“Nem tudo o que reluz é ouro e nem tudo que balança cai”. Quase todos conhecem o ditado, mas poucos percebem seus reflexos para a economia nacional e a saúde humana, por exemplo, quando se discute o consumo de produtos alimentícios transgênicos, à base de organismos geneticamente modificados (OGMs).
Ao menos o governo não quer perceber.
Porque, tudo indica, de nada valem as incontáveis denúncias acumuladas desde a década de 80 a propósito das responsabilidades das grandes corporações transnacionais pela perda de mi-lhares de variedades de cultivos – que durante séculos a humanidade criou -, em favor de algumas outras, por coincidência, produzidas pelas mesmas corporações. Pouco importa as advertências de submissão econômica que causam a adoção de transgênicos na economia nacional, “naturalmente”, híbridos e que dependem de insumos cujo mercado é controlado pelas mesmas transnacionais. Principalmente, tornam-se desprezíveis pareceres científicos de que esses produtos são uma ameaça à saúde da população humana, além de se avolumarem comprovações irrefutáveis sobre o objetivo das mesmas corporações, que tem sido o lucro máximo, e que para obtê-lo elas não manifestam o menor pudor.
A discussão ganhou proporções quando se soube que um dos maiores grupos estrangeiros que exploram insumos agrícolas, a Monsanto, há seis anos patrocinara uma manobra pirata para introduzir no Brasil a soja transgênica, a partir de sementes contrabandeadas da Argentina e do Paraguai.
Embora utilizando ainda em pequena quantidade as sementes que a Monsanto apresenta como de extraordinária produtividade, o Brasil conseguiu se tornar, em 2003, o maior produtor mundial de soja, conquistando o mercado chinês e o europeu e, com isto, contribuindo com mais um ingrediente à questão que envolve aspectos políticos, econômicos, culturais, éticos, ambientais e de saúde.
O grão da Monsanto, com resistência ao herbicida Roundup Ready, tomou conta das lavouras, principalmente no Rio Grande do Sul, sem que a população tivesse qualquer informação sobre quais são os perigos que eles representam para a saúde coletiva.
Termo de compromisso
O governo fez vista grossa e, de repente, nada menos que outros 11 estados brasileiros tinham embarcado na conversa da Monsanto: Paraná, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Piauí, Santa Catarina, Bahia e Goiás. Lançando mão de medidas provisórias, instrumento legal em tudo semelhante aos decretos-leis editados no período do gerenciamento militar, o Planalto legalizou a existência das sementes transgênicas que tinham chegado ao Brasil pela porta dos fundos. A mais recente foi a MP 131, de 25 de setembro, que permitiu aos produtores plantar e comercializar os grãos da Monsanto, desde que assinassem um termo de compromisso, responsabilidade e ajustamento de conduta. A MP 131 foi substituída pela lei 10.814, que estende o prazo para comercialização da safra, de 31 de dezembro de 2004 para 31 de janeiro de 2005. A venda da soja transgênica como semente, no entanto, continua proibida, assim como a aplicação do herbicida glifosato em pós-emergência, o que elimina a principal característica do grão transgênico. A aplicação do glifosato após o nascimento da soja Roundup Ready elimina as ervas daninhas na lavoura, mas não a planta.
O governo determinou a intensificação da fiscalização no país para identificar lavouras transgênicas clandestinas. Os fiscais federais agropecuários estão conferindo se todos os produtores de soja transgênica declararam o plantio de variedades com OGMs, como manda a lei.
Áreas suspeitas estão sendo inspecionadas, a partir da coleta de amostras da lavoura, para análise na Embrapa Trigo, em Passo Fundo (RS). Todavia, conforme estimativa da federação gaúcha da Agricultura, cerca de 90% dos 3,8 milhões de hectares plantados com soja no Rio Grande do Sul já são cultivados com variedades transgênicas. E não são apenas os grandes produtores rurais que aderiram à soja Roundup Ready, tecnologia desenvolvida pela Monsanto. Segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag), até os pequenos agricultores estão plantando o grão geneticamente modificado.
Resistências
No Paraná, onde foi promulgada lei banindo os transgênicos, o governo está travando uma batalha para que o estado seja declarado área livre de transgênicos. A Comissão Interna de Biossegurança do Ministério da Agricultura está analisando o requerimento, mas considera difícil conceder o pedido, já que centenas de produtores rurais do estado declararam ter plantado a soja geneticamente modificada.
