Por alguns dias — de 30 de outubro a 2 de novembro — as cidades do semi-árido cearense Quixadá e Quixeramobim tornaram-se os centros culturais mais importantes do país, por sediar o I Festival Internacional de Trovadores e Repentistas. O evento, idealizado pelo cineasta Rosemberg Cariry, reuniu mais de 400 artistas — incluindo grupos folclóricos de várias regiões do país — e milhares de espectadores de todas as faixas etárias e níveis sociais procedentes de boa parte do mundo. Tudo de graça.
Quixadá, fundada em 1870, tem uma extensão de 2.059 km2, cerca de 70 mil habitantes (população flutuante indefinida), localiza-se a 190 quilômetros de Fortaleza; enquanto a sua vizinha Quixeramobim, com área total de 3.275 km2 e 60 mil pessoas residentes, acha-se a 203 quilômetros da capital cearense, partindo da BR 116 até o km 75, daí seguindo pela BR 122. Quixadá é cercada por afloramentos rochosos, os chamados monolitos. Uma belíssima atração à parte. Terra onde, por um tempo, morou a escritora Rachel de Queiroz e nasceu o beato revolucionário Conselheiro, de nome próprio Antônio Vicente Mendes Maciel; Quixeramobim (Kieramobim, expressão com dicção indígena), historicamente é um dos pólos turísticos mais visitados do Ceará. Pode-se afirmar, com convicção, que essa cidade — modelo de educação comunitária no Estado — jamais assistiu a um acontecimento cultural tão importante quanto esse festival, desde que foi fundada em 1856; o mesmo pode se dizer de Quixadá.
Fantástica paisagem
A programação oficial do I Festival Internacional de Trovadores e Repentistas foi aberta no final da tarde, dia 30, no palco Patativa do Assaré, com a apresentação da Banda de Música de Quixadá, seguida da apresentação de grupos folclóricos como o Manero Pau do Mestre Cirilo e do Brincante do Cordão do Caruá. A partir daí, seguiram-se recitais de poesia com Chico Pedrosa e Zé Laurentino e a mistura do popular com o erudito a cargo de repentistas da terra, como Geraldo Amâncio, e da Orquestra Sinfônica Eleazar de Carvalho (1912-96). Eleazar era cearense de Iguatu e um dos mais conhecidos e respeitados maestros do século XX, criador do Festival de Inverno de Campos do Jordão, SP. Foi professor de Zubin Metha, Cláudio Abado e Sergey Osawa, entre outros grandes nomes da música erudita.
No dia da abertura do festival foram homenageados, in memoriam, alguns legendários nomes da cantoria como Cego Aderaldo, Patativa do Assaré, Inácio da Catingueira e Fabião das Queimadas. O potiguar Fabião, nascido Fábio Hermenegildo Ferreira da Rocha (1848-1928), era escravo, como o paraibano Inácio da Catingueira (1845-81), até comprar uma rabeca, a alforria da mãe e de uma sobrinha, e a própria.
A programação desse dia terminou na madrugada de 31, com o filho de Orós, Raimundo Fagner, cantando seus sucessos para uma multidão que se recusava a arredar pé do local — a praça José de Barros, onde foi erguido o palco Cego Aderaldo —Aderaldo Ferreira de Araújo (1878-1967), repentista rabequeiro, como Fabião das Queimadas, que tornou-se famoso a partir de uma peleja fictícia com um certo Zé Pretinho do Tucum, escrita em cordel no ano de 23 do século passado por seu cunhado Firmino Teixeira do Amaral (1886-1926). Aderaldo era cearense do Crato, viveu em Quixadá e morreu solteiro em Fortaleza, após criar 24 meninos. Virou mito.
Após o primeiro dia do festival, o que se viu no Sertão Central foi alegria resultante de conhecimentos e informações transmitidos in loco por artistas brasileiros de naipes os mais diversos, e da China (Jiang Chuan Meng e Xing Aili), Chile (Pedro Yanês e Eduardo Peralta), Portugal (Pedro Mestre e José Moças) e Cuba (Los Hermanos Nuevos).
