Em sua posse, o presidente Luiz Inácio, nordestino de nascença, numa “coincidência” histórica e política, 124 anos depois, fez o mesmo discurso do imperador D. Pedro II, quando, no Ceará, conhecendo a tragédia da seca, anunciou: “Venderei a última jóia de minha coroa para que nenhum nordestino morra de fome!”. De lá para cá — passando pela Velha República e pela era Vargas, encontrando a primeira “redemocratização” e a ditadura militar, depois, a segunda “redemocratização”, até os tempos atuais —, todos os presidentes incluíram nos seus discursos demagógicos, uma versão leviana do significado da fome e do Nordeste.
O Açude Castanhão, com 6 bilhões de metros cúbicos de água, é o maior do mundo
O imperador D. Pedro II, que esteve no Sertão Central cearense, região que passa vários meses sem chuva e tem um dos índices pluviométricos mais baixos do mundo; Getúlio (1930-1945; 1951-1954), que com a sua "nacionalista" política econômica criou o BN DES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), e o BNB (Banco do Nordeste do Brasil) na década de 50; Juscelino Kubitschek (1956-1961), que com seu badalado Plano de Desenvolvimento Interno, fundou a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), assim como o citado ex-líder sindical, visitaram pessoalmente a "zona do flagelo", como diziam os jornais da época. Todos marcaram época com inflamados discursos de salvação que em nada modificaram o quadro social da região.
Desde 1880, quando D. Pedro II determinou a construção do Açude do Cedro, (que hoje tem apenas utilidade turística), até o magnífico Orós, inaugurado em 1958 pelo populismo do presidente JK (um dos maiores açudes do mundo, com capacidade para armazenar 2,3 bilhões de metros cúbicos de água; também sem muita utilidade econômica), até o atual Castanhão, inaugurado mesmo sem conclusão pelo, então, candidato José Serra — quase 20 anos de obras, com capacidade prevista para guardar nada menos do que seis bilhões de metros cúbicos de água (igualmente não eliminou o latifúndio, mas apresenta vantagem de ser "o maior do mundo") -, nenhuma obra de irrigação (existem outras centenas de menor porte), transformou a Região. No entanto, fizeram a "mesa farta" de dezenas de empreiteiros.
Aliás, do imperador, que iniciou as obras do Açude do Cedro, até o mais recente Castanhão, nunca deixou de haver intensas precipitações de denúncias sobre a crescente e incrível vocação para o superfaturamento — uma categoria do chamado "enriquecimento ilícito" -, dando grande impulso às atividades das oligarquias latifundiárias, burguesia burocrática e "investidores" externos.
Outro fato que marca a tradição de desmandos, ocorreu em 1919, durante uma grande seca, em que o paraibano Epitácio Pessoa (1919-1922), presidente eleito, determinou a construção de Orós, com custos elevados nos percentuais do orçamento da União. Quis passar para a história como o presidente que venceu a seca. Mas veio o mineiro Arthur Bernardes (1922 — 1926) que, alegando crise financeira e a necessidade de impedir a corrupção, suspendeu as obras. Os equipamentos e as máquinas foram vendidos muito abaixo dos preços avaliados. A corrupção, também aí, cresceu.
Melhores e piores, mesma fome
Açude do Cedro, hoje apenas local turístico |
Mais de cem anos após o problema nordestino ser elevado ao status de questão nacional, a reabertura da Sudene pelo atual presidente, nada mais é que um capítulo do "desenvolvimento do Nordeste" — superprodução com grande elenco, cujo enredo permanece sendo uma disputa das classes dominantes pela execução de duas linhas básicas: o monopólio da água (obras, empreiteiras, negociatas, corrupção, etc) e o que chamam de "planejamento regional" (uma infindável criação de órgãos, programas e eventos, burocracia, ampliação dos negócios comandados pelos novos caciques políticos do agrobusiness, divisão de territórios, etc.).
