Um autêntico poeta do sertão

Um autêntico poeta do sertão

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Grande nome da cultura regionalista nordestina, José João dos Santos carrega uma bagagem do tamanho de seus milhares de livretos escritos nos últimos 50 anos. Considerado cordelista, poeta, repentista, cantador, violeiro e boa prosa, chamam-lhe Mestre Azulão, carinhosamente apelidado desde sua infância em comparação a um grande cantador de sua região. Azulão trouxe as mesmas características de milhões de nordestinos que desembocam de caminhões “paus-de-arara” no Rio de Janeiro na busca de trabalho remunerado.

Mestre Azulão chegou ao Rio de Janeiro com 17 anos demonstrando seu inquestionável talento que surgiu naturalmente em Sapé da Paraíba, terra de Augusto dos Anjos e cidade onde nasceu e viveu grande parte da sua infância.

Próximo de completar 75 anos, Azulão concedeu entrevista à AND, em sua residência, em Engenheiro Pedreira, Distrito de Japeri, Baixada Fluminense, onde vive com sua esposa Maria das Neves. Nos fundos de sua casa arborizada, Azulão conserva um sobrado onde guarda grande parte de seus livretos de cordel, xilogravuras e um chapéu de cangaceiro que fez questão de colocar na cabeça. Aproveitando a oportunidade, afirmou que a notoriedade do cordel, no Sul, é uma novidade de uns 30 anos. Além disso, carrega a poesia desde menino, ressaltando que muitos cantadores chegavam à sua casa levados por seu pai.

A Feira de São Cristóvão, hoje, é visitada por gente de todas as classes e um dos principais centros de tradições nordestinas da cidade. A respeito, Mestre Azulão reconhece que foi um dos responsáveis pela maturidade da feira — quando o local era apenas um mero lugar de desembarque dos seus “conterrâneos”, mas que logo proporcionou parcerias de viola com cantadores, como Palmeirinha e Curió das Alagoas. Foi lá que sofreu intensa repressão, quando em seus singelos versos na década de 60, contestava todo tipo de censura imposta pelos governantes. Hoje, aos domingos, tem um estande onde vende seus cordéis, declamando para quem se aproxima, atividade que permite sustentar sua própria produção artística.

AND: Mestre Azulão, como foi o seu passaporte para a música, para a literatura?

— Meu nome é José João dos Santos, vou fazer 75 anos no início de janeiro. Desde 11 anos me chamam de Azulão, pois eu aprendi a “cantar” uma história de um cantador chamado Azulão. Aí, meu pai comprou uma viola quando eu tinha 9 anos, mais para brincar. Mas, sempre tive tendência para a poesia e isso ajudou o vínculo entre viola e canto. Ainda mais porque meu pai trazia cantadores lá para casa, me interessando desde cedo pela formação do verso e da sextilha. Aí fui crescendo, e nunca abandonei a poesia. Meu pai comprava cordéis na feira. Lá chamava folheto, romance, peleja. Esse conceito de cordel vem muito das pesquisas realizadas por Luiz da Câmara Cascudo. Ele é um dos maiores pesquisadores da literatura de cordel; escreveu diversos livros sobre vaqueiro, cantador. Esteve na Europa fazendo pesquisas sobre as raízes dessa cultura. Foi daí que se pesquisou a vinda de imigrantes para o Brasil que influenciaram nesse sentido, sendo o Nordeste o principal local.

AND: Algum romance marcou sua iniciação na literatura?

Banca de cordéis na Feira de São Cristóvão

 

— O Pavão misterioso de José Camelo de Mello, e tem outros. Mas o Pavão Misterioso é uma história que emblematiza a cultura sertaneja. E eu aprendi, lá no Nordeste, cantador que não cantasse o Pavão não tinha apreciação. Eu já tinha aquele desejo de ser um cantador e aprendi com 9 anos a cantar o Pavão. Tanto que, quando aconteceu o festival 100 anos de cordel , em 2001, no Sesc Pompéia, em São Paulo, o slogan lá era o Pavão Misterioso . O único de todos os poetas presentes que sabia o Pavão Misterioso decorado era eu. Então, todo dia eu era chamado para alguma viagem. Logo depois, me convidaram para Portugal. Fiquei em Lisboa por uma semana.

AND: Mas, além de Portugal, você esteve em outros países da Europa?

