A Companhia de Teatro-Escola de Arte tem como ante-sala uma loja de figurinos e acessórios teatrais disponíveis para aluguel. Uma escadaria estreita dá para um mundo de fantasias e adereços que vestem as personagens do sem número de espetáculos montados e dirigidos em quase 30 anos de carreira. Ziguezagueando por entre chapéus, máscaras e perucas, chegamos ao escritório onde trabalha o dramaturgo e encenador mineiro Luiz Paixão.
O diretor teatral Luiz Paixão recebeu AND no escritório da Companhia de Teatro-Escola de Arte, em Belo Horizonte. Durante mais de uma hora, entre estantes de livros e fotografias, nos concedeu um emocionado depoimento sobre o ofício do artista e o papel do teatro em nosso país.
Foto: Fernando Barbosa
O Jardim das Cerejeiras/Troianas
— Comecei a fazer teatro no final dos anos 70, precisamente no ano de 1977, influenciado pelo movimento político de resistência ao regime militar e pela democratização do país. Naquela época vivíamos um intenso movimento nas universidades, envolvido com a reorganização do movimento estudantil. O grupo de teatro Resistência, dos estudantes de Medicina [da Universidade Federal de Minas Gerais], de forma corajosa fazia um teatro político, questionador e de qualidade. Decidi escrever uma peça para aquele grupo e desde então não parei mais — inicia Luiz Paixão.
Em 1978, ele decidiu aprofundar seus estudos, ingressando em um curso no Centro de Pesquisas Teatrais [CPT], coordenado na época pelo diretor de teatro, figurinista, coreógrafo, cenógrafo, escritor, músico e artista plástico Ronaldo Boschi.
— Iniciei meus estudos querendo compreender melhor o teatro e atuar de forma a interferir na realidade conturbada da época. Eu queria fazer um teatro que pudesse discutir o meu tempo, a minha realidade. Minha opinião é a de que o artista deve buscar sempre um compromisso com seu tempo e participar diretamente das transformações que ocorrem.
Essa atitude direta do encenador Luiz Paixão é a marca registrada da companhia e pauta toda a sua atividade. Mesmo quando adapta os clássicos do teatro mundial, faz de forma direta sua correspondência com os dias atuais, não tendo, para tanto, de abrir mão de nenhum princípio do teatro democrático e popular.
— Com o surgimento de montagens e interpretações, estranhas ao meu trabalho, dadas por determinados diretores sobre os meus textos, parei de escrever para os outros e passei a dirigir. Aí sim, tive liberdade para dar forma e expressão às encenações.
Teatro e guerra
Eu compreendo a guerra, general. Meu filho morreu nela.
(Da mulher de um pescador, em O Julgamento de Luculus – Bertolt Brecht)
A guerra tem sido um tema constante nas mais recentes apresentações da companhia de Luiz. Perguntamos ao dramaturgo o porquê desta abordagem. Para responder, fez referência a um artigo seu, intitulado Teatro e Guerra, onde cita uma passagem de Brecht: "O capitalismo se alimenta de guerra e vai torná-la, cada dia, mais necessária para sua sustentação. Em seu último estágio — o imperialismo —, está, como estamos assistindo hoje, se exacerbando de tal maneira que já torna o mundo um grande campo de batalha onde, a cada dia, novos inimigos precisam ser encontrados (ou fabricados!) para justificar as ações bélicas".
Foto: Luiz Paixão
Ensaio fotográfico: Sade, O Avesso de Deus
Mas Luiz Paixão foi mais longe, exibindo os estertores do imperialismo:
— Enquanto é promovida a guerra contra um povo, enquanto o mundo divide-se em dois ‘eixos': o ‘eixo do bem e o do mal', aí se travam duas guerras. Uma pela dominação e pelo atraso, outra pela libertação e pelo progresso. É preciso ter sensibilidade para perceber esta diferença. — E acrescenta — Canudos também foi uma guerra, uma guerra contra a miséria e contra o latifúndio. Quando montamos Joana D'arc e sua luta pela libertação da França contra o jugo da Inglaterra, podemos perceber claramente essa expressão contemporânea diante da agressão do USA contra o Iraque, o Oriente Médio e os povos do mundo inteiro, de uma forma geral.
Luiz Paixão recorda que, em 2001, enquanto a Companhia de Teatro ensaiava Troianas, o USA ocupou o Afeganistão e este acontecimento influenciou ainda mais todo o seu processo de produção.
