O ator, diretor de teatro, TV e cinema Milton Gonçalves é mineiro, da cidade de Monte Santo. De origem humilde, carregou sempre em sua carreira uma preocupação grande em desenvolver uma arte dramática ligada a política, que despertasse nas pessoas a compreensão sobre os problemas sociais e as motivasse a lutar. De sua extensa carreira, podemos destacar sua participação em Arena contra Zumbi, de 63, e Eles não usam black-tie (peça e longa-metragem), ambos de Gianfrachesco Guarnieri; A Pena e a Lei, peça de Ariano Suassuna; Os Fuzis da Sra. Carrar, peça de Bertolt Brecht e Quilombo, de Cacá Diegues, além de inúmeros outros filmes e participações na TV. Milton Gonçalves deu um depoimento sobre sua vida e obra à A Nova Democracia, que o ouviu em sua casa, no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro:
Sou mineiro, de Monte Santo. Levado por meus pais para São Paulo, morei por lá durante muito tempo. Um belo dia, sai de lá e caí no oco do mundo. Viajei pelo Brasil com o teatro, mudei de estado e município. Vi outras configurações humanas, outros ângulos da vida. Fui operário, gráfico e, por ler tudo que caía nas minhas mãos, trabalhei numa livraria. Isso, para a minha idade e para o meu tempo de pobreza me deu a oportunidade de ter uma visão acima dos meus contemporâneos, o que me angustiava. Tentei ser atleta, jogador de futebol, corri quatro vezes na São Silvestre. Mas, jamais poderia ser um bom atleta comendo arroz, feijão e ovo. Me preparei para guerrilha, aprendi a atirar, sabotar, me dediquei às artes marciais, etc.
Sofri todos os percalços entendendo, mas não concordando, com o preconceito racial, que foi um trauma na minha vida. Assim, o teatro para mim foi a grande salvação. Acredito que se não tivesse encontrado o teatro, teria me transformado em outra coisa que não sei o que seria.
Aí apareceu o Arena
Fazia teatro infantil e, um dia, um ator da peça me disse: O Teatro de Arena está fazendo teste para a peça (Ratos e Homens) de um novo diretor, recém-chegado do EUA. Era o Augusto Boal. Fiz o teste e entrei, incorporando-me. Dessa forma, me obriguei a ler, estudar, até que um dia, descobrimos que sabíamos muito pouco. Contratamos professores de filosofia, história, impostação de voz, música, para que, num curto espaço de tempo, pudesse cimentar a lacuna que existia entre o cidadão Milton Gonçalves e o ator, no sentido de exercer plenamente a profissão que escolhi. Com o Arena fiz uma profissão de fé, aquela com a qual inicio, mantenho e concluo minhas discussões.
Teatro para mim é fundamental no sentido de esclarecimento. Costumo dizer que acreditava, acredito e vou continuar acreditando que, através da persuasão, do processo cultural, do convencimento se pode mudar esse país — e o Teatro é fundamental para isso, assim como as artes, de uma maneira geral. Hoje sou ator, diretor, andei por esse mundo, e essa preparação do Teatro de Arena foi fundamental.
O Teatro de Arena me municiou de um instrumental para analisar as contradições da sociedade na qual vivia, vivo e vou viver. Sou um analista dialético canhestro — não tenho todos os elementos e não faço questão de ser um excelente analista. No entanto, tenho esse instrumental, que me satisfaz. O teatro me deu a possibilidade e a obrigatoriedade de ler e estudar um pouco mais do que aquilo que eu sabia.
Uma nova linha de trabalho
Cena do filme Eles não usam black-tie |
Importante para nós, no Arena, era o projeto de realizar uma linha de trabalho. Fizemos clássicos, Brecht, autores brasileiros, todos com muito sucesso. Depois que Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guanieri, obteve êxito na Itália, virou filme, dirigido pelo Leon Hirszman. Sempre me emociono quando vejo o final do filme. Estávamos na Bahia e precisávamos voltar a São Paulo a fim de montar alguma coisa. Foi quando o Guarnieri disse: "Olha, tem uma peça que escrevi no Rio, vamos dar uma lida?" Lemos e, em seguida, o José Renato resolveu montar. Na semana de estréia, o Teatro de Arena de São Paulo ficou vazio, mas, depois disso, foram anos de sucesso. Ainda hoje, se montarmos o espetáculo com seu elenco original, ele será sucesso.
