteirol presidencial, até mesmo o cearense Siqueira Campos, então governador de Tocantins, mencionado como “filho da terra goiana”.
Na festa, Cardoso começou dizendo que “uma das características de Goiás é ter mais senadores do que parece”, apresentando Henrique Meirelles como futuro senador, e gabando-se de que “todos sabem que, também lá, em Tocantins, eu tenho raízes”. Rendeu homenagens à Tractebel, ao Grupo Suez, à Voith Siemens, Andrade Gutierrez, Odebrecht.
Recordações sem vergonha
Lembrando os tempos do apagão, ufanou-se: “Nós enfrentamos e vencemos a crise. Vencemos, mas vencemos porque o povo ajudou, em primeiro lugar, principalmente, porque entendeu o que era preciso fazer. Foi emocionante dizer às pessoas: olha, teremos que racionar, teremos que cortar. Não é fácil, apesar da incompreensão, até da torcida contrária de alguns pequenos setores que jogam mal, porque pensam que quando o governo vai mal, eles vão bem.”
E sapecou: “Estamos vendo aqui nesse empreendimento de hoje, uma articulação inteligente entre os vários setores. E que se deve à Lei de Concessões, a primeira pedra que se moveu na direção de permitir que houvesse o concurso de muitas forças para fazer um Brasil novo.”
“Essa lei”, recordou, levou cinco anos para ser aprovada. “Foi preciso que eu fosse ministro da Fazenda e presidente da República para poder lograr as articulações necessárias dentro do Congresso Nacional, para que uma lei óbvia fosse aprovada. Mas o Brasil hoje, está ficando melhor.”
Nesse “hoje Cardoso”, Hermínio Carlos de Oliveira, 65 anos, lamenta desesperado a falta dos 37 alqueires que possuía no município de Uruaçu e que há vários anos se viu obrigado a vender por um preço seis vezes menor do que o real, favorecendo os maiores interessados no lucro das obras de abertura do lago da Usina.
Vivendo agora de serviços eventuais, entrou na Justiça contra a administração do empreendimento, ao mesmo tempo em que prefeitos protestam por jamais terem recebido as verbas prometidas e reclamam da falta de projetos de desenvolvimento na região, onde só o que avança é a malária, a raiva e a leishmaniose.
Moléstias que acompanham
Apenas nos três primeiros meses deste ano, foram registrados 19 focos e 21 casos de raiva bovina no município de Niquelândia, segundo dados da Agência de Defesa Agrope-cuária do Estado de Goiás. O número é superior ao registrado durante todo o ano passado e reflete o aumento significativo de notificações da doença nas regiões vizinhas às alagadas para a instalação das hidrelétricas de Serra da Mesa e de Cana Brava.
O diretor técnico da Agência, Hygino Felipe de Carvalho, confirma que a situação é grave e acredita que o número de casos pode ser ainda maior que o registrado: “Temos uma preocupação com a subnotificação. Nós acreditamos que a incidência é maior.” A região deve passar a ser considerada de alto risco.
Carvalho explica que a situação tem relação direta com o alagamento da região, que provocou uma mudança no ecossistema local, e responsabiliza as empresas que controlam as usinas pela situação. Há mais de um ano, segundo ele, a Agência tenta renovar um convênio firmado entre as empresas e os municípios para o financiamento de políticas de controle e correção dos possíveis danos. No entanto, ele afirma que as empresas estão “empurrando com a barriga” as soluções, enquanto cultuam uma perspectiva pessimista para os 13 municípios atingidos.
O problema é agravado porque a criação da Agência de Defesa Agro-pecuária, responsável pelo caso, é recente, não dispõe de uma equipe para o combate à doença e, ainda, o trabalho implica em alto custo. Entre outras coisas, é necessário capturar o morcego hematófago, agente transmissor da doença, que se refugia nas cavernas e furnas e, dentro delas, nos locais de mais difícil acesso. Também por esse motivo, o combate é reduzido a períodos chuvosos, devido ao risco de desmoronamento. O controle se estende à vacinação intensiva dos rebanho e por uma difícil campanha de esclarecimento junto aos latifundiários que exploram o ramo da pecuária, refratários a qualquer despesa.
Indecentes “parcerias”
A Usina de Serra da Mesa foi a primeira hidrelétrica no Brasil a ter investimentos e uso de energia divididos entre uma empresa de economia mista (que por provocação recebia a alcunha de estatal) e a especulação privada.
Casa ribeirinha desocupada para o alagamento da represa
O projeto de construção da usina remonta à década de 70. Em 1981, Furnas obteve a concessão para a exploração do potencial hidrelétrico do Rio Tocantins. Cinco anos depois ela apresentou como prioritário o projeto de construção da usina. As obras foram iniciadas mediante um contrato entre Furnas e o Grupo Camargo Corrêa. A construção foi paralisada no governo Collor e retomada no início da década de 90, dessa vez com a VBC Energia S.A., encarregada de concluir as obras. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) “financiou” parte do empreendimento, repassando US$ 1,7 bilhão, provenientes do Banco Mundial. Posteriormente, a CPFL Geradora (Companhia Paulista de Força e Luz) comprou da VBC a parte que lhe cabia da usina. Porém, A VBC continua a fazer parte da holding CPFL Energia.
