O sol permanece escondido entre os raios de Lua que teimam em reinar no amanhecer da cidade. O dia ainda nem começou, quando centenas de homens deixam os alojamentos e caminham com destino à obras que lhe fornecerão “o pão de cada dia”. A barriga ronca, o hálito diz da precariedade da dentição o e os braços se erguem num espreguiçar que deixa à mostra a musculatura rígida feita de pancadas de estacas e levantamento de sacos e mais sacos de cimento.
Sorrisos trocados com companheiros, olhar escantilhado para os lados em busca de capacete e roupagens coloridas com os logotipos de empresas tercerizadas fazem a rotina destes homens cujas rugas na face dão conta dos anos em que servem de “mão-de-obra”, deixando transparecer o belo olhar infantil que brota na universal identidade com seus companheiros de labuta.
O ranger da porta, feita de restos de taipas de outras obras e a tramela fixada ali com carinho e arte, deixa entrar os primeiros raios de sol que, como que pedindo licença, começa a esquentar as entranhas do alojamento. Os beliches, com esteiras abertas pelos anos de uso, deixam à mostra o madeirame duro que se faz de estrado.
Rostos lavados em vasilhames, bochechos e abrir de bocas são as primeiras identidades desta universalidade humana. As xícaras de alumínio, algumas já amassadas pelo uso antigo, recebem os lábios sedentos de sede e fome destes homens que partem para as obras da construção civil nos luxuosos bairros da cidade de Macaé, estado do Rio de Janeiro, arrotada pelo monopóio dos meios de comunicação como a “capital do petróleo” e a “melhor cidade para se viver, morar e trabalhar”.
Ainda com o estômago embrulhado pelo alimento do dia anterior, eles sorriem entre si, falam, em seu linguajar alegre e partem para a luta. Assobios, cantigas, versos ao vento e, sei lá onde tanta pureza brotando da brutal vida que a sonorização dos versos e cânticos, penso, os elevam ao patamar dos pássaros.
Uns fumam, outros biritam. Uns falam de mulheres, outros de religião. Todos, no entanto, arquejam no andar e deixam à mostra a incerteza do dia seguinte. Se a fome aumenta, engolem o último pedaço de pão comprado no mercadinho perto do alojamento. Se sentem sede, bebem da água encanada. “Barrigas vazias são tambores da revolução”, dizia Adão Nunes que, nos anos de sua militância ainda acreditava no parlamento. Os tempos passam, outras barrigas batem tambores em outras fomes.
A construção civil não pode parar. Hotéis de luxo para abrigarem os patrões do patrão. Suas carteiras de trabalho não pesam mais em seus bolsos. Elas foram requisitadas pelo jagunço das empreiteiras e viajaram para outros estados para serem “assinadas”.
A fachada da obra tem nomes suntuosos de conhecidas empresas no ramo nacional. Publicidades são feitas em seu nome, jantares e reuniões idem, retratos e visitas caritativas em clubes sociais também. Colorida e iluminada, a fachada das obras ostenta o nome de socialites famosos, com suas caretas famigeradas e seus cabelos pintados que deixam transparecer o olhar cruel de quem enriqueceu à custa do sacrifíio de homens e mulheres indefesos e puros.
A mais-valia astronômica que esses cafajestes da construção civil embolsam é tão monstruosa que eles abrem hotel em cima de hotel, como se estivessem construindo barquinhos de papel. Fazem edifícios com andares em local antes proibidos e em praias que terão seus dias finitos pelas sombras que, por certo, virão em pouco tempo.
O bolso vazio do traseiro que não tem mais a carteira de trabalho é preenchido com papéis e anotações. Uma espécie de diário onde se pode ler, em alguns “garranchos” gramaticais, anotações de dias, horas, sábados, domingos e tardes noites de extras.
O jagunço que pegou as carteiras fala grosso. Gesticula em gestos brutos sem saber que põe para fora sua homoxessualidade reprimida. Fala com os trabalhadores como se estivesse em campo de batalha e dando voz unida. Diz-se assessor do dono do hotel e que as carteiras irão chegar de São Paulo em menos de 3 meses. Os operários se olham em silêncio. O último que ousou desafiar este monstrengo em forma de humano foi despedido e está passando fome nas ruas empoeiradas dos bairros periféricos de Macaé. Quer voltar para o Maranhão e está esperando ser atendido pela assistência social.
— Ele mesmo disse — falam quase balbuciando — que o maranhense já viu várias vezes o jagunço tomando chope com o pessoal da prefeitura.
Todos os operários foram pinçados fora de Macaé. Uns vieram do interior da Bahia, convidados por outro jagunços, que se diz dono de empreiteira e que assinou mais de cem carteiras de trabalho. Outros foram trazidos do Maranhão, cidades bem do interior. A maioria trouxeram de São Paulo e Minas.
O jagunço que se diz empresário e recolheu as carteiras sumiu das obras. Dizem que foi para São Paulo. Lá uma outra obra, precisamente em Bauru, deixou centenas de operários sem receber. Como eles eram, a exemplo dos daqui, de outros estados, não ficam para “por no pau estes canalhas”. Precisam viver e partem para outra.
Num canto da cidade os donos das construções e seus jagunços festejam mais uma grandiosa obra, inaugurada com a presença de todas as autoridades civis, militares e eclesiáticas do município.