Juntando dois elementos importantes dentro do cenário da música brasileira — os conjuntos de samba e os conjuntos vocais — o Arranco de Varsóvia faz, à sua moda, o que o poeta já tinha aconselhado: “não deixa o samba morrer, não deixa o samba acabar”. Ou seja, um trabalho de tradição pelos meios modernos. E se grava Cartola e outros compositores do passado, não tem a intenção de “resgate”, mas de mostrar os grandes autores e sua inestimável obra, através de um tipo de interpretação.
É Muri Costa — violonista, arranjador e uma das vozes do Arranco — que nos fala pelo grupo: de samba, da música comprovadamente brasileira e a força que ela tem. Situa também os entraves impostos pelo terrível sistema do lucro máximo que tenta domar a arte, aviltá-la segundo os seus interesses. Muri recorda a atitude dos que se dizem governantes, principalmente Luiz Inácio, que “matou a esperança do povo”, e de Gilberto Gil, confiante de que trabalho de ministro da cultura se resume à turnê pelo mundo cantando e tocando violão.
Muri à frente do Arranco:
“quem resgata é a defesa civil. Não somos do corpo de bombeiros,
simplesmente olhamos para a nossa tradição”
O Arranco de Varsóvia é um quinteto vocal, fundado no Rio de Janeiro, há dez anos, para interpretar exclusivamente sambas de todas as épocas. Ao mesmo tempo, no repertório do grupo aparecem algumas composições próprias, outras de grandes compositores do passado e artistas atuais como: Chico Buarque, Paulinho da Viola, Nelson Sargento, e Beth Carvalho, que é madrinha artística do Arranco. Por isso, a primeira coisa que diz é:
— A Beth foi quem, no princípio, abraçou a causa do conjunto, nos apresentando a diversos compositores, todos excelentes, trazendo muito repertório e muita idéia para nós. Ela teve uma atitude bastante generosa conosco, e até hoje se fmantém assim. Afinal, ela é mesmo a madrinha do samba — conta Muri Costa.
Além de Muri, o grupo conta com: Paulo Malagutti — piano, arranjos, vocal e composição, com duas músicas gravadas pelo grupo —, Andréa Dutra, Elisa Queirós e Cacala Carvalho, fazendo vocal.
— Eu e o Paulo fazemos parte da primeira formação do grupo. As moças estão há cinco anos. Tudo começou do nosso desejo de cantar samba. Por muitos anos o Paulinho manteve um grupo vocal chamado 'Céu da Boca', do qual fiz parte por um ano e meio, e algumas vezes conversamos sobre fazer samba. Então ele foi tocar com o Quarteto em Cy em turnê pelo exterior, e voltou com essa idéia espetacular de juntar samba com vocal — acrescenta Muri.
O nome Arranco de Varsóvia, estranho para muitos, veio de uma brincadeira entre amigos. Muri conta que Arranco foi dado porque há muitos anos esta palavra queria dizer sociedade de samba. Não eram escolas nem blocos, o nome era arranco. Ainda hoje existe o Arranco do Engenho de Dentro, por exemplo. E Varsóvia, porque três do grupo, em sua formação inicial, eram de origem judaica e todos com pais oriundos de Varsóvia, na Polônia.
— O Danilo Caymi, que é meu parceiro e amigo, foi quem deu a idéia. Quando viu o nosso conjunto de samba, logo falou: "Puxa esse é o arranco de Varsóvia!" E ficou. Mas apesar do nome Varsóvia, o grupo só toca música genuinamente brasileira — deixa claro.
O Arranco está no seu terceiro disco. O primeiro foi em 1997, Quem é de Sambar? O segundo, Samba de Cartola, foi todo dedicado à obra desse grande compositor. Ano passado o grupo lançou o atual: Na Cadência do Samba.
A tradição e o moderno
O grupo canta um samba moderno e ao mesmo tempo mantém um repertório com Cartola, Wilson Batista, e outros grandes:
— Não existe modernidade sem tradição. Se alguém não conhece a sua tradição, não vai poder nem saber o que se está fazendo é novo ou não. Então juntamos misturas maravilhosas, dentro de algumas tradições brasileiras, no caso, o samba com os conjuntos vocais, que tem muita tradição. Lembremos grupos como "Namorados da Lua", "Demônios da Garoa", "Bando da Lua", e outros.
E aí o grupo repele o chavão do "resgate":
— Mas o trabalho do Arranco não tem o menor interesse em resgatar. Quem resgata é a defesa civil. Não somos do corpo de bombeiros. Simplesmente olhamos para trás, para a nossa tradição e procuramos colocar o nosso ponto de vista.
Segundo Muri, por conta desta força e atualidade do samba, vários cantores de outras vertentes, vez ou outra, "dão uma bicadinha neste gênero genuinamente brasileiro", e gravam algum samba. E também por ser algo muito próximo do povo fez, pelos anos em que o carnaval existiu como manifestação popular, com grande repercussão no país inteiro, ainda que hoje tenha se transformado em indústria do pior turismo, assim como também aconteceu com a música e com o futebol, por exemplo.
Músicas do monopólio
— Dentro dessa indústria da música que existe hoje, pagode é uma palavra que virou algo horroroso, mas a princípio, significava festa dos sambistas. Um momento para eles improvisarem, fazerem partido alto, enfim, era uma festa de samba. E então inventaram esse gênero 'pagode' que vem da mesma lata de lixo do 'sertanejo', que não é sertanejo, mas breganejo, com letras medíocres: "Ela me meteu um par de chifres, foi embora, me largou", coisas assim.
Prossegue:
— Com eles vem as "ondas": tem a do sertanejo, que é aquela porcaria, com cantores usando botas e chapéus de cowboy e fivelas enormes, e tem a do pagode, com cantores de cabelos descoloridos, uma porcaria também. Tudo falando de problema passional de maneira intragável. Quem sabe fazer canção de amor é, por exemplo, o Chico Buarque, porque ele sabe escrever; ele e muitos outros grandes artistas.
Emenda Muri:
— E tem artistas confundidos com esses lixos produzidos pela "indústria da música". Levam o nome, mas não são lixo. É o caso de uma área nobre do samba — que inclui o Cartola, Nelson Cavaquinho, o Guilherme de Brito, Silas de Oliveira, o Paulinho da Viola e muito outros astros. Observem a postura do Paulinho, as suas canções, e dá para dizer tranqüilamente: em outro país, onde se dê mais respeito ao artista, ele seria uma espécie de deus da música.
Segundo Muri, existe um monopólio de comunicação de massa, muito poderoso, atuante, que se utiliza de alguns "artistas" da linha breganejo, pagode, axé etc., sem qualquer qualidade, tendo como objetivo simplesmente o tráfico de música, o lucro desmedido, fazer dinheiro, que roubam o espaço de muita gente séria.
O porta-voz do Arranco ilustra:
— Enquanto grandes artistas, quando conseguem um espaço no monopólio, é em um canal a cabo, ou em programas tarde da noite, essas outras figuras aparecem o dia todo, em horário nobre, para uso do Domingão do Faustão, apresentado por um protótipo de imbecil, fazendo questão de dizer que todo mundo que vai lá é bom caráter. O povo gosta da boa música, mas isso não lhe oferecem. O problema é que ele não tem opção.
Formação musical
Muri é um brasileiro privilegiado, porque teve uma casa onde a música era abundante. Sua mãe tocava piano muito bem e seu pai regia uma orquestra imaginária, composições complexas da música erudita, que conhecia profundamente.
— Todo ano, durante o carnaval, ele alugava um escritório na Avenida Rio Branco, no centro do Rio, para ver os desfiles das escolas de samba com a família. Além disso, freqüentava as quadras da Mangueira, de onde era sócio com carteirinha e tudo — explica o artista.
Segundo Muri, já adulto, bastou ouvir o pessoal do samba tocar e cantar, para que ele e seus amigos gostassem e quisessem desenvolver um trabalho assim. E ele acredita que isso também aconteceria com outros, se tivessem oportunidades de conhecer a música genuinamente brasileira.
Mas quem decide
Para Muri o melhor da música cultural brasileira não é encontrado no cardápio que oferecem ao povo, através do rádio, da televisão, das revistas, dos jornais, que fazem parte do grande monopólio das comunicações, porque aqueles que decidem o que vai ser divulgado têm como única orientação o lucro máximo.
— Começa que um artista para tentar gravar um disco em uma grande gravadora, é recebido por pessoas absolutamente ignorantes na arte. Mas estão em um patamar mais alto que ele e têm uma postura prepotente. Olha que receita ruim!— explica o artista.
— É claro que existem gravadoras de resistência do tipo da Kuarup, Acari, Biscoito Fino, e isso sempre existiu, desde a Elenco, do Aluísio de Oliveira, nos anos setenta. Ela fez discos do Vinícius, do Caymi, do Tom Jobim, fez os primeiros do Edu Lobo, enfim, muita coisa boa. Mas a grande indústria da música não é assim e está ai para tirar tudo o que ela pode da música. Ela só admite lucro fácil e rápido.
Segundo Muri, por conta dessa engrenagem ruim, nós vemos artistas como Almir Guineto -ex-Fundo de Quintal, parceiro de Zeca Pagodinho — esquecido em uma cidade do interior de São Paulo, provavelmente com uma gaveta cheia de música, sem que a indústria que envolve o monopólio dos meios de comunicação esteja interessada.