Em 1909, surge a Inspetoria Federal das Obras Contra as Secas (IFOCS), que, em 1945, passou a ser Departamento Nacional, com a sigla DNOS. Em 1952, vieram, o Banco do Nordeste e o Banco Nacional de Desenvolvimento, com Getúlio. E é na linha do planejamento — ao contrário do viés "departamento de obras" — que JK cria a Sudene. Além de contar com uma gigantesca estrutura, ao longo da segunda metade do século passado, inúmeros outros aparatos foram inventados com o objetivo de combater a miséria nordestina e diminuir as desigualdades regionais.
O Nordeste conheceu, no período pós-64, inúmeras ações federais de desenvolvimento de capital concentrador, uma nova política de incorporação de terras que, no mesmo período, encontrou similares em toda a América Latina. Viu surgir estratégias do governo central como o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste (Proterra, 1971); Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste (Polonordeste, 1974); Programa de Integração Nacional (PIN, 1970); Programa Especial de Apoio ao Desenvolvimento da Região Semi-Árida do Nordeste; Projeto São José, entre outros, nas áreas de recursos hídricos e reflorestamento, que na verdade serviram para desviar os recursos nominalmente destinados à Região, e de estrutura para manter o modelo de dominação das oligarquias latifundiárias e fornecer mais capital ao imperialismo. Até mesmo em atividades setorizadas, como o projeto "Asa Branca", levou-se para as fazendas dos chefes políticos o charque, o açúcar, óleo de cozinha, ovos, e o melhor das doações, deixando para o povo faminto apenas leite em pó, arroz e farinha de péssima qualidade.
Os recursos que eram anunciados nas tradicionais sexta-feiras, nas reuniões do Conselho Deliberativo da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, 1960) para combater a miséria, nunca chegaram, porque eram verbas já utilizadas em outros programas e projetos. Esses recursos só beneficiaram algumas áreas, criando três zonas urbanas de consumo: Fortaleza, Recife e Salvador. Seus parques industriais não geraram empregos suficientes.
Depois das reivindicações de transposição das águas dos rios São Francisco e Tocantins, surge agora a briga dos estados pela implantação de uma refinaria no Nordeste. Essas disputas de poder político e econômico, nada modificarão na região, a exemplo do Pólo Industrial do Pecém (somente o porto comeu cerca de 400 milhões de reais), onde a população nativa ainda não teve um só emprego esperado desses milhões que foram enterrados nas águas profundas da ponta do Pecém. O município sequer tem uma escola profissionalizante e suas famílias ainda vivem de pequenos biscates. Os empregos de carteira assinada estão sendo ocupados por pessoas de fora, trazidas pelas empreiteiras.
Mas produzem bons pelegos…
A Região ficou vazia de poder político e, durante o gerenciamento militar, as classes internas associadas ao imperialismo, para dar cumprimento às estratégias por elas traçadas, trataram de criar "lideranças políticas" (os biônicos). Com o tempo, as unidades federativas perderam toda sua autonomia. Tornaram-se mais dependentes administrativamente, que os antigos territórios. Até mesmo as prefeituras, administrações mais próximas da população, são agora também presas fáceis do endividamento, manietadas pelos projetos e programas de políticas públicas, transformadas em ação compensatória, e outras formas de contenção de despesas na área social.
É natural que entre os derivados de classe — particularmente entre os "acomodados emergentes" locais e seus tutores latifundiários, especuladores e assistentes do império -, surjam formulações tais como: "Se o Norte e o Nordeste constituíssem uma região separada do resto do país, experimentariam um verdadeiro desenvolvimento." No início, tais receitas aparentam ser procedimentos "meramente administrativos" (como os desmembramentos de unidades territoriais levadas a efeito no pós-64; vide Mato Grosso do Sul e Tocantins); estratégias que encontram respaldo nas doutrinas do latifúndio e do imperialismo. Mas, se o próprio país fosse emancipado do USA — que é uma aclamação nacional conduzida pelos trabalhadores brasileiros —, o progresso não seria apenas uma consigna estampada na bandeira nacional, nem haveria a mínima razão para sustentar medidas de retalhamento técnico-administrativo. Já, em termos de sistemas de Estado e de governo, quando democráticos, a autonomia é um aspecto do exercício do Poder concedido a uma minoria nacional, o que jamais foi o caso dos nortistas e nordestinos.