— Dessa vez não, mas na outra eu estive na França e na Espanha. Na Universidade de Sorbonne, em Paris, cantei, declamei. Todos os meus livros estão lá, no Acervo de Cultura Brasileira. Sobretudo na França. Nem tudo o que você quiser saber de cordel no Brasil, você encontra aqui. Lá é que estão os milhões de títulos de cordéis. Discos meus de romances que eu gravei como O homem de arroz e o Poder de Jesus ao som da viola. Por causa desse romance, em 1975, ganhei essa viagem à Paris. Antes disso, em 1969, quando o homem foi à Lua eu escrevi O Homem na Lua . Sempre que crio um romance, formulo numa base que pode ter acontecido.

AND: Sempre um imaginário da realidade?

— Sempre. Mas voltando ao Homem na Lua me pagaram um cachezinho e me levaram para Nova York. Eu fui representando o Brasil, entre 86 países, no Centro de Folclore de Nova York, em um evento sobre culturas regionalistas. E fui representar a Literatura de Cordel. E logo quando entro tenho uma surpresa. Vejo uma foto minha de tamanho normal lendo um dos meus livros na PUC Rio, em 1969.

AND: O que significa a propagação da literatura de cordel e do repente hoje em dia?

— Os jovens brasileiros estão perdidos na escuridão. A respeito da cultura popular brasileira, hoje, acho que é extremamente prejudicada pelos “enlatados”. Os “enlatados” não deixarão nenhum brasileiro jovem conhecer a riqueza cultural que possui. Eu pesquisei muito bem e vi nos dias que passei por lá. Não ouvi uma única música brasileira. As escolas de lá não ensinam nada sobre o Brasil.

AND: Alguém está te ajudando hoje em dia?

— Para mim, escrever é fácil, já publicar… . Ajuda eu não tenho nenhuma. Quando eu fiquei na Secretaria de Cultura do município (Japeri), por quatro anos, eu tinha meu ordenadozinho, de onde tirava um pouco para, de vez em quando, editar um livro meu. Mas depois que eu saí, nunca mais. As pessoas pensam que literatura de cordel é fácil de aprender. Tem professores que estudam há anos e não encontram condições de fazer uma estrofe.

AND: Que mensagem você passa em seus versos e rimas?

— É puramente nordestina. Dentro do padrão nordestino, das rimas, das métricas, principalmente da filosofia sertaneja, dos costumes, todos esses fatores inseridos no geral.

AND: Quantos livros você já publicou?

— De cordel, 318. Além disso, tenho uns 500 poemas. Tem muitos que não amplio nessa conta porque são cordéis, pode se dizer, políticos.

AND: Mas não é importante? Você escreveu até um folheto sobre essa encenação atual…

— Sim. Um dos últimos cordéis que eu escrevi fala até da podridão vista atualmente em Brasília, mas eu cheguei à conclusão que a política hoje só serve mesmo para criticar. A corrupção só serve para desgraçar o povo. Deturpa a moral e a civilização do povo e traz só bandalheira. Ainda por cima, temos a ajuda de uma formação escolar péssima e a promiscuidade gratuita dos canais de TV.

AND: De que maneira os editores do monopólio da comunicação se interessam pela literatura de cordel?

— Os jornais hoje estão subordinados às grandes propagandas. Eles não dão chance a nenhum poeta popular. Teve um seriado na Globo que fizeram para o Lampião, e me chamaram para fazer a linha melódica. Eles não colocaram nem um quarto do que eu fiz. Disseram que eu tinha fugido do roteiro. Querem coisa medíocre, nada de real! Se quisessem saber a realidade sobre Lampião me perguntariam alguma coisa, pois convivi com cangaceiros que acompanharam Lampião por muito tempo.

AND: Eles criam a imagem de um Lampião nervoso e irracional…

— E mostra com muita “pompa”, colorido. Lampião não era daquele jeito. Era um homem rústico, mas que sabia ler muito bem. No entanto continuava com sua rudez e seu carnificismo de fazer justiça com a própria mão.

AND: Qual a importância da feira Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas como legitimadora de divulgação do conteúdo cultural nordestino?

A feira de São Cristóvão tomou um rumo que a descaracterizou. Eu sou um dos fundadores. Eu conheci a feira quando não tinha esse nome, propriamente. Eu, e outros nordestinos, íamos buscar alguns conterrâneos que saltavam lá de pau-de-arara para trabalhar na construção civil. Os únicos cantadores que existiam aqui eram: Palmeirinha, Curió das Alagoas e Manuel Ferreira. Muitos nordestinos ficavam morando nas próprias construções, trabalhando horas inacabáveis. E alguns ganhavam um trocado razoável porque trabalhavam direto. Então, esses cantadores, faziam apresentações para os trabalhadores conterrâneos.

AND: E o porquê da Feira?

Os nordestinos mais sabidos pediam mercadorias do Nordeste como o feijão de corda, o queijo e a rapadura. Estendiam-se lonas para a venda dessas mercadorias. E os que vinham das obras buscar os conterrâneos compravam as mercadorias.

AND: Depois vieram os cariocas?

— Não. Carioca nem sabia daquele local direito. Quando a feira estava dominando, muitos cariocas iam fazer compras lá por intermédio de familiares nordestinos. O Pavilhão surgiu destinado a ser uma feira de automóvel. Mas, se tornou reduto da prostituição e da mendicância. Quem ergueu a feira foi o nordestino Alexandre Alves, que criou uma “sociedade” para ampliação do local. No ano de 1952 é que eu comecei a vender os meus folhetos. O primeiro foi logo quando Getúlio Vargas morreu. E em 1961, eu estava cansado de ver aqueles fiscais do governo fazendo o “rapa”, apreendendo os meus livretos por não pagar licença. Então fiz Uma carta ao governador Lacerda em versos de cordel. Por sorte, a “carta” chegou às suas mãos. Fui convidado até para ir ao Palácio da Guanabara e ganhei uma carteirinha com autorização para colocar minha mesa onde quisesse. Aí, quando a polícia chegava, ficava espantada com a carteirada que eu dava neles.

AND: Que escritor de cordel e estilo de música lhe influenciaram?

— Só segui a linha do cordel, mas nesse universo eu destaco José Camelo de Mello. Música, tem que ser de viola para acompanhar o repente. Através da viola, surgem muitos romances, toadas, pompeios. Hoje em dia, esses cantadores usam violão de 7 cordas. Para mim, cantador tem que tocar com 10, 12 cordas.

AND: Sente saudades daquele romantismo sertanejo, da juventude?

— Naquele tempo o povo gostava de toda essa riqueza de sons e versos. Essa rapaziada hoje não gosta ou não conhece. Se perdem nessas besteiras descartáveis. Só alguns se interessam pela cultura popular, e isso é quando os seus pais apresentam seus costumes. É muito complexa a cultura nordestina. As pessoas aqui não percebem isso. Eu quis trazer essa riqueza para cá (Japeri). Não quiseram. Eu pagava do meu bolso. Baile funk é que eu não quero. Eu quero o pastoreio, o bumba-meu-boi, o forró.

AND: O que se faz para conhecer o cordel, em particular?

— A cada dia que passa eu me sinto mais feliz sendo poeta popular. Pois eu gosto da realidade, não gosto dessas fantasias que desmoronam a personalidade do poeta. Quem não conhece a poesia, procure conhecê-la. Mas não se iluda com muitos que dizem fazer boa literatura de cordel, pregando barbantes por aí. Prova disso é a Academia Brasileira de Literatura de Cordel que dá credencial para incompetentes, porque não há métrica, originalidade. Muita besteira.

Se apodera de muitos corações
Pra tomar volumosas proporções
No caminho do luxo e do prazer
Todo mundo quer ouro, quer crescer
Com a máfia da vil corrupção
Suga o povo e os cofres da nação
Que estão explorados e falidos
E o Brasil dominado por bandidos
Quanto mais poderoso mais ladrão”

“Potentado nem um vai pra cadeia
Num país que só há democracia
Para a classe da alta burguesia
Que está sempre de mala e bolsa cheia
Só o pobre vai preso e leva peia
Quando rouba alguma coisa pra comer
Mas o rico é o dono do prazer
Amparado por todo esse regime
Mata, rouba, faz tudo quanto é crime
Equipado nas armas do poder”

12º e 13º estrofes de CPI, Mensalão e ratos brasileiros

 

“Polícia, fiscal e rapa
Me fazem perseguição
Com termos de grosseria
Nos meus livros passam a mão
Sem me identificar
Procuram me humilhar
Ameaçando prisão”

Sétima estrofe de Uma carta ao governador Lacerda. Azulão, nessa estrofe, utiliza o gênero sete linhas ou sete pés, que significa uma adaptação da sextilha, diferenciando-se dela na formação de sete versos, rimando versos pares até o quarto, além de o quinto verso rimar com o sexto. O sétimo verso rima com o segundo e o quarto.

A sextilha, por sua vez, é uma estrofe de 6 versos com 7 sílabas. Nas sextilhas, rimam as linhas pares entre si, conservando as demais em versos aleatórios. Muitas vezes os poetas, para consolidar uma métrica eficiente, vulgarizam certas palavras para se adequarem ao processo métrico. Exemplo: pruma, em vez de para uma.

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