O tempo trabalha contra o Brasil e vem sendo desperdiçado em querelas inglórias entre o partido do atual governo e o do não menos lastimável Executivo anterior. Enquanto isso, prossegue a pilhagem desenfreada dos recursos do país, com o beneplácito dos que aparentam presidi-lo. Agora, de novo, o ocupante da presidência da República acaba de defender a política por meio da qual o Banco Central massacra a economia nacional, além de vetar críticas de ministros a essa política.
Paralelamente, a mídia deu ênfase a acusações exumadas para atingir o chefe da Casa Civil. O processo foi detonado por ter ele:
1 descartado o envio ao Congresso, este ano, do projeto de autonomia do Banco Central;
2 falado em favor de taxas de juros menos altas que as atuais.
Até então, J. Dirceu pouco havia dito sobre essa área, que não lhe afeta. Na prática, ela não pertence nem ao presidente da República: é da alçada exclusiva do executivo do Banco de Boston que dirige o Banco Central por mandato dos bancos mundiais. Decidindo discricionariamente sobre a política econômica, ele assume funções do Executivo federal. Assim, o sistema constitucional está subvertido, sob ditadura emanada de um golpe de Estado.
Em ano de eleições municipais, o ministro-chefe da Casa Civil terá sentido a necessidade de mudar algo para estancar o aumento do descrédito do Executivo federal. De fato, cresce a percepção popular de que a vida está mais difícil do que nunca. Mas, sendo as cartas dadas pelas finanças concentradas, a atitude do virtual primeiro-ministro quase lhe custou o cargo.
A área econômico-financeira não é apenas uma área. As consequências do que nela se faz estendem-se a todos os aspectos da vida do país. Recordando: os encargos (juros e correções) da dívida pública foram recorde em 2002: R$ 295,5 bilhões. Em artigos do ano passado, demonstrei ser esse o número real, enquanto o Banco Central apontava menos da metade disso: R$ 113,9 bilhões. Grande parte da despesa em 2002 decorreu de o real se ter desvalorizado em 50%, o que elevou o serviço da dívida externa, além de determinar taxas de mais de 80% aa., auferidas pelos detentores de títulos da dívida pública indexados ao dólar.
Em 2003, quando a taxa cambial do real se recuperou em 20%, a conta oficial dos juros caiu para R$ 145,2 bilhões. A diminuição só não foi maior, porque os títulos indexados foram sendo substituídos pelos atrelados à taxa Selic, que o Banco Central manteve em níveis muito mais altos que os suportáveis pela economia e pelas condições sociais do país.
O pretexto são as “metas de inflação”, como se a estrutura da economia permitisse conter os preços por meio das taxas de juros. Com efeito, mais de 80% dos bens industriais e primários e dos serviços são objeto de oligopólio, o que implica a tendência de reduzir a produção, e não os preços, quando a demanda se retrai. Ademais, os preços administrados dos serviços públicos privatizados decorrem de contratos lesivos ao Brasil, firmados pela administração anterior e respeitados pela atual. Eles reindexam a inflação pregressa, o que implica elevações das tarifas das utilidades públicas, superiores à meta de inflação estabelecida no acordo com o FMI.
Tentando ocultar que a elevação dos juros é o objetivo, pratica-se arrocho cavalar sobre a procura de bens e serviços, por meio das altas taxas e de cortes no gasto público. Os estragos que isso causa à produção e aos investimentos são incalculáveis. Os empregos e as empresas produtivas são esmagados, inclusive porque as taxas de juros para elas são um múltiplo da altíssima fixada para os títulos oficiais. A queda da despesa pública não-financeira completa a ruína da economia, pois se combina com impostos acima de 36% do PIB e em alta.
O governo federal bateu, em 2003, mais um recorde vergonhoso: investiu 0,4% do PIB. Menos do que a deplorável administração tucana em seu pior ano (1999, 0,7% do PIB). Comparando com 17% na China, são 42,5 vezes menos. Assim, se arranjou um superávit primário inédito em 2003: R$ 66,2 bilhões, i.e., 4,32% do PIB, mas os R$ 145,2 bilhões dos juros absorveram mais R$ 79 bilhões (déficit da União). Com isso, mais dívida pública. Os títulos federais no mercado cresceram de R$ 623,2 bilhões em 2002 para R$ 731,4 bilhões em 2003, i.e.,17,4%.
Se alguém imagina que o presente estado de coisas possa prosseguir sem transformar a população em robôs ou em delinquentes, que atente para a queda da participação dos salários no PIB. Ela afundou de 62,3% em 1964 para 36,1% em 2002. E em 2003? O declive tornou-se mais íngreme, com a participação caindo 4,6 pontos percentuais em um só ano, para 31,5%.