Um camponês proletário

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Um camponês proletário

http://jornalzo.com.br/and/wp-content/uploads/https://anovademocracia.com.br/46/22c.jpgRecebi com muita tristeza e emoção a notícia do falecimento de Francisco Pereira do Nascimento, o Zé Bentão, um dos fundadores da Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia e militante símbolo desta combativa organização de luta pela terra.

Conheci Zé Bentão em janeiro de 1999 quando, recém formado em história, me dirigi para o estado de Rondônia em busca de experiências "humanistas", feliz por conhecer a Amazônia — intoxicado que estava com os alarmes de que a floresta se acabava — e, objetivamente, para trabalhar como professor em uma escola recém criada pelos próprios camponeses, a Escola da Família Camponesa. Posso dizer que não imaginava no que estava me metendo, mas desde minha chegada a Ariquemes comecei a perceber a situação que existia ali.

Junto com um companheiro que conhecia a região, me dirigi a Theobroma,  fora do eixo da BR 364 — que corta o estado de sul a norte — e, de lá, para a zona rural, onde havia algumas áreas novas de tomadas de terras. Na manhã do dia seguinte tocamos a andar mais de 25 km a pé e ao final da marcha encontramos o Zé, que voltava de uma bem-sucedida caçada na mata. "Barriga verde", depois das muitas horas caminhando, atravessando riachos e debaixo de forte sol, só queria beber muita água e me deitar. Nem reparei na comida preparada em fogão de lenha pela companheira do Zé.

Zé Bentão era um sujeito baixo, moreno, com feições indígenas, músculos potentes moldados pela lida diária do trabalho no campo, pela vida inteira trabalhando para sustentar os irmãos menores e ainda pela prática da capoeira, seu esporte favorito.

Alguns dias depois nos encontramos novamente na cidade de Theobroma, onde esperamos um caminhão que nos levaria até a zona rural de Machadinho D’Oeste para a realização de um seminário sobre a Escola da Família Camponesa, que reuniu professores, camponeses, estudantes, convidados de outras cidades, etc. Bentão estava entre eles. Era semi-analfabeto e participava do seminário da criação de uma escola. E se dedicou para que aquela escola fosse a melhor possível, mas não estudou ali.

Nos reencontramos alguns meses depois quando, como convidado, participei da fundação da Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia, em Jaru. Bentão ali estava e transmitia aos presentes todo o entusiasmo de quem ajudava a criar a organização destinada a libertar os camponeses do Estado e das garras do latifúndio.

O início de 2000 marcou nosso novo reencontro, e desta vez conviveríamos e trabalharíamos juntos por quase um ano. Eu, como professor da Escola da Família Camponesa de Corumbiara, sul de Rondônia. Ele, como membro da direção da escola e professor de capoeira. Continuava semi-analfabeto, mas era membro da direção de uma escola. E qual o problema? Lembro-me que uma das tarefas urgentes era ensinar o Bentão a ler e escrever bem, mas nunca nos dedicamos seriamente a isso. Sempre havia uma desculpa para que tal não fosse feito. Um compromisso na cidade, falta de tempo, viagens a tarefas do movimento, reuniões… E Bentão continuou semi-analfabeto.

Leio a história de Tchapaiev, o herói do Exército Vermelho Russo durante a Guerra Civil em defesa do Estado proletário e não posso deixar de compará-lo ao Bentão. Assim como o russo, ele era incansável, destemido, tinha uma capacidade de trabalho imensa, pontaria certeira e tudo isso compensava sua relativamente baixa compreensão política. Mas isso não o impedia de estar sempre do lado certo, dos camponeses, operários e demais classes revolucionárias de nosso país. E não titubeava em arriscar a própria vida mil vezes pela revolução, da qual era um entusiasta.

Bentão rapidamente se tornara comunista, e certa vez mandou tatuar no próprio peito a foice e o martelo. Fez o desenho e o tatuador executou a ordem. O resultado não podia ser pior; além de muitíssimo mal feita, a tatuagem revelava o símbolo invertido, identificado com as organizações trotskistas tão odiadas pelos verdadeiros comunistas. Imaginem o Bentão, que se dizia um seguidor do Presidente Mao Tsetung, com um símbolo trotskista no peito.

Mas fiel a seus princípios, o Zé tinha uma fé inabalável nas massas e acreditava na vitória como o destino do povo trabalhador do Brasil, como ele dizia, que derrubaria as três montanhas que oprimem o povo: o latifúndio, o imperialismo e a burguesia.

Nos períodos de aula seu violão era nosso companheiro, bem como sua voz e suas músicas, dignas de um genuