Tribunal Mundial em Istambul: Vítimas iraquianas denunciam crimes de guerra ianques

Tribunal Mundial em Istambul: Vítimas iraquianas denunciam crimes de guerra ianques

“Os relatos que ouvi ficarão comigo pelo resto da vida. Pode-se pensar que sabe o que aconteceu em Fallujah, mas a realidade é mais arrepiante do que se imaginava.” Salem Ismael, médico iraquiano que encabeçou um comboio de ajuda a Fallujah em fevereiro de 2005

O Tribunal Mundial sobre o Iraque, celebrado em Istambul, Turquia, entre 24 e 26 de junho, culminou um processo de dois anos de sessões em Londres, Mumbai, Copenhagen, Bruxelas, Nova Iorque, Japão, Estocolmo, Coréia do Sul, Roma, Frankfurt, Genebra, Lisboa e Espanha.

Seguindo a tradição do tribunal internacional Bertrand Russell contra crimes de guerra no Vietnã de 1967, este tribunal se propôs a documentar a verdade sobre a guerra e ocupação de 2003, em oposição às mentiras, a desinformação e o silêncio oficiais. Para os participantes o tribunal foi um “ato de resistência”. Como disse a novelista e ativista da Índia Arundhati Roy, foi “uma defesa contra uma das guerras mais covardes que a história registrou”.

Aproximadamente mil pessoas de 24 países participaram do Tribunal, que durou três dias. Seis oficinas, que contaram com a participação de 54 acadêmicos, jornalistas, peritos judiciais, testemunhas, ex-combatentes e funcionários do governo de muitos países, assim como iraquianos que vivem sob a ocupação, apresentaram testemunhos ante um júri internacional de 10 países. Fui convidado a dar um testemunho sobre o histórico de intervenções do USA e Inglaterra contra o Iraque. Sinto-me bem informado a respeito do Iraque, mas os três dias de testemunhos em Istambul — especialmente as palavras dos iraquianos que sentem na própria carne a ocupação — foram muito reveladores e dolorosos.

O horror da ocupação

O segundo dia do Tribunal, sobre a ocupação, foi especialmente intenso e comovedor. Um depois do outro, os testemunhos pintaram retratos horrorosos e indignantes da vida sob a ocupação ianque. Deram descrições de torturas nas prisões, de massacres em Fallujah e em outras cidades, de violação de mulheres, de invasões à meia noite e demolição de casas e outros horrores. Isto se fez através de fotos e vídeos. Vimos o metal retorcido e os escombros de concreto que deixaram em Fallujah. O Tribunal viu um tecido de 16 metros de largura por 2 de altura coberto de fotos de pessoas massacradas no Iraque e seus filhos.

É impossível, nesse artigo, reproduzir os testemunhos e as provas que se apresentaram ante o tribunal, que foi uma denúncia condenatória e contundente da guerra e da ocupação do USA e da Inglaterra (muitas apresentações podem ser vistas na internet em www.worldtribunal.org/main). A seguir dou uma mostra das declarações dos testemunho:

Relato de Hudda Fawzi Salam Issawa, de Fallujah:

“Quando começou a invasão acolhemos 5 pessoas em minha casa. Uma era um vizinho de 55 anos. Em novembro de 2004, os marines chegaram a nossa casa. Meu pai e o vizinho foram abrir a porta. Não éramos combatentes e, portanto, não tínhamos nada a temer. Eu corri para a cozinha para por o véu, pois iam entrar homens…. Isso me salvou a vida. Quando meu pai e o vizinho se aproximavam da porta, foram baleados e morreram instantaneamente. Eu e meu irmão de 13 anos nos escondemos na cozinha, atrás da geladeira. Os soldados agarraram minha irmã maior, a golpearam e dispararam”.

Declaração de um engenheiro de 46 anos:

“Vi um jovem de 14 anos jogado no chão, sangrando pelo ânus. Era curdo e se chamava Hama. Ouvi o que os soldados diziam sobre o jovem e entendi que sangrava porque lhe introduziram um objeto de metal”.

Dahr Jamail, jornalista estadunidense, relata a entrevista que fez com um iraquiano que saiu da prisão de Abu Ghraib depois de ter passado três meses sem ser acusado:

“Ali Abbas vive no bairro Al-Amiriyah de Bagdá e trabalha na administração civil… Ao chegar a Abu Ghraib o desnudaram e assim permaneceu quase todo o tempo em que esteve preso. “Nos amontoaram nus uns sobre os outros, como para simular relações sexuais e nos golpearam com uma vassoura”. Além dos golpes nos genitais, também lhes negavam água ou comida por muito tempo e lhes faziam ver quando atiravam restos de comida em lixeiras. Mais ainda: apontavam-lhes uma pistola para a cabeça para que não gritassem quando apertavam suas algemas.

“Minhas mãos estavam inchadas porque a pressão das algemas me cortou a circulação”, disse, “tive a cabeça coberta com um saco, a mão direita estava algemada a um poste e me fizeram ficar na ponta dos pés…”

Abbas disse: “entraram dois homens. Um deles era o intérprete. Perguntou-me quem era. Disse que era um ser humano. Ele disse:”vamos decapitá-lo e mandá-lo para o inferno. Vamos levá-lo para Guantânamo…” Abbas acrescentou que “além de defecarem em nós, jogaram cachorros, davam choques elétricos e nos fizeram passar fome”.

Disse ainda: “Saddam Hussein também tinha gente assim que nos torturava. Por que julgam ao Saddam, mas não aos ianques?…” Para Abbas, isto não foi obra de um punhado de soldados. “Foi algo organizado, não foi algo feito por alguns indivíduos. E todos os soldados que estiveram em Abu Ghraib são responsáveis.”

Declaração de um engenheiro agrônomo detido:

“Introduziram objetos estranhos em meu ânus e me obrigaram a assumir posições humilhantes… Se referiam às posições com nomes que eu não entendia. Tiraram muitas fotos comigo nessas posições e as passaram, rindo e comemorando. Um par de soldados, um homem e uma mulher, ficaram atrás de mim e faziam coisas enquanto me humilhavam. O jogo que tinham era que o soldado atirava pedras na minha perna ferida e quando eu gritava de dor ela o premiava com um beijo ou o deixava tocá-la. Quanto mais alto era meu grito, mais coisas ela permitia que ele fizesse”.

Fadhil Al Bedrani, jornalista que testemunhou o assalto a Fallujah em novembro de 2004:

“Em 15 de novembro, no setor Goulan, entre 20 e 25 pessoas estavam correndo descalças quando um avião ianque soltou um bomba sobre eles. Só uma anciã e duas crianças se salvaram porque conseguiram esconder-se nos escombros de uma casa bombardeada. Deixaram os mortos estirados na rua por 20 dias.

Em 25 de novembro, 15 soldados entraram em uma casa de Bathara, no centro de Fallujah. Haviam três homens dentro: um era incapacitado, outro tinha 61 anos e o terceiro 52. O único sobrevivente relatou o que aconteceu: “quando entraram viram que nós três estávamos sentados no chão e que não tínhamos armas; 14 soldados se retiraram e o último se despediu e lançou uma granada. Meus companheiros ficaram gravemente feridos. Eu tentei ajudá-los, mas os soldados voltaram em seguida. Me fiz de morto enquanto os outros sofriam. Os soldados executaram os dois.”

Declaração de Hana Ibrahim:

“Queria fazer uma pergunta que muitos de vocês estão fazendo: Por que mantêm as mulheres presas nuas? Por que as fazem desfilar nuas ante os homens presos? Por que colocam homens nus nas mesmas jaulas que as mulheres nuas? Isto é algo que temos que documentar. A União de Médicos documentou o que os ianques faziam através de suas próprias fotos”.

Testemunho de Amal Sawadi sobre o que acontece quando os soldados ianques invadem os lugares: “Às vezes prendem a família inteira e outras vezes deixam as mulheres e as crianças, só prendendo os homens, lhes cobrindo a cabeça com uma bolsa e prendendo as mãos… Logo amontoam todos em um veículo; é uma completa falta de respeito…

Logo começa a investigação. De fato, o que investigam é ambíguo. Os detidos não têm advogado e não se dá razão alguma sobre a detenção. As mulheres são violadas; uma sangrou por três meses e seguiu sendo violada. Não há serviço de saúde. A imprensa não menciona esses fatos, nem que o país inteiro é uma prisão”.