— O Brasil possui um movimento teatral de primeira qualidade, um teatro investigativo, vivo, corajoso, inovador. Mas, em contrapartida, este movimento é praticamente refém de um mercado paralelo de investimentos das grandes empresas, onde grupos que nunca estiveram comprometidos com a cultura manipulam os recursos e investem apenas em montagens de mercado, visam apenas o lucro — denuncia Luiz.
Segundo o diretor teatral, as Leis de Incentivo à Cultura possuem uma ‘anomalia interna'.
— O que é uma Lei de Incentivo? É um mecanismo que faz com que o Estado transfira para a produção cultural uma porcentagem do que é arrecadado em impostos. Mas o que ocorre de fato é que o Estado coloca sua logomarca na promoção de espetáculos, e seus produtores não dão o retorno para aqueles que foram a fonte dos recursos: o povo. Em suma, são exibidos espetáculos a preços nada populares, bancados com os impostos pagos pelo povo e, exatamente o povo é privado do acesso a essa produção cultural.
Cartéis do besteirol
Luiz Paixão é o representante de uma corrente no movimento artístico em Belo Horizonte que, a duras penas, ainda resiste e permanece atuando à margem da produção oficial, que ele classifica como ‘besteirol', textos escritos para satisfazer a política de subjugação nacional e a dominação de classe. Mesmo quando não tem nenhum tipo de patrocínio para as suas produções, opta por diminuir os custos e fazer uma montagem independente. Prefere isso a se sujeitar aos cartéis do besteirol.
— Belo Horizonte está hegemonizada pelo besteirol. O teatro político, comprometido e verdadeiramente popular, foi rejeitado até mesmo pelo Sindicato dos Produtores, peloSindicato dos Artistas, subjugado pela lógica do lucro a qualquer preço. As peças montadas hoje são inúteis, emburrecedoras da população, racistas e discriminatórias. — observa, indignado, Luiz Paixão.
A Companhia de Teatro se preocupa em fazer montagens que contribuam para construir a visão crítica e política do público. O objetivo dos espetáculos não é simplesmente proporcionar a distração e o entretenimento, mas levar as pessoas a pensar.
Escárnio, jamais
A cultura democrática tem como pilar o que de melhor e mais avançado foi produzido por um povo. É a expressão de sua política, de sua moral, de sua forma de produzir. No caso da comédia, ela é uma arma poderosíssima contra toda a hipocrisia e autoritarismo das classes reacionárias. A comédia sempre foi um recurso amplamente utilizado em todos os movimentos artísticos e culturais como forma de satirizar os inimigos do povo e, por vezes, para quebrar momentos mais tensos com um toque de humor. Mas na autentica cultura popular jamais haverá lugar para escarnecer o povo.
— Há um limite entre a comédia e o deboche. Este limite é extrapolado no besteirol. Assim, eles deseducam e nada levam à discussão. Sua mentalidade tem a profundidade de um pires. — protesta o teatrólogo, acrescentando:
— Este besteirol é o reflexo da ilegitimidade das classes que governam os nossos países e das suas instituições. Acredito e luto pela conformação de um movimento com peças de qualidade, reflexivas, com preocupação estética, etc. Só que estas peças estão perdendo cada vez mais espaço, sufocadas pela lógica do mercado, esse modo de produção de bens materiais sob a anarquia imperialista.
Em defesa do povo
Certa vez, num artigo, Luiz Paixão descreveu, sob o título Veredas para um teatro político, um pouco da história do teatro brasileiro:
"O teatro brasileiro passou por profundas transformações no final dos anos 50 e início dos 60, particularmente com o grupo de Teatro de Arena, quando a procura por uma identidade nacional e cultural orientou sua pesquisa estética com o objetivo de trazer o homem brasileiro para a cena, com todas as suas contradições. O golpe de 64 interrompeu um dos momentos politicamente mais ricos do nosso teatro, que compreendia a manifestação cênica como resultado de uma análise dialética da realidade para, dando-lhe contornos artísticos, interferir na própria realidade e transformá-la".
Luiz Paixão
E prossegue: (…) "Falar em teatro político, hoje, é falar de retomada de nossa identidade nacional e cultural, pois uma não existe sem a outra e, para reafirmar nossa identidade nacional, não podemos ignorar o processo histórico, a formação mesma do povo brasileiro, de sua luta, suas conquistas e suas derrotas".
A preocupação de Luiz Paixão em fazer um teatro de qualidade o levou, em 1993, a fundar a Companhia de Teatro. Durante todos esses anos, juntamente com sua equipe, ele se manteve firme no propósito de realizar um trabalho sério, mas não taciturno.