O Teatro de Arena apareceu num momento em que se fazia necessária alguma experiência nacionalista e político-ideológica. Essa foi sua missão. O outro teatro, que se fazia no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), nas outras companhias mais faustosas e com maior capital, também tiveram sua importância. No contexto entre as várias tendências, o Arena marcou sua posição. Marcou um estilo de representar: além das técnicas trazidas pelo Boal, nós tínhamos, embaixo, o teatro como espaço e, em cima, uma sala que, depois de algum tempo, alugamos. Passamos a fazer, junto com as aulas que contratamos, laboratórios, um pequeno estúdio de atores, um seminário de dramaturgia, de modo que muita gente de hoje passou por lá. O fato de se ter o teatro para representar, e a área em cima para exercitar aquilo que queríamosfazer, foi muito importante. Nós conseguimos, assim, nos reunir e juntar as nossas experiências e as nossas não-experiências, produzindo um tipo de dramaturgia, uma proposta que se transformou em algo novo.
Essa renovação se dá na medida em que o Teatro de Arena não prescinde do ator, não prescinde do fato de se ter a verdade como elemento fundamental, já que o ator está muito próximo do público. Torna-se necessário, então, aprender a interpretar com as costas, com a cabeça, com a nuca. É preciso ser um todo de representação, de composição do personagem. O ator está a meio metro do espectador e, se estiver mentindo, o seu corpo vai mentir, os seus olhos vão mentir. Por isso é que esta fase construiu, no Teatro de Arena, uma marca que até hoje todo mundo persegue, que é a da verdade de interpretação, da coisa stanislavskiniana, da coisa grotowskiniana, do entendimento da mecânica da interpretação, da construção do personagem, da sua manutenção, dos textos que porventura serão montados no teatro, atendendo àquilo que um Teatro de Arena possa oferecer como verdade. Montar um Maquiavel, montar um clássico, podendo oferecer ao público essa verdade. Sem as luzes, sem as fantasias físicas dos personagens. O Teatro de Arena era um ícone, para o qual você tinha que olhar, decompor e respeitar, porque era feito com profundidade.
Teatro e repressão
Eu sempre quis ser ator dramático, não queria ser engraçado. Apesar de negro, queria ser ator dramático, fazer os clássicos. Geralmente, se você olhar a sua volta, o negro não está direcionado para os grandes papéis, está encaminhado para ser o engraçado, o folclórico, e isso não mudou nada, pois nós, negros, que significamos a metade do país, não nos organizamos, e não lutamos pelo nosso espaço. Ninguém dá nada, nós é que temos que brigar pelo espaço que é nosso. Liberdade ninguém dá, liberdade é conquistada no dia-a-dia. No Teatro de Arena eu tive uma felicidade muito grande, porque o fundamental não era ser negro, branco, operário ou não. O fundamental era ser consciente. Nesse sentido, eu acabei fazendo um clássico, Mandrágora, um personagem maravilhoso.
Vim para o Rio, lugar onde moro há 43 anos. Aqui, o teatro rachou: uma parte voltou para São Paulo e outra parte ficou. Eu fui um desses. Faziam parte desse trabalho, entre outros, Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha, Ari Toledo, Flavio Mi gliaccio, Paulo José, Dina Sfat, Juca de Oliveira e Antônio Fagundes. Muita gente que está aí hoje, fez parte do Teatro de Arena de São Paulo. Augusto Boal, José Renato, Eva Wilma, John Herbert…
Um belo dia, chegou o golpe de Estado. Cheguei a ser alvo de uma rajada de metralhadora, com outro colega, mas, evidentemente, não me acertaram. Enfrentamos tiros, bombas na bilheteria, perseguições, ameaças. Enfrentamos tudo. No entanto, apesar da repressão, sempre tivemos uma preocupação grande do que é o homem brasileiro, de onde veio, para onde vai, como ama, como imagina, como pensa, como odeia. Esse sempre foi o foco principal do nosso trabalho.
Sempre seguimos à risca aquilo que diz o seguinte: "Quando você conta a história da sua aldeia você está contando a história universal, e quanto mais profundamente você contar a história da sua aldeia, mais universal será." Isso para mim é ponto pacífico. Só por aí é que você pode chegar a algum lugar.
Obrigado a sair do Rio porque, se ficasse, seria preso, fui fazer um filme em Minas Gerais. Lá em Minas encontrei um senhor chamado Otávio Graça Mello, meu dileto e falecido amigo Otávio. Na ocasião, ele me disse: "Quando voltar para o Rio me procure, porque nós estamos formando elenco para uma nova emissora de televisão, e quero que você faça os testes e esteja presente." Respondi: "Perfeitamente."