As conclusões do tribunal

Depois de ouvir os testemunhos, o Tribunal concluiu que a ocupação “levou à e destruição e devastação do Estado e da sociedade iraquianos. Não há, em absoluto, a ordem pública, o que tem levado a uma completa falta de segurança humana; a infra-estrutura física está em ruínas; o sistema de saúde é péssimo; o sistema de educação praticamente deixou de funcionar; há uma destruição colossal do ambiente e da ecologia; e se profanou o patrimônio cultural e arqueológico do povo iraquiano”.

A imprensa da Turquia, tanto oficial como de oposição, noticiou diariamente e em abundância sobre o tribunal, com fotos coloridas e grandes manchetes. Entre 300 e 350 pessoas participaram da roda de imprensa das conclusões do tribunal. Estiveram presentes os principais periódicos e canais de televisão da Turquia e de outros países. Em vista da cumplicidade da imprensa burguesa do USA, não surpreende que, até onde eu sei, não se tenha dito absolutamente nada sobre o Tribunal na imprensa ianque.

O júri formulou vastas e contundentes sentenças contra a guerra e a ocupação do Iraque por parte do USA e Inglaterra. Declarou que é “ilegal” e “uma das guerras mais injustas, imorais e covardes, que já se viu na história”. Entre as sentenças contra os governos do USA e Inglaterra figuram:

  • O planejamento, preparação e execução do crime supremo de guerra de agressão, em contravenção à Carta da ONU e aos Princípios de Nuremberg;
  • O ataque contra a população e a infraestrutura civil;
  • A criação de condições que degradam a posição da mulher iraquiana;
  • O castigo individual e coletivo sem acusações nem processo judicial.

Alem disso, o júri destacou o verdadeiro motivo da guerra: “Uma grande quantidade de provas sustenta a conclusão de que um dos principais motivos da guerra foi o controle e o domínio do Oriente Médio e suas vastas reservas de petróleo, como parte do afã do USA em obter a hegemonia mundial”.

Também imputou responsabilidade a todos os cúmplices, como a “coalizão dos dispostos”, outros governos, o Conselho de Segurança da ONU, corporações envolvidas na guerra e a grande imprensa. O tribunal exigiu a “retirada imediata e incondicional das forças da coalizão” e a “anulação e invalidação de todas as leis, contratos, pactos e instituições estabelecidos durante a ocupação e que o povo iraquiano considera adverso a seus interesses”.

Muito significativo foi o fato de o júri reconhecer e defender “o direito do povo iraquiano de lutar contra a ocupação ilegal de seu país”.

Espírito de internacionalismo e responsabilidade

Na reunião, predominou o espírito do internacionalismo e de responsabilidade em nome dos povos do mundo, em vista de que os governos e instituições são diretamente responsáveis, cúmplices ou guardam silêncio antes os crimes de guerra e de lesa-humanidade. “Não estamos lutando somente pelo Iraque, senão pelo futuro do planeta”, me disse Ayse Bertkay, uma de suas organizadoras.

Isto também se manifestou na energia e compromisso dos muitos voluntários que fizeram possível o Tribunal, e nos relatos angustiosos (e inspiradores) de como o realizaram e das noites que passaram trabalhando.

O Tribunal deixou claro o que o mundo não pode esperar: É preciso derrubar correndo o governo de Bush.

Como disse Haifa Zangana, um pintor e humanista iraquiano: “No Iraque seguiremos lutando por nós e por vocês, porque o USA não é o destino da humanidade. Não será a potência que dominará o futuro e podemos criar outro mundo”.

No mês passado, o Pentágono desobedeceu a sentença de um tribunal federal que ordenava que desse a conhecer dezenas de fotos e vídeos feitos em Abu Ghraib. Foi dito que essas imagens mostram ainda mais as atrocidades do USA. Isto é intolerável. É preciso divulgar a verdade.


Extraído de Revolución
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