Lançado pela Editora Forense, o livro O Direito Agrário na Constituiçãoé uma importante contribuição para consolidar o jusagrarismo no Brasil. Nos últimos anos, um grupo de juristas vem se empenhando nesta luta, inclusive, buscando inserir no currículo das faculdades de Direito a disciplina Direito Agrário, bem como propondo criar a Justiça Agrária composta por juízes especializados em Direito Agrário. Estes juristas negam-se a examinar as questões agrárias sob a mesma ótica que o código civil examina a propriedade em geral. Eles colocam o foco de seu trabalho na função social da terra.
Tendo como organizadores os Juristas Lucas Abreu Barroso, Alcir Gursen de Miranda e Mário Lúcio Quintão Soares, o livro é mais que uma coletânea das normas constitucionais sobre a questão agrária no Brasil. Ele traz comentários com uma abordagem crítica da Constituição, evoluindo para a formulação de propostas de como um Estado verdadeiramente democrático deveria regular as relações agrárias.
Nesta edição fazemos uma apreciação do artigo do Dr. Raimundo Laranjeira Política agrária: segurança alimentar, transgênicos e soberania nacional e, nas próximas, abordaremos outros temas, tão importantes quanto este, com base nos textos dos colaboradores do livro.
O Dr. Raimundo Laranjeira, jurista agrário, é membro a Academia Brasileira de Letras Agrárias -ABLA, da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. Embora anuncie, no título do artigo, tratar-se de uma discussão sobre segurança alimentar, Dr Laranjeira, logo de início, fecha o foco da abordagem sobre o caso dos organismos geneticamente modificados — OGMs — e, mais especificamente, sobre o caso da soja transgênica. O jurista acusa a administração Cardoso de abalar a ordem jurídica vigente ao assinar decreto regulamentando a Lei n. 8.974 de 05 de janeiro de 1.995 (Lei de Biossegurança), dispondo sobre competência e composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança — CTNbio. Segundo o jurista, “A CTNBio, chamada a dar Parecer em caso de interesse da empresa Monsanto, para liberação da soja Roundup Ready no mercado, prontamente agiu conforme o decreto presidencial, e não consoante a Constituição Federal, dispensando o Estudo de Impacto Ambiental-Relatório de Impacto no Meio Ambiente-EIA-RIMA (comunicado CTNBio n. 54)”
Após uma acirrada disputa, o Judiciário determinou, entre outras coisas, a proibição do cultivo comercial do produto, até que fossem preenchidas as exigências relativas ao EIA-RIMA. Contrariando esta decisão, agricultores gaúchos plantaram a soja geneticamente modificada com sementes contrabandeadas da Argentina.
Criado o fato, a administração FMI-PT, dando prosseguimento a mais um ato lesivo, praticado pelo Sr. Cardoso, legaliza o crime.
A pirataria de estado
É grande a campanha, orquestrada pela TV Globo, contra a chamada pirataria no Brasil. CDs, DVDs, com músicas, filmes e programas de informática, entre outros produtos, são vistos, freqüentemente, sendo transformados em pó por rolos compressores, sob os aplausos da Warner, da Sony e da Microsoft.
Milhares de camelôs são, diariamente, perseguidos, espancados e têm suas mercadorias roubadas, consideradas contrabando. As polícias federal, estadual e municipal são colocadas em alerta permanente para combater este crime tão danoso à economia nacional.
A soja transgênica contrabandeada, se tivesse o mesmo destino, ao invés de aplausos, ganharia o mais veemente repúdio dos tubarões do agronegócio e da Monsanto, através de seus arautos, no monopólio dos meios de comunicação.
Quando os camelôs argumentam que são pais de família que não tem emprego e, se perderem suas mercadorias, serão prejudicados, não tem a menor acolhida. Já no caso da soja este argumento embasa a defesa da medida provisória que logo será Lei.
Ao afirmar que “Tais manifestações do Executivo e do Legislativo, antes de mais nada, eram desrespeitosas a outra esfera de poder, o judiciário, cuja decisão proibitiva permanecia incólume” e, mais adiante, que “ o que se observa, pois, em frente ao judiciário, é um compasso de espera dentro de um contexto jurídico político que vai se alargando, e que retarda o comando daquela sentença pioneira da 6ª, Vara da Justiça Federal em Brasília que desfavoreceu as multinacionais — lá se vão seis anos” o Doutor Laranjeira demonstra sua decepção com a resposta do Estado como um todo. Comparando as duas situações, do ponto de vista dos brasileiros, existem dois pesos e duas balanças. Mas, quando o caso é visto sob a ótica dos interesses da metrópole não existe nenhuma contradição, em ambos os casos a lei e o Estado favoreceram aos monopólios transnacionais.
Combater, praticar e legalizar a pirataria são ações que demonstram o caráter semi colonial Estado brasileiro. Um Estado escancarado à pirataria das corporações do império e a serviço delas.
Os efeitos dos tansgênicos
Entrando no debate sobre os efeitos dos transgênicos, o jurista aborda as várias concepções e se define em relação a elas com a seguinte afirmação; “Minha posição, em primeiro lugar, é de que não se pode, sem mais nem menos, proclamar que os OGMs devam ser banidos pelo simples fato de apresentarem efeitos negativos. Estes existem, certamente, mas tanto quanto se pode demonstrar que existem, também, os efeitos positivos de seu uso. No estágio atual do conhecimento da biotecnologia, essa carga de consequências más ou boas é um fenômeno natural, próprio da fase ainda experimental porque passa a engenharia genética aplicada à agricultura”, e arremata: “Assim, se já se verificou, por exemplo, que a introdução de um gene de castanha-do-pará no feijão terminou provocando alergia às pessoas sensíveis ao primeiro produto, por outro lado está-se a caminho de obter vacina contra a leishmaniose com o alface geneticamente modificado.”