Em Goiás, o deputado estadual Luís César Bueno apresentou projeto de lei proibindo em todo o estado o plantio, o cultivo, a comercialização e o consumo de qualquer organismo transgênico, não apenas da soja. A relatora do projeto, deputada Carla Santillo, sofre pressões de todos os lados, principalmente dos que não aceitam a idéia de que a decisão fique a critério único e exclusivo do mercado comandado pelas corporações transnacionais.
O Mato Grosso, que a todos supera na produção de soja no Brasil, não reconhece oficialmente a existência de plantios transgênicos no estado. O governador Blairo Maggi é o maior produtor individual do mundo e, segundo a assessoria de comunicação do estado, não planta nenhuma variedade de soja transgênica, embora seja favorável à regulamentação. O governo estadual advoga a legalização de variedades geneticamente modificadas no Brasil, adaptadas às condições de clima e solo locais para que os produtores mato-grossenses tenham acesso à tecnologia.
Pressões mundiais
As grandes pressões, aquelas que fazem mudar o discurso dos governos brasileiros da noite para o dia, serão exercidas mais intensamente, contudo, de 29 de fevereiro a 5 de março, quando acontecerá em Foz do Iguaçu não só a 7ª Conferência Mundial de Pesquisa de Soja (WRSC VII) como também a 4ª Conferência Internacional de Processamento e Utilização de Soja (Ispuc) e o 3° Congresso Brasileiro de Soja. É a primeira vez que uma conferência internacional de processamento e utilização de soja se realiza no continente. As anteriores aconteceram na Ásia. Das seis Conferências Mundiais de Pesquisa de Soja anteriores, quatro foram realizadas nos Estados Unidos, uma na Argentina e outra na Tailândia.
A programação destaca painel de abertura “Situação atual da produção e da utilização da soja nos maiores países e regiões produtoras – Brasil, China, Estados Unidos, África, Argentina, Índia e Europa” – e palestras sobre “Perspectivas futuras da cultura da soja no Brasil – produção, produtividade, expansão de área”, “A competitividade da soja brasileira no cenário mundial – situação atual e perspectivas”, assim como plenárias acerca do “Papel da soja na luta da fome no mundo”, “Perspectivas da soja no mercado global”, “Transgenia na soja, sua contribuição para a cultura no Brasil”, “Dinâmica e manejo de plantas daninhas no cultivo da soja RR – vantagens e riscos potenciais”, “Situação atual e tendências futuras da produção e da utilização da soja transgênica”, “Análise crítica do impacto da transgenia na produção e na utilização da soja”.
Como se pode antecipar, não será um passeio turístico às cataratas, mas uma briga de foice centrada, principalmente, nos interesses do capital financeiro na Europa e no Brasil, e não apenas em torno da soja. Os principais cultivos geneticamente modificados no mundo são a soja, o milho, o algodão e a canola. Entre 1996 e 2002, conforme o relatório do ISAAA (Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações de Agrobiotecnologia), o principal atributo dessas culturas foi a tolerância a herbicidas (75% do total), com a resistência a insetos em segundo lugar (17%). Genes acumulados para tolerância a herbicidas e resistência a insetos, desenvolvidos em milho e algodão, ocupam 8% da área mundial.
Na Europa, como no Brasil, há uma guerra travada em várias frentes entre os que defendem os benefícios dos OGMs e os que denunciam os riscos para a saúde e o ambiente. Por trás dessa disputa, há um mercado de bilhões de dólares. Companhias como as norte-americanas Monsanto e Syngenta, e as européias DuPont e Bayer CropScience já investem anualmente cerca de US$ 1 bilhão em pesquisas, no total, e firmam parcerias entre si, com universidades e institutos de dezenas de países. Em 2002, o valor do mercado global de cultivos transgênicos foi estimado em US$ 4,25 bilhões. O valor de mercado mundial de cultivos transgênicos é baseado no valor de venda de sementes com OGMs mais as taxas da cobrança de royalties pela tecnologia aplicada.
Estados Unidos, Argentina, Canadá e China são os maiores produtores de transgênicos e correspondem a cerca de 99% da produção mundial. Atualmente, os produtos com organismos geneticamente modificados são cultivados em pelo menos 16 países (Estados Unidos, Argentina, Canadá, China, África do Sul, Austrália, Índia, Romênia, Espanha, Uruguai, México, Bulgária, Indonésia, Colômbia, Honduras e Alemanha), sem contar o Brasil.
Conforme relatório do ISAAA, a área global de culturas transgênicas, em 2002, chegou a 58,7 milhões de hectares, crescimento 10% superior em relação a 2001.
A soja tolerante a herbicida, o cultivo transgênico dominante no mundo, é plantada comercialmente em sete países: Estados Unidos, Argentina, Canadá, México, Romênia, Uruguai, África do Sul, além do Brasil. Essa variedade ocupa 62% da área global de OGMs, que corresponde a 36,5 milhões de hectares.
A segunda espécie mais cultivada é o milho Bt (com gene resistente a insetos), equivalente a 13% da área total de transgênicos, plantada nos Estados Unidos, Canadá, Argentina, África do Sul, Espanha, Honduras e Alemanha. O terceiro cultivo mais importante, conforme o ISAAA, é a canola tolerante a herbicida, que ocupa o equivalente a 5% da área total de transgênicos, plantada no Canadá e nos Estados Unidos.
Outros cultivos incluem milho tolerante a herbicida em 2,5 milhões de hectares; algodão Bt (com resistência a insetos), em 2,4 milhões de hectares; algodão tolerante a herbicida, em 2,2 milhões de hectares; algodão Bt/tolerante a herbicida (combinação de duas características) em 2,2; e milho Bt/tolerante a herbicida em 2,2 milhões de hectares.
Intrusos na mesa
O brasileiro tem sido habituado aos transgênicos desde a mais tenra idade, revela o Green-peace – segundo os seus interesses, uma das maiores organizações não-governamentais do mundo -, lembrando os flocos de milho Kellog’s, as batatas fritas da Elma Chips e as papinhas para bebê e o Ovomaltine da Gerber (Novartis), que dominam as prateleiras dos supermercados, em detrimento dos alimentos genuinamente naturais.
Grandes grupos econômicos internacionais do ramo de alimentos já usam transgênicos há décadas até nas rações para animais. Os bichanos e os au-aus vão vivendo transgenicamente à base das rações Effem (Whiskas e Frolic) e Guabi (Faro e Topcat), quem sabe porque seus donos pretendem transformá-los em superpets? Quem garante que o pitbull e o rotweiller não levaram um picozinho de OGMs?
Há longo tempo o organismo da família brasileira consome alimentos produzidos com transgênicos pela Danone, Kraft (Lacta e Nabisco), Bauducco, Parmalat, Pullman, Wickbold, Quaker, Kellog’s e outros menos votados. Crianças, desde a mais tenra idade, consomem transgênicos da Kellog’s ao se alimentarem com cereais nutricionais; da Quaker, com o Toddy e o Toddynho, a Polentina, a Maionese; da Ajinomoto, com o Sazon e os caldos de carne e de galinha; da Oetker, misturas para pudim e mousse; da Santista, as misturas de bolo Sol. Para fabricar biscoitos, novamente a mesma King ONG tem interesse em revelar: usam transgênicos a Piraquê, a Nabisco e outras. E entre os derivados da soja, destaca os óleos Soya e Salada, da Bunge, e o Liza, da Cargill.
Por falar nisso, a Monsanto, que teve um prejuízo enorme com sua soja transgênica na Europa, já demonstrou que permanece pesquisando novas variedades desse grão “para produzir óleos de melhor qualidade nutricional, através da biotecnologia e de técnicas convencionais”. Além das pesquisas com a soja, a Monsanto está desenvolvendo cultura de oleaginosas para a produção de óleos vegetais enriquecidos com Ômega 3. Quem ainda não viu leite com Omega 3 no supermercado?
Essa empresa americana está investindo R$ 6 milhões numa campanha na mídia nacional para mostrar as vantagens dos transgênicos, de olho num mercado potencial de bilhões de dólares. Nos últimos cinco anos, ela investiu cerca de US$ 4 bilhões em todo o mundo no desenvolvimento de plantas geneticamente modificadas, resistentes a insetos e tolerantes a herbicidas.
Os principais cultivos transgênicos no mundo (em milhões de hectares) |
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Produto | Área cultivada |
Soja tolerante a herbicida | 36,5 |
Milho Bt resistente a insetos | 7,7 |
Canola tolerante a herbicida | 3,0 |
Milho tolerante a herbicida | 2,5 |
Algodão Bt resistente a insetos | 2,4 |
Algodão tolerante a herbicida | 2,2 |
Algodão Bt tolerante a herbicida | 2,2 |
Milho Bt tolerante a herbicida | 2,2 |
Fonte: International Service for the Acquisition of Agribiotech Applications (ISAAA) 2002 |