Trocando em miúdos, a CPFL é uma holding controlada pelas empresas dos grupos VBC Energia S.A., formada por Bradespar, Grupo Camargo Corrêa e Votorantim, 521 Participações S.A. (Previ) e Bonaire Participações S.A. (Funcesp, Sistel, Petros e Sabesprev). Hoje, a CPFL detém todas as ações da Semesa, sócia de Furnas no controle da Usina.
O problema começou no final dos anos 90, quando deu-se o represamento dos rios Maranhão, Tocantinzinho e Almas para formar o que em pouco tempo seria Serra da Mesa, o segundo maior lago artificial do mundo. O empreendimento, a princípio, trouxe esperança para a população dos 13 municípios envolvidos, mas o que deveria trazer riqueza, em apenas sete anos acabou acumulando pobreza. O grande sonho do turismo nunca se concretizou. Os ribeirinhos perderam suas terras e tiveram de ir morar nas periferias das cidades. Os comerciantes que investiram na ampliação de seus estabelecimentos ficaram com as dívidas, depois que os turistas praticamente desapareceram. Somente Uruaçu, cidade mais próxima da barragem, chegava a receber 30 mil turistas nos fins de semana e nos feriados prolongados. Mas a falta de infra-estrutura e as doenças afugentou todo mundo.
Projetos estelionatários
Acusada de empurrar o problema com a barriga, a CPFL diz, quanto ao pagamento de indenizações aos proprietários de terras que tiveram suas áreas alagadas, que o processo já foi concluído. Segundo o diretor de operações de Serra da Mesa, José Ferreira Abdal Neto, as indenizações foram pagas por Furnas antes mesmo de a CPFL entrar no negócio. Acrescenta que os atuais pedidos não serão analisados. “Sempre aparece um ou outro querendo indenização. Mas estas pessoas não faziam parte do recenseamento realizado na época com o Ibama e a Secretaria de Meio Ambiente. Temos plena convicção de que todos que estavam envolvidos foram indenizados. É um dado reconhecido pelo Estado de Goiás.”
De resto, a CPFL destaca que só libera recursos quando órgãos ambientais apresentam projetos. Abdal Neto garante que a empresa “não está se furtando de aportar dinheiro” para os projetos de monitoramento sanitário e ambiental. “O que emperra a liberação de verbas é a apresentação dos projetos por parte dos órgãos e instituições responsáveis. Tanto a CPFL como Furnas são financiadoras, não executoras. É muito comum a gente aportar dinheiro e ele ficar dormindo num órgão estatal qualquer. Como empreendedores privados, não gostamos disso”, completa. Entre as instituições e entidades responsáveis pelos programas, ele cita a Fundação Osvaldo Cruz (Fio-cruz), a Agência Ambiental e o Ibama. “Na medida em que esse pessoal disser que tem um plano, um projeto, nós liberamos dinheiro. Tanto nós como Furnas.”
Salvação da lavoura estrangeira
O Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Integrado de Serra da Mesa, a Prefeitura de Uruaçu e a Secretaria Especial da Pesca, órgão do governo federal, assinaram um convênio para que seja montado no local o primeiro projeto de criação de peixes em água doce do país. Foi formada uma cooperativa envolvendo os pirangueiros e pessoas atingidas pela barragem. Ao invés de apresentarem um projeto adequado, a agência responsável preferiu empurrar a tradicionalmente rejeitada criação de tilápia, um predador voraz, espécie estrangeira que não permite a interação entre as demais espécies, já que não se torna caça de outro animal. Imediatamente a agência ministrou cursos de capacitação para a produção em 40 tanques de 6m² com capacidade de engorda de até 2,4 mil peixes em quatro meses.
O primeiro passo para colocar em prática a iniciativa é a assinatura de um convênio entre a Prefeitura de Uruaçu e Furnas. Mesmo assim, a peleja vem se arrastando há quase dois anos. “Vai melhorar nossa vida em 100% porque vamos entrar inicialmente somente com o trabalho. O governo vai financiar a compra dos alevinos dos tanques e a montagem aqui. Depois da primeira venda é que iremos financiar a juros baixos os nossos tanques”, explica Adevaldo. Os peixes produzidos numa primeira etapa serão vendidos ao governo para utilização na merenda escolar. “Caso a experiência seja bem-sucedida”, o projeto pode ser estendido aos municípios de Niquelândia, Minaçu e todos os outros banhados pelo lago.
O projeto enfrenta ainda a resistência do procurador de Justiça Paulo Maurício Serrano Neves, totalmente contra a criação de peixes predadores no lago. Ele está movendo uma ação contra a Secretaria Nacional da Pesca, na tentativa de impedir a criação dessa espécie no projeto, defendo sua substituição por um peixe originário da região, ainda que nenhum deles “tenha mercado internacional garantido”, conforme aparece nos clichês que vulgarizam a economia nacional.