Terenas não desistem: retomam terra e enfrentam o latifúndio

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Terenas não desistem: retomam terra e enfrentam o latifúndio

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Enfrentando ameaças de latifundiários armados, índios terenas retomaram no dia 4 de abril as fazendas Petrópolis e Charqueado, que pertencem ao território da tribo no Mato Grosso do Sul (MS), mas que o ex-governador Pedro Pedrossian alega ser dele.

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Bloqueio da BR-16: guerreiros da nação terena defendem suas terras da ameaça do latifúndio

A área faz parte da Terra Indígena Cachoeirinha, reconhecida em 2003 como território histórico e antigo da nação terena, conforme Relatório de Identificação publicado no DOU (Diário Oficial da União) e também conforme Portaria Declaratória do Ministério da Justiça, assinada em 2007.

No entanto, nada disso valeu porque a demarcação foi parcialmente suspensa, em benefício de Pedrossian, por ato do grande reacionário e anti-povo Gilmar Mendes, juiz do Supremo Tribunal Federal.

Segundo Vahelé, um dos líderes dos guerreiros terenas, desde 2007 o governo pouco avançou para concretizar a demarcação da área indígena.

“O processo ficou parado e ninguém fez mais nada. A Funai fica negociando as benfeitorias, mas os fazendeiros se recusam a receber o dinheiro”.

A tribo já descobriu o motivo pelo qual os latifundiários não querem receber a indenização (oferecida com dinheiro público, pertencente ao povo brasileiro, a pessoas ricas que se apossaram de terras indígenas): antes que o processo ande, os fazendeiros estão se apressando em vender tudo a outras pessoas, burlando a lei mais uma vez, como sempre fazem.

“Já tem fazendeiro fazendo venda ilegal das terras. Na Charqueado, nem tem mais gado. Essa terra está no nome do fazendeiro, mas, na verdade, está na mão de um comerciante de Miranda (importante cidade do estado), que já ameaçou a comunidade”, disse Vahelé.

Tudo leva a crer que tal comerciante se chama José Amaral, que já teria mudado rapidamente o nome da Charqueado para Estância Amaral, e esteve participando de reuniões de fazendeiros para combater os índios, conforme admitiu a um jornal.

Vamos resistir”

A reocupação das áreas por 130 terenas, com os corpos pintados para a guerra, foi iniciada no dia 4 de abril. Imediatamente, um grupo de pistoleiros e latifundiários (integrantes do grupo que esteve nas reuniões junto com Amaral) cercaram a entrada das fazendas tomadas e começaram a fazer terrorismo contra os índios.

Na Petrópolis, estacionaram dez caminhonetes no local e passaram o dia gritando ameaças e mostrando seu poder de fogo.

“Além das caminhonetes, aqui em frente, tem homens montados em cavalos e seguranças (pistoleiros) armados. Eles disseram para não construirmos barracos ou plantar alguma coisa, caso contrário, vão destruir tudo”, contou Vahelé a um repórter, por telefone.

Cerca de 20 pistoleiros ameaçavam os terenas e “davam tiros para o alto”, informou Vahelé. Isso na frente da polícia militar, que estava no local e nada coibiu, mostrando claramente a quais interesses estava servindo.

Na Charqueado, não foi muito diferente. Segundo o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), “logo que os índios entraram, começaram a sofrer intimidações. Abordaram nossos companheiros terenas e ameaçaram tomar a moto de um deles, se ele não informasse sobre quem estava na ação”. Policiais chamados pelos latifundiários também ameaçavam invadir a fazenda a durante a noite.

Nos dias seguintes, 5 e 6, a pressão dos agressores continuou. Surgiram rumores de que os fazendeiros iriam invadir a Petrópolis e, conforme Vahelé, por volta das 20h do dia 6 um grupo de latifundiários, funcionários e pistoleiros se aproximou do local e começou a atirar. “Ouvi uns cincos disparos. Nessa hora, a Polícia Federal chegou”, contou.

Para evitar mortes, os índios deixaram as fazendas na manhã do dia 7. Mas não desistiram: ficaram nas imediações. “Vamos resistir até quando puder”, afirmou Vahelé.

A disposição de luta dos terenas é efetivamente grande, como mostram as três retomadas dessas terras, que por direito são suas, realizadas nos últimos tempos.

Em 2009, por exemplo, suas famílias entraram e viveram sete meses na Petrópolis, até que em maio de 2010 foram covarde e violentamente expulsas, com o uso de bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e cães.

Um povo admirável

Os terenas, que hoje somam 24 mil pessoas (com maioria de aldeias no MS), pertencem ao ramo aruaque e são conhecidos também como chanés ou guanás. Na realidade, segundo dizia a antropóloga Branislava Susnik “são os últimos sobreviventes dos antigos chanés-guanás” (Etnografía Paraguaya, Manuales del Museu Etnografico Andrés Barbero, Asunción, 1978).

Os últimos representantes de uma nação de cultura e história admiráveis.

Desde tempos pré-colombianos, habitavam preferencialmente as zonas planas existentes entre a Bolívia e o Brasil, como o Chaco e os Llanos, mais ou menos entre a atual cidade de Santa Cruz de la Sierra e o atual Mato Grosso do Sul.

Embora fossem gente das terras baixas, onde praticavam uma agricultura eficientíssima, curiosamente costumavam subir os Andes, onde seus produtos agrícolas eram apreciados e trocados por bens de povos andinos.

Essa velha rota comercial, aberta pelos chanés/terenas, fez com que entrassem em contato com um poderoso império do lago Titicaca, nas alturas da cordilheira, denominado Tiwanaku, muito antes do surgimento dos incas. Tal contato pode ter sido um dos fatores que transformaram a cerâmica chané/terena numa das mais belas e criativas entre os povos neolíticos que habitavam os campos fronteiriços entre a Bolívia e o Mato Grosso do Sul.

A rota aberta e praticada pela tribo, rumo aos Andes, constituiu um trecho do famoso Caminho indígena do Peabiru, que em sua totalidade teve cerca de 4 mil km e ligava o oceano Atlântico ao Pacífico (História do Caminho de Peabiru Vol. 1, editora Aimberê, 2009).

Mais tarde os guaranis do litoral brasileiro e Paraguai, provavelmente os maiores usuários do Peabiru, aproveitaram esse trecho chané/terena para deslocar-se periodicamente aos Andes e também de um mar a outro.

O trânsito comercial chané/terena com a cordilheira, bem como as incursões guaranis no mesmo rumo, continuaram acontecendo mais tarde (anos 1100-1500), quando os incas estabeleceram seu império.

Foi utilizando esse trecho peabiruano chané/terena que o primeiro homem branco chegou aos Andes por volta de 1523-1525. Foi o “brasileiro” Aleixo Garcia (nascido português), que após naufragar e morar vários anos com os guaranis no litoral catarinense, descobriu a civilização inca sete anos antes do espanhol Pizarro (A saga de Aleixo Garcia, editora Coedita, atual Aimberê, 2004).

Nessa viagem histórica, Aleixo foi guiado pelos guaranis. Mas não apenas. Os chanés/terenas encontrados por ele na fronteira Brasil-Bolívia também participaram “em caráter de acompanhantes”, informou Susnik. E certamente também como guias, já que conheciam aquela parte do caminho tanto quanto os guaranis, ou mais, já que foram seus iniciadores.

A invasão da América do Sul pelos conquistadores europeus, comandada pelo mercantilismo, no século 16, significou uma tragédia para os chanés/terenas/guanás, assim como o foi para todas as nações indígenas do continente.

Na década de 1760, a pressão crescente dos espanhóis sobre os territórios da tribo e de seus aliados guaicurus (mbayás), localizados nas fronteiras bolivianas-paraguaias-brasileiras forçariam a migração de inúmeros subgrupos chanés/terenas/guanás e guaicurus para o lado oriental do rio (hoje Brasil). Essa migração provavelmente se estendeu até as primeiras décadas do século 19. Os subgrupos que se estabeleceram no novo território mantiveram ali, contudo, sua forma tradicional de organização e suas amadas roças.

No entanto, a eclosão da guerra entre o Paraguai e a tríplice aliança, no final de 1864, viria a mudar de forma dramática a vida de toda a nação chané/terena/guaná, inaugurando um novo tempo. Um péssimo tempo.

Um dos palcos do conflito foi justamente o território deste povo que, aliado dos brasileiros, sofreu ataques e represálias por parte das tropas paraguaias. Todas as aldeias então existentes na região dos rios Miranda e Aquidauana se dispersaram, com seus habitantes buscando refúgio em matas inacessíveis na região ou nas serras de Maracajú (onde Taunay esteve em 1866, perto do córrego Piranhinha).

Apesar da intensa participação dos chanés/terenas/guanás em favor das forças imperiais brasileiras e na defesa de suas terras – cujos episódios foram descritos por Alfredo Taunay nas obras Entre os nossos índios e A retirada da Laguna – o império não reconheceria esses esforços, não entregando um palmo sequer de terra para a tribo.

A fase do pós-guerra ficou conhecido por esses índios injustiçados como “tempos de servidão”.

Findo o conflito com o Paraguai, o antigo território das suas aldeias foi disputado e tomado por novos “proprietários”, entre eles oficiais desmobilizados do exército brasileiro e ricos comerciantes que lucraram com a guerra. Nas memórias de Taunay (1931), fica evidente o modo como ocorreu esse processo de “fixação dos desmobilizados” e o processo de expropriação das terras indígenas.

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