Lula matou
Muri diz que nunca foi PT ou lulista, mas chegou a acreditar que Luiz Inácio poderia fazer alguma diferença, o que hoje é motivo de decepção total para ele. Assim como Gilberto Gil, no ministério, que acabou se transformando num verdadeiro terror para a cultura.
— Fizeram esse projeto de muitos anos no poder e não querem saber. Ele destruiu a esperança de tanta gente dele dar um "sacode". É mais ou menos como a atuação do Gilberto Gil, que só endossou essa maneira de nos ver lá fora como um país exótico, de bananas e araras.
O músico arremata:
— O ministro agora vai para as Nações Unidas tocar violão. Ninguém precisa de um ministro para tocar violão, mas de um ministro verdadeiramente ministro. Para tocar, nós temos muita gente aqui. Precisamos de alguém que tome atitudes, favorecendo uma legião de gente que não tem acesso aos meios de produção, por exemplo.
Apesar de tudo Muri, que tem 51 anos de idade e 33 de músico profissional, acredita que a situação para um homem da música popular cultural brasileira, realmente está difícil agora, mas não permanecerá assim.
— A Lapa — bairro boêmio do Rio de Janeiro — é um exemplo disso. Lá, as pessoas estão fazendo o que querem, entre samba, choro, e ritmos diversos. Também tem as gravadoras que apreciam a boa música e muita gente acreditando e fazendo alguma coisa para que essa realidade atual mude.
Esperanças trabalhando
E o Arranco segue sua carreira. No momento seus Cds são produzidos sob o selo Dubas Música, de propriedade de Ronaldo Bastos — que também é letrista -, distribuídos pela Universal Discos e também são vendidos pela Internet e nos shows do quinteto.
Mas, segundo o artista, apesar de dispor de um disco pronto, é difícil achar alguém que distribua e divulgue. Ele mesmo tem produzido CDs de alguns cantores em início de carreira, num pequeno estúdio de gravação em sua casa, e muitos desses discos ficam à espera de distribuição e divulgação, por muito tempo.
— Já produzi quatorze CDs, e dois deles estão, até hoje, esperando ao menos serem fabricados. Quando um artista vai produzir um disco independente, ele tem que bancar tudo, e depois não adianta ficar com mil deles encalhados sem ter como distribuir, divulgar, vender, colocar para o povo ouvir.
Muri conta que, com muita garra e um trabalho de qualidade, o músico consegue sobreviver, ainda que em guetos no Brasil.
— Para o artista que não tem espaço na mídia conseguir sobreviver do seu trabalho, ele tem que se desdobrar para ganhar o pão de cada dia. Além de me apresentar com o grupo, trabalho como maestro de coral da Unigranrio, Universidade do Grande Rio, em Duque de Caxias. Há 15 anos, mantenho dois corais, um para a terceira idade e o universitário, inclusive já fizemos dois discos. Ministro um curso de produção de música digital no Senac, e produzo discos de outros artistas. Enfim, várias atividades para que eu não tenha que descolorir meu cabelo nem botar um chapéu de cowboy e uma botina de bico para fazer uma mentira dizendo ser artista.
Em compensação, Muri tem uma história alvissareira para contar:
— Outro dia, recebi uma correspondência de um amigo, que morava em frente a minha casa e que hoje reside na França, dizendo que colocou os discos do Arranco em uma festa e um francês, locutor de rádio, ficou encantado querendo o disco para tocar em seu programa. Dias depois chegou a correspondência do francês, que é uma pessoa interessada em música brasileira e assim, vamos alargando o nosso espaço, muito aos pouquinhos. E nos mantemos na atividade. Claro que para isso tem que ter um trabalho de qualidade.
O Arranco, a cada três meses, faz uma mini temporada na Lapa e dali vai circulando pela cidade, mas o grupo deseja ir para outros estados. Já se apresentaram em Lisboa, Portugal e foram muito bem recebidos por lá. Muri e Paulo Malagutti estiveram individualmente também no Japão.
Há pouco, Muri produziu um grupo de sambistas japoneses, de Tóquio, que vieram gravar um disco no Brasil, chamado Balança, mas não cai. Com participação de Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Beth Carvalho, Alcione.
— O Sombrinha e o Arlindo fizeram um samba para os japoneses absolutamente genial, chama Feijoada com Sushi, espetacular. E o Arranco dividiu com eles "Tristeza, por favor, vai embora", com letra em português e em japonês e numa brincadeira com eles os japoneses cantavam em português e nós em japonês. E isso deu certo!