Misturando Brecht, Machado de Assis, Glauber Rocha e Pasolini, o Teatro de Narradores pratica um teatro itinerante, que explora ações ao vivo e vídeos para narrar trajetórias de povo. Sempre envolvidos com movimentos populares organizados, desde o seu surgimento, no campus da USP, encontram entre o povo o ambiente para desenvolver oficinas e realizar pesquisas que contribuam para um estudo bem elaborado de um teatro épico, questionador.
Cena da peça Cidade desmanche
— Surgimos como um grupo estudantil, dentro da faculdade de filosofia da USP, em 1997. Nossa preocupação era entender o que poderia ser um teatro universitário e sua relação com a formação humana na filosofia, sociologia e história. Nosso primeiro espetáculo foi A lata de lixo da história, uma adaptação feita pelo crítico literário Roberto Schwarz da obra de Machado de Assis, O alienista — conta José Fernando, diretor e dramaturgo do grupo.
Até 2001 o grupo esteve ligado a universidade. Depois buscou novos ares na cidade, observando a vida e o trabalho do povo.
— Em princípio nos estabelecemos em um espaço em Pinheiros, e começamos a travar contato com alguns grupos organizados, movimentos de moradia daqui de São Paulo e outros. As questões encontradas nesse meio passaram a ser temas importantes, no que diz respeito a relação do teatro com a cidade. Tudo isso foi definindo a linguagem do grupo — fala José Fernando.
— Em 2003 conseguimos, através da Lei de Fomento ao Teatro, uma residência artística no teatro Martins Pena, na zona leste, e por dois anos trabalhamos no local. Nesse período montamos A resistível ascensão de Arturo Ui, do Brecht. Mas em 2004, com a mudança de gestão da prefeitura, tivemos que sair do espaço. Passamos então a ocupar um prédio no Bom Retiro, que até então estava abandonado — conta.
— O Bom Retiro tem história de ocupação judaica, uma comunidade coreana e bolivianos em situação clandestina. Nos últimos anos sofreu um processo de degradação econômica radical, e atualmente tem muitos cortiços e zonas de prostituição no seu entorno. Contudo é alvo de disputa econômica por ser a base do projeto de revitalização do centro. Tudo isso nos convidou a pesquisas e conversas com vizinhos, recolhendo depoimentos e histórias de vida — acrescenta.
A tentativa de compreender o que acontece ali, e como poderiam se inserir naquele processo, resultou em um espetáculo Cidade desmanche. Contudo, antes de estrear o espetáculo tiveram que desocupar o prédio, por ordem da prefeitura, mudando-se para o bairro do Bexiga, atual sede.
Teatro e telas
— No Cidade desmanche partimos para a relação entre teatro e cinema, e sempre tivemos por referência forte o cinema do Glauber Rocha. É um espetáculo com uma estrutura narrativa que conta a trajetória de um ex-presidiário no dia em que ele sai na prisão, e de um coreano que habita no Bom Retiro — conta José Fernando, que também cursou cinema na FAAP e é doutor em filosofia pela USP.
— Depois resolvemos nos aprofundar ainda mais nessa questão do teatro/cinema e surgiu um diálogo muito forte com a obra de Pasolini, mantendo a ligação com o teatro político do Brecht. Assim chegamos ao texto Vílades, que é uma discussão que o Pasolini estabelece entre a tragédia e o histórico, com uma forte referência ao universo camponês — continua.
Cena da peça Nossa casa de boneca
Após uma adaptação do texto, feita coletivamente pelo grupo, estreou Vílades no Sesc Pinheiros.
— Na ligação de cinema e teatro o que nos interessa é tentar elaborar e mostrar para o público como se constrói uma imagem como discurso. O cinema aparece como uma referência para a construção de um discurso poético e também político através da imagem — fala José Fernando.
— Cidade desmanche começa na rua. Utilizamos um bar que fica em frente a nossa sede. O público é recebido nesse bar, misturado com a cidade, com os moradores daqui. Em cima desse bar, bem em frente a nossa sede, tem um cortiço, e algumas das imagens são projetadas na sua faixada. Em um outro momento, um personagem é mostrado na forma de um filme e isso é projetado em um prédio de doze andares que fica em frente ao nosso terraço, onde está o público nesse momento — comenta.
— A imagem é utilizada como um documento ou um comentário, mas sempre fazendo com que a cidade atravesse o espetáculo. Quando viemos aqui para o Bexiga, optamos por fazer um espetáculo itinerante, que começa na rua, sobe até a nossa sede, atravessa a sala, vai até o terraço e termina com o público na sacada vendo uma ação acontecendo na rua novamente. Já o Vílade começa em um espaço aberto, mas depois o público é levado para uma sala — continua.
O próximo espetáculo do grupo, que deve estrear em breve, é uma dramaturgia própria, e narra a trajetória de uma família operária do final dos anos 70, que foi parar em um cortiço do centro de São Paulo.
— A história chega até o ano 2000. São três gerações, que deverão aparecer em três partes. A primeira acontecerá na rua, em casas e prédios do Bexiga, e o público vai acompanhando; a segunda terá o público na sacada da nossa sede, observando as ações que acontecem na rua, nos prédios e fachadas em frente; e a terceira acontecerá dentro da sede. O público poderá assistir uma parte em um dia e as outras depois, e também as três no mesmo dia — expõe.
Atualmente o Teatro de Narradores conta com cinco componentes fixos.
— Nossos espetáculos são a preços populares, sendo que os vizinhos têm descontos. Também fazemos gratuitamente, de acordo com nossas possibilidades — finaliza José Fernando.