Alertando que uma decisão precipitada poderia levar a uma defasagem científica do país, ele se posiciona pelo avanço científico: “Ao sabor, pois, dessa idéia de que a ciência tem como tônica evoluir, através dos séculos, e não regredir, consoante comprova a própria história, é que o Brasil não pode perder a oportunidade de explorar a biotecnologia, incluíndo o segmento dos transgênicos. Toda a nação tem de ter o compromisso de também obter conhecimentos de uma área de importância estratégica, como é a dos OGMs, que lhe pode oferecer uma infraestrutura invejável, em benefício de seu desenvolvimento, satisfazendo as carências de seu povo.
Posto isso — e porque as experiências devem estar compatibilizadas com a sanidade do produto e com o direito à informação do consumidor — há que se impor o princípio da precaução, que envolvem os mecanismos de proteção desejado para tal desiderato (aplicável, cada um deles em momentos variados), como o estudo de impacto ambiental, a rastreabilidade, as condições higiênico-sanitárias, a rotulagem ou etiquetagem e outros.”
Soberania alimentar e soberania nacional
Ao tomar partido pelo desenvolvimento científico e por considerar que a ciência tem que estar a serviço do povo, o jurista adverte para os perigos que correm a soberania alimentar e a soberania nacional: “Sucede, no entanto, que, em sendo adotada no Brasil a produção gênica, como a legislação básica já enseja, e mesmo dando-se curso às medidas necessárias de precaução, estas por si só não resolvem, de fato, as ameaças à soberania nacional. Poderão limitar as invectivas das empresas estrangeiras, quando almejem colocar seus produtos transgênicos no mercado brasileiro, os quais sofrerão um obstáculo ao imediatismo dos lucros delas. Certamente que as exigências que o princípio da precaução propiciam, protelarão as vendas, restringindo, de certa forma, a vantagem que as transnacionais tem para sua dominação, através do direito de patentes. Mas restringir essa ação não é extirpar as ameaças à soberania tecnológica, alimentar e ambiental do Brasil.”
Chamando a atenção para a imensa possibilidade que temos diante da extraordinária biodiversidade do país, sustenta que “O direito de um povo à soberania alimentar é aspecto da soberania nacional, e está na construção de seus próprios inventos e/ou melhorias na área dos alimentos e das matérias— primas correspondentes, os quais devem funcionar como barreiras tecnológicas à tecnologia que vem de fora já protegida por patentes.” e, fundamenta: “Nada assusta, pois, a perspectiva de que as transnacionais controlem a propriedade de suas “invenções” atinentes a OGMs: a) ou porque o procedimento patenteado pode ser manipulado entre nós, desde que do mesmo resulte um uso novo, e não algo idêntico ao que aquelas empresas conseguiram; b) ou porque a pesquisa nacional é capaz de encontrar novos rumos no empreendimento, com sua própria inventiva; c) ou porque há produtos potencialmente transgênicos que não atraem as multi e, cujo processo de obtenção somente interessa aos órgãos nacionais de pesquisa, em benefício da agricultura e do consumidor brasileiros; d) ou porque se venha a dizer, por lei, que os OGMs somente serão patenteáveis se oriundos de pesquisa reconhecidamente oficial.”
Estado democrático e monopólio estatal
Doutor Laranjeira propõe medidas para serem aplicadas por um Estado verdadeiramente democrático. Ele defende que “Tendo em vista o campo econômico, o Estado pode, então, ser levado a competir com empresas privadas, nacionais ou estrangeiras, ou a suprimir das mesmas determinada exploração, a fim de assumí-la. Desse modo, podemos verificar que órgãos brasileiros de pesquisa agrária, submetidos à uma verdadeira serventia pública, também podem ensejar um maior beneficiamento à coletividade, em extravasando da simples pesquisa para a produção destinada à comercialização, entrando na órbita da atividade econômica diretamente, a fim de afastar as empresas privadas.” E, também: “Pela própria natureza, uma estatal constitui salvaguarda à cobiça estrangeira, desde quando representativa dum Estado democrático, com intenções transparentes de resguardar o bem comum ao povo do seu território, segundo os valores econômicos-sociais de desenvolvimento, os valores éticos e os valores jurídicos básicos. O Estado democrático, que atua na esteira daquele objetivo e desses valores, traz, em síntese, a idéia de atender ao interesse público em geral, o que pressupõe lutar contra a tendência detectada por Marx, lembrada por Fabio Konder Comparato, de que ‘os órgãos estatais não raro favorecem os interesses das classes dominantes, em detrimento das classes dominadas.’” Raimundo Laranjeira não esconde sua indignação ao concluir o artigo afirmando: “Render-se o Brasil aos cultivos das sementes transgênicas e à tecnologia da Monsanto e poucas outras, que detém o conhecimento da matéria, sem tentar impedir sua dominação na área, através de empresas cientificamente respeitáveis de que já dispunha, é a mesma coisa que deliberadamente deixar sua florescente ciência biotecnológica marcando passo, enquanto assiste ao progresso alheio. Um atentado dos governantes do país à própria soberania deste.