"É a parte que te cabe deste latifúndio"
O acesso aos créditos e aos "incentivos fiscais" durante a arrancada de integração das terras, até a última fronteira agrícola no Brasil (coisa que aconteceu mais ou menos no mesmo período, em toda a América Latina), apenas serviu para concentrar ainda mais a produção e beneficiar a acumulação de capital nas mãos das tradicionais e modernas oligarquias internas. É principalmente o capital adventício e especulador que restringe em seus quadros diretos a mão-de-obra nativa para funções braçais, importando técnicos mais capacitados, com salários maiores. Da mesma forma, despreza todo o potencial energético, hidroelétrico, solar, eólico e as variedades de cultivares para produção de óleos vegetais e sua adaptação para motores diesel, por exemplo.
Certo, a pequena burguesia favorecida alcançou um razoável padrão de vida, principalmente nos três grandes centros urbanos. Recursos para a produção de mandioca (farinha) foram usados com pleno sucesso para instalação de haras. Um ex-corretor de valores, que intermediava a capitalização junto às empresas do Sul para os investimentos no Nordeste, através do 34/18 — descontos do Imposto sobre a Renda e adicionais não restituíveis -, conta que na época do fluxo de recursos era comum afirmar, sempre que um projeto era liberado: "É mais uma mansão que vai surgir na Aldeota (bairro elegante de Fortaleza) com um Landau na garagem".
As classes dominantes nativas dos nove estados nordestinos obtiveram excelente proveito nos recursos, mas nenhum dos vários programas criados para fortalecer a agropecuária mudou a situação do campo. Diariamente, partem vários ônibus com destino a São Paulo levando, principalmente, trabalhadores. Outro grande contingente vai para Fortaleza, que, com 2,2 milhões de habitantes, é uma cidade "inchada", onde a metade da população passa fome, conforme estudo do Plano Estratégico de Fortaleza e sua Região Metropolitana (Planefor).
Os grupos que se beneficiaram com os recursos de incentivos 34/18-FINOR (Fundo de Investimentos do Nordeste) aplicaram em imóveis nos centros urbanos. Empresas de São Paulo receberam recursos para projetos no Nordeste e com eles desapareceram, sem jamais terem integralizado esse dinheiro nas empresas. E foi assim que a região ficou mais espoliada. O Ceará hoje importa farinha e banana para o consumo familiar. O peixe vem de outros estados. De todas as grandes obras realizadas nos últimos 15 anos (Aeroporto Internacional, Porto do Pecém, Castanhão, Metrofor), até operários são trazidos para os empregos. Grupos educacionais, empresas de ônibus, dentre outros, têm capital de fora. Os bancos regionais quebraram. O mercado de seguros movimenta dois bilhões de reais no estado. Uma empresa de São Paulo vendeu, somente em 2002, mais de 20 mil títulos de capitalização. A produção artesanal (palha, renda, etc.) é vendida a atravessadores de São Paulo, que compram toda a produção de um ou vários municípios. Fornecem a matéria prima e pagam salário de fome para ter a produção total. A maioria dos ônibus que circula em Fortaleza tem placas de São Paulo.
Segundo os economistas que desprezam a proteção ideológica "chapa branca", o sistema de incentivos fiscais que tinha o objetivo de industrializar o Nordeste serviu para acumular ainda mais capital nas mãos das oligarquias (famílias) tradicionais da região e à expansão das estruturas monopolísticas, que já controlavam a produção industrial no Brasil. Quem tinha maior produção (empresas de São Paulo) deduziu mais, teve maior incentivo e investiu mais. Essa regra criou um sistema poderoso: a intermediação. Empresas especializadas na captação dos recursos, o pagamento de gordas comissões, corrupção de funcionários públicos, bancos, etc.