— Aqui em Belo Horizonte — ressalta o encenador — eu atuo quase no ‘bloco do eu sozinho' contra o besteirol. Discuto ideologicamente, porque eu não vou me abrir para este tipo de teatro. Acho que é necessário formar uma liderança, um projeto para nosso país. O povo brasileiro apostou no Lula e no PT. Isto produziu uma grande frustração e consequências graves. Um sonho de milhões foi despertado por uma política de corrupção, traição nacional, compra e venda do Brasil e dos brasileiros, onde vale tudo para se manter no poder. O Brasil das negociatas vive um momento maquiavélico e é deste caldo que surge o besteirol e toda a degeneração cultural, tudo associado à velha política.
O teatrólogo acrescenta:
— Este velho tipo de fazer teatro também é um teatro político, mas para amordaçar o povo. Propomos um teatro que dê voz ao povo e o ajude entender o mundo para transformá-lo.
Ofício do artista
A Companhia de Teatro possui profunda influência de Bertolt Brecht — dramaturgo e teatrólogo alemão . É sua linguagem, sua preocupação estética e política, que orienta o seu trabalho:
— Particularmente após o golpe militar, fazer teatro político passou a ser considerado um crime. Retomar e defender o teatro político é uma tarefa quase subversiva. Gosto sempre de lembrar o crítico de teatro Yan Michalski quando escreveu: "Seria exagerado dizer que o teatro foi erigido em inimigo público número um [da ditadura]; mas dizer que foi erigido num dos inimigos públicos mais declarados e, por conseguinte, tratado com sistemática desconfiança, hostilidade, e não raras vezes com brutalidade, é constatar uma verdade histórica inegável"
Luiz Paixão prossegue explicando que o teatro político dos dias atuais não é o mesmo do período da gerência militar. Não é mais somente um teatro de denúncias, mas um teatro que revela as possibilidades, consideradas hoje como que falidas, mas de fato representam o futuro da humanidade.
— O capitalismo está caminhando para o seu fim. Karl Marx tinha razão quando fez este apontamento há mais de 150 anos. Não vejo sobrevida para este sistema. É impossível para ele não ter seu fim, assim como é impossível deter o movimento da história. É o momento de nos organizarmos e reorganizar o teatro nacional. Vivemos uma crise muito grande no Brasil. Mas nada pode debilitar o nosso ânimo! Devemos prosseguir nosso caminho, que é o de levar a arte para o povo, e retomar o compromisso com a nossa história.
Assim se despediu o dramaturgo e encenador mineiro Luiz Paixão, nos presenteando o magnífico texto, em forma de poesia, em que apresenta uma das suas últimas montagens: Joana D'arc, a história da jovem heroína que se bateu pela libertação de seu povo (ver box).
Joana D’arc
É importante, hoje, falar de Joana D'arc!
É importante falar de Joana D'arc e sua luta contra a ocupação inglesa,
Porque estamos vivendo um momento histórico em que
Ocupações a países soberanos estão na ordem do dia!
É importante, hoje, falar de Joana D'arc porque o mundo foi,
Novamente e de forma arbitrária, dividido em dois blocos:
O eixo do bem contra o eixo do mal.
É importante, pois quando da derrocada do bloco socialista no Leste Europeu,
O império norte-americano teve que buscar imediatamente
(e não demorou muito encontrar) novo inimigos para continuar
Sua insaciável necessidade de dominação!
É importante, pois é também muito provável que a cada dia
A resistência ao projeto imperialista ganhe mais forças e mais adeptos.
A vitória do Hammas, numa eleição democrática e sem nenhuma suspeita de fraude,
Não é reconhecida pelos guardiões da democracia ocidental,
Ao passo que num Iraque ocupado, a eleição é cantada como um marco
Da "vitória do povo" e, obviamente, usada como mais uma justificativa para a invasão!
É importante, hoje, falar de Joana D'arc, porque vivemos o momento
De uma crise tão delicada e profunda em nosso país, fruto da ambição política:
Quando para conquistar e se sustentar no poder, cedeu-se a um jogo de interesses
Que envolveram o mundo político, financeiro e de comunicação
Todos esses, orquestrados no desvio de dinheiro e pagamentos de propinas,
Rompendo assim todos os padrões éticos e morais.
É importante, sim, hoje, falar de Joana D'arc,
Porque Joana D'arc (uma menina, adolescente) não transigiu, não se vendeu,
Não se deixou levar por outros interesses que não fosse a total libertação da França
Do jugo inglês, e sua inquebrantável fé em suas "vozes".
Podem dizer tudo de Joana D'arc: esquizofrênica, louca, herege (disso a Igreja Católica
já se redimiu!), Só não podem – nunca e em hipótese alguma! – negar sua absoluta
Honestidade de propósitos e sua abnegação total à causa da libertação de seu país!