Criada no Rio de Janeiro, em 1992, por um grupo de profissionais de teatro — por não aceitar o trabalho alienante, do puro entretenimento, de visão simplista e sem função social que havia naquele momento — a Cia. Ensaio Aberto volta-se para a realidade política/econômica brasileira, levando para o teatro um público que não costumava frequentá-lo.
O que esses profissionais queriam, entre eles o diretor Luiz Fernando Lobo, a atriz Tuca Moraes, o cenógrafo Cláudio Moura e o dramaturgo Otoni Araújo, era fazer um teatro que assumisse a sua vocação crítica e politizada e que aceitasse ser uma arena de discussão da realidade do povo, seu primeiro foco, mais importante do que a própria cena. Para eles, era necessário o estabelecimento de uma nova relação palco-platéia, deixando de lado o ilusionismo e gerando uma análise da vida das massas, e a transformação de consciências.
Dirigida por Luiz Fernando Lobo, a companhia se mantém fiel ao teatro de intervenção, com uma posição político-ideológica que garante todo o seu repertório.
— Bertolt Brecht, com seu teatro dialético, é uma referência muito forte para nós, mas não exatamente a linha que seguimos. A nossa questão principal, a de que nunca abrimos mão, é o comprometimento social e político do nosso teatro. Também temos influências de pensadores como o alemão Heiner Muller e o russo Serguei Eisenstein — conta Lobo.
— Trabalhamos também com o teatro documental, e nesta linha, se encaixam peças como: Bósnia, Bósnia; O Interrogatório e O Cemitério dos Vivos. Esses espetáculos são dramaturgias próprias do grupo e foram totalmente baseados em fatos reais, sem nenhuma ficção, sempre procurando focar a questão das contradições sociais — continua.
Segundo Lobo, na Cia todo o trabalho é discutido coletivamente em reuniões semanais que objetivam preservar a identidade do grupo.
— Formamos brigadas diferentes para realizar o nosso trabalho artístico e de dramaturgia. Cada pessoa se coloca onde tem mais interesse e pode ser importante. Todas as brigadas são abertas à participação de todas os componentes da companhia e, muitas vezes, até por pessoas de fora — diz.
A companhia, que conta atualmente com 12 componentes, estreou sua primeira peça, O Cemitério dos vivos, de João Batista, baseado no escritor Lima Barreto, em janeiro de 1993. No mesmo ano encenou mais duas peças: Pierrô saiu à francesa, de Luiz Carlos Saroldi e A Missão, de Heiner Muller.
Explica Lobo:
— Nós quisemos fazer três espetáculos no primeiro ano para mostrar ao mercado, aos espectadores, à imprensa, à própria categoria e a nós mesmos que era viável fazer um teatro diferente do que o que estava sendo feito e que isso teria continuidade.
Ao que acrescenta:
— Tivemos muita dificuldade financeira para produzir esses espetáculos, mas não colocamos dinheiro do nosso próprio bolso. Cada espetáculo foi viabilizado de uma maneira: através de parcerias e pequenos apoios, e estratégias como vender ingressos com antecedência, criando uma assinatura da peça, que já dava direito as nossas duas produções futuras, uma espécie de voto de confiança. Desta forma, viabilizamos o primeiro ano da companhia. A Cia. Ensaio Aberto estreou em 1995 Cabaré Youkali, de Kurt Weill e Bertolt Brecht, e Bósnia, Bósnia, de Ad de Bont; em 1996, O Noviço, de Martins Penna, e A Mãe, de Bertolt Brecht; em 1997, O Interrogatório, de Peter Weiss; em 1999, Companheiros, de Luiz Fernando Lobo; em 2000, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e João e Rosa, de João Batista, baseado no escritor João do Rio; em 2001, Filhos do Silêncio, de Luiz Fernando Lobo; em 2002, Missa dos Quilombos, de Milton Nascimento, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra; em 2003, D. João VI , de Hélder Costa; e em 2004, Havana Café, de João Batista e Luiz Fernando Lobo, com músicas de Kurt Weill e Bertolt Brecht, traduzidas por Cláudio Botelho, Luiz Fernando Lobo e Aldir Blanc. Lobo defende que o conteúdo do espetáculo, a qualidade do repertório, o preço do ingresso e o local onde é exibido, são determinantes quanto a quem irá assisti-lo. Sendo assim, a Cia Ensaio Aberto sempre procurou dar acesso, em tudo o que isso significa, às populações que normalmente não vão ao teatro, pela forma como é feita essa distribuição:
— Quando formamos a companhia, todos nós já tínhamos alguns anos de estrada e estávamos dispostos a fazer um outro tipo de teatro daquele que estávamos vendo. Desta forma tivemos que sinalizar para o nosso público que o espetáculo que estávamos produzindo não era o do mercado. Para isso, a companhia fez os seus primeiros espetáculos fora do espaço teatral e associado a ele, realizaram círculos de debates e conferências. A primeira peça do grupo, O Cemitério dos Vivos, foi apresentada no prédio da UFRJ — Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, zona sul da cidade.
— Escolhemos o local pelo fato do escritor Lima Barreto, no qual o texto foi baseado, ter passado por lá como interno. A nossa segunda peça, A Missão, foi encenada no Paço Imperial, no centro da cidade, para dar maior acesso à população que trabalha no centro e aos que moram nas periferias da cidade. recorda Lobo.
No terceiro ano de existência, a companhia passou a ocupar um teatro. Mas não podia ser qualquer lugar, teria que ser algo que estivesse fora do circuito do mercado. O local encontrado foi o Teatro Aliança Francesa, em Botafogo, zona sul da cidade, um ambiente com aproximadamente cem lugares. Os espetáculos ficavam em cartaz por pouco tempo e já eram substituídos por outros, na intenção de não perder os espectadores.
Desta forma a companhia foi crescendo e, em 1999, precisou ocupar um espaço maior, o teatro Glauce Rocha, no centro da cidade, que tem aproximadamente 250 lugares. O primeiro espetáculo exibido, Companheiros, trouxe notoriedade para o grupo, com sucesso de público (uma média de trezentos espectadores por noite, quer dizer, acima da capacidade do teatro). A peça, que é dramaturgia própria e conta a história da esquerda na América Latina nos últimos trinta anos, levou a companhia até Portugal, onde também foi assistido por um público muito grande. Contudo, a idéia de ocupar espaços fora do ambiente teatral não foi abandonada e, ainda hoje, a companhia encena algumas de suas peças nesses locais, como Missa dos Quilombos, encenada no Armazém do Cais do Porto, no Rio.
— Apresentações têm a ver com a história da companhia, que está sempre sinalizando para novos espaços, novos públicos. Na verdade, essa questão do espaço não teatral não é nem somente estética e nem somente política, ela é estética e política. É preciso ir até locais que os espectadores também possam ir — esclarece.
Um dos projetos importantes da companhia neste momento é possuir o seu espaço próprio. Lobo acredita que quando isso acontecer, o grupo terá possibilidade de levar o seu teatro para um público ainda maior. Fala o teatrólogo:
— Estamos em fase de projeto para viabilizar essa idéia. Atualmente precisamos de espaços que caibam de 700 a 1000 pessoas, para poder colocar o público normal que temos.
A ciência do público
— Fazemos o que chamamos de Ciência do Público, que é um trabalho, realizado por pessoas da companhia, para formação de uma nova platéia, através de ligação com sindicatos, associações de moradores, favelas, presos em regime semi-aberto, crianças em conflito com a lei, entre outros. Desta forma, já levamos milhares de pessoas para assistir às nossas peças.
Em 2002, para assistir ao espetáculo Missa dos Quilombos, por exemplo, foi viabilizada a ida de quinze mil alunos da rede estadual de educação, gratuitamente. Já em 2004, para uma nova temporada do mesmo espetáculo, foram mais de dez mil, entre alunos da rede estadual, universitários, comunidades carentes e pré-vestibulares comunitários.
— Para levar essas pessoas ao teatro nós costumamos fazer uma parceria com secretarias estaduais e federais, que compram os ingressos. Desta forma, forçamos o Estado a assumir um papel que ele tem obrigação de assumir, mas que não o faz. Isso não é fácil, mas nos nossos últimos trabalhos levamos mais de cinqüenta mil pessoas gratuitamente e mais de trinta mil a preços populares, entre 1 e 5 reais — diz o diretor.
— Nós sempre organizamos grupos para trazer ao teatro, porque, se por um lado estamos fazendo um papel não estruturante, que é o de somente oferecer espetáculos, por outro, temos um papel estruturante no momento em que começamos a exigir que eles tenham organização para trazê-los, forçando que busquem formas para isso. Por exemplo, pessoas vêm isoladamente nos procurar e nós instruímos que elas devem procurar a associação de moradores ou o sindicato. Assim estamos fortalecendo, de alguma maneira, a luta política.
Mercado e impostos mil
Segundo Lobo, o mercado teatral do Rio é o mais forte do país, por causa das ‘estrelas’, quer dizer, os profissionais que ganharam uma super notoriedade, depois de terem aparecido em novelas e programas de auditórios das emissoras de televisão da cidade, dominam o mercado, com suas peças, que em muitos casos são meros entretenimento. Mas isso não significa que não existem trabalhos interessantes sendo feitos fora desse circuito de grandes nomes:
— Tem muita gente trabalhando de uma maneira diferente no mercado do Rio de Janeiro, entre indivíduos e companhias, mas isso é ofuscado por esse mercado. Na verdade, existe um trabalho forte sendo feito no Rio, e há pouco tempo, quando companhias cariocas de teatro se reuniram, esse trabalho causou espanto nos próprios integrantes dessas companhias, que se surpreenderam em ver quanta gente vem trabalhando em favor de um teatro com compromisso social, e há tantos anos.
Lobo conta que a Cia. Ensaio Aberto, atualmente, não aparece como uma pequena companhia ofuscada pelo mercado, mas que na verdade, ela é uma forte concorrente.
— O mercado não nos olha mais como olhava há cinco ou seis anos, com uma certa superioridade. Hoje, nos olham como uma forte corrente às mesmas verbas que eles. Passamos a captar bom dinheiro para os nossos espetáculos, com grandes patrocinadores, e isso fez com que tivessem que nos respeitar. Na verdade, nós arrombamos a porta do mercado e alcançamos uma coisa muito difícil, que é não abrir mão da nossa estética, da nossa política, e conseguir o dinheiro para produzir nossas peças.
E emenda:
— Mas não é qualquer pessoa ou grupo que consegue produzir um espetáculo, expressar suas idéias, por conta da questão da formalidade. Somos tratados como uma pequena empresa, e não como um ‘simples’. Isso implica que devemos ter todas as coisas que uma empresa normal possui. Não existe regra específica para a área da cultura e deveria ter. O Estado que temos ainda não consegue cuidar disso. — continua:
— Recentemente fiz um estudo dentro da companhia e observei que, com o que pagamos de impostos nos últimos anos, daria para produzir qualquer espetáculo da nossa história anterior. Isso é um dos recursos que o mercado tem de estraçalhar toda e qualquer forma de manifestação. Fica evidente que nós vivemos em uma sociedade que se diz democrática, mas que o acesso aos bens culturais não é democrático.
Mas isso não impede a Ensaio Aberto de continuar seu trabalho. No momento o grupo está viajando pelo Brasil com a peça Missa dos Quilombos. O diretor informa convicto:
— No final de 2004 apresentamos a Missa em São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte e Ipatinga, que é uma cidade operária. Nesta cidade, encenamos a peça em um estádio de futebol para dez mil pessoas. Agora em 2005 voltaremos a São Paulo e Brasília, e faremos uma turnê pelo norte e nordeste do país, e também por cidades operárias. Deveremos voltar para o Rio, com Havana Café, somente no segundo semestre.
Além de Missa dos Quilombos e Havana Café, a companhia está começando a preparar um novo espetáculo, ainda sem nome, e previsão de estréia, que será sobre a vida da alemã internacionalista, comunista Olga Benário.
— É dramaturgia própria, feita a partir de documentos, fatos reais — finaliza Lobo.