ChuanMeng e Xing Aili arrebataram aplausos prolongados ao interpretarem músicas tradicionais e modernas do seu país: ele do Norte, ela do Centro chineses. Ambos subiram ao palco Patativa do Assaré no começo da noite do dia 31 de outubro, com um instrumento chamado er hu, de duas cordas e arco parecido com violino, só que executado de forma diferente, tendo como apoio a coxa esquerda do executante sentado. As cordas do er hu são de rabo de cavalo, e a caixa de madeira que o identifica é recoberta com pele de cobra. O som que sai é alto e puríssimo. Aili — bela e dona de uma voz agudíssima — interpretou repertório musical característico da sua terra, com base no fim da primeira metade dos anos 50 do século passado.
Os chilenos improvisaram longamente ao som de violas, como os portugueses. Pedro Yanês e Eduardo Peralta chamaram a atenção do público que não conhecia a desgarrada, parente bem próxima do repentismo nordestino. Os cubanos cantaram trovas, como esse equivalente à nossa canção é conhecida lá, na ilha de Cuba.
Repentistas, trovadores, povo
Apresentaram-se em Quixadá e Quixeramobim dezenas de repentistas como os pernambucanos Ivanildo Vila Nova, Oliveira de Panelas, Valdir Teles, Mocinha de Passira e Santinha Maurício; os paraibanos Raimundo Caetano, Raulino da Silva, Severino Feitosa e Sebastião da Silva, sem falar nos cearenses Pedro Bandeira e Myrla Muniz; nos potiguares Zé Cardoso e Sebastião Dias; nos piauienses Zé Viola e Pedro Costa; nos baianos Elomar, João Omar, Xangai e Bule-Bule. Foi festa inesquecível por reunir sotaques diversos, para satisfação e enriquecimento cultural do público presente.
Fora tudo isso, o festival ainda proporcionou ao grande público presente belos momentos com os poetas populares Iponax Vila Nova, Jorge Macedo, Geraldo Alencar, Oswald Barroso e Klévisson Viana, os aboiadores Luís e Damião Moreno, os tocadores de pandeiros e ganzás Pinto Branco e Pelicano Antônio da Bia; Andorinha e Canarinho; Vem-Vem e Beija-Flor; Zé Calixto e Marreco; e Antônio de Oliveira e Passarinho de Fortaleza. Também se apresentaram grupos de forrós, maracatus e reisados, a Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto e o grupo Torém dos Índios Tremembés. Para gáudio geral lá estiveram Ednardo, Amelinha, Belchior, Renato Teixeira, Roberto Correa, Manassés, David Duarte, Pereira da Viola, Pingo de Fortaleza, Rogério, da dupla Régis e Rogério; Fausto Nilo, Socorro Lira, que esteve impecável acompanhando-se ao violão; e Siba, com o Fuloresta, sem falar na Orquestra de Rabecas de Juazeiro e Abidoral Jamacaru e os Meninos da Casa Grande.
Mais: durante os dias em que se realizou o Festival não foram esquecidas as oficinas de cordel (com Rouxinol do Rinaré e Zé Maria de Fortaleza), xilogravura (João Pedro), viola (Roberto Correa), cavalo marinho (Hélder Vasconcelos), escultura (Francisco Sérgio) e de fabricação de pífanos (Zé do Pife). Foram feitas exposições de xilos e fotos contando um pouco da vida de Cego Aderaldo e de Antônio Conselheiro; lançados livros sobre cantoria, abertas feiras para venda de folhetos de cordel, discos e gravuras de formatos diversos. Debates e exibição de filmes com temática popular da mesma forma lembrados pelos organizadores.
O idealizador, e agitador cultural, Rosemberg Cariry avalia o resultado como “positivíssimo” e já pensa na realização do segundo encontro das culturas populares que fervem no calderão do mundo. O local? O mesmo fantástico cenário do Sertão Central oferecido por Quixadá e Quixeramobim.
Assis Ângelo é jornalista e pesquisador da mais autêntica cultura popular e, entre tantos livros é autor de: Eu vou contar para vocês; o Coronel e a borboleta e outras histórias nordestinas; Causos & coisas de uma raça de cabras da peste; De padre Cícero a Câmara Cascudo; O poeta do povo, Vida e obra de Patativa do Assaré.Foi criador, produtor e apresentador do inesquecível programa radiofônico São Paulo Capital Nordeste, recorde em audiência em São Paulo. No seu artigo, a modéstia de Assis Angelo não se permitiu contar que foi convidado para o Festival e que sua presença agradou a todos, muitíssimo, como sempre.