Naquela época, a televisão não tinha essa importância que tem hoje. Comecei a trabalhar na TV Globo e lá estou, há 38 anos. Eu sou o ator mais antigo da casa com trabalhos contínuos.
O teatro de idéias, hoje
Hoje em dia é muito caro fazer teatro e cinema. Naquele tempo, era mais compatível. Tínhamos o espaço, os atores. O ator de agora mais parece um extraterrestre. Acho que existe espaço para o teatro de idéias hoje, sim. Só que o povo está um pouco cansado, angustiado, carente. Tá com fome, e um sujeito com fome não vai ao teatro. Isso piorou muito, porque o mundo se transformou numa Aldeia Global. Na Terra, existem cerca de seis bilhões de pessoas. A metade vai morrer de fome, inexoravelmente, e uma outra parte vai morrer nas guerras que são lançadas aqui e ali, ou seja, vai sobrar pouquíssima gente. No Brasil, nós temos aí 500, 600 famílias que mandam no país desde o seu nascimento. E o poder, o dinheiro, sempre circula nesse meio, de modo que essa coisa se estratifica, e a luta pela sobrevivência se torna cada vez mais difícil, porque não vivemos mais numa aldeia sozinhos, existem implicações internacionais. O que o indivíduo produz precisa de mercado, e ele é obrigado a consumir desse mercado.
Com relação às idéias, ocorre o mesmo: elas têm que ser consumidas e exportadas. Mas como é que vão ser exportadas, como é que se vai competir com os grandes centros produtores de cultura? Com esse bombardeio diário dos meios de comunicação, que a cada dia proferem uma postulação nova, uma idéia nova, uma visão diferenciada. Existe uma teoria que diz que toda a humanidade descende de um grupo de negros, mas, apesar disso, nós (negros, brancos, etc) não somos todos irmãos como muitos propalam por aí. Podemos ser irmãos genéticos, mas, não o somos na pobreza e na riqueza. E isso me incomoda. Não somos iguais ideologicamente, nem economicamente. Apenas ocupamos o mesmo espaço. E assim é o teatro, a produção artística do meu país, que não me leva em conta como consumidor. Isso porque nós, negros, não nos organizamos no sentido de exigir a nossa cara aparecendo no cinema, na TV, nos livros.
Lei de quotas
É mais uma concessão. Nos tempos em que vivemos, não deveria haver a necessidade de uma quota especial para, por exemplo, se nomear um diplomata negro. Isso me constrange. Eu viajei esse mundo inteiro, e nós não temos um diplomata negro. Acho que devemos apostar no futuro, pois, não vamos conseguir resolver nosso problema de preconceito e discriminação com um estalar de dedos. Temos que apostar para daqui a trinta anos.
Na medida em que o negro ascende, algumas portas vão se fechando. Outro dia, a Globo anunciou com estardalhaço a aparição do Heraldo Pereira, no Jornal Nacional. Qualquer emissora decente no mundo se obriga a ter um representante de cada seguimento étnico. E isso, no Brasil, está virando um favorzinho, o que me irrita profundamente. Quando se começa a falar em quotas, não há dúvida de que se trata de mais um favorzinho. E há também os aproveitadores dessas políticas, o que é uma questão mais séria.
Existe algo que marca a minha fala e marca a minha vida. Sou um guerreiro étnico, e um guerreiro, na medida em que eu entenda e possa ajudar. Mas, não abro mão do meu exercício étnico, porque significo a metade deste país, e sou colocado no canto coletivamente. Os meus ancestrais lutaram, morreram, se sacrificaram na construção desse país. Eu não posso admitir ser chamado de negro e outros chamados de pardos, e vice-versa. Não aceito pardo e negro. Eu sou afro-descendente. Quando passei a raciocinar melhor com relação a isso, senti uma irritação profunda. Temos de lutar com todos os meios, e, para isso, o teatro é fundamental: significa conhecer os autores africanos, brasileiros, e conhecer o teatro dos séculos XIX e XVIII no Brasil, que era feito por negros. Tenho esse compromisso de lutar por meus netos, bisnetos, pelos dos meus amigos. E é isso que vou fazer, enquanto viver.
Acho que o Zumbi é importante, é fundamental, mas, agora, temos que descobrir outros Zumbis e seguir os exemplos mais contemporâneos. Quero os Zumbis do presente, pois sei que existem muitos por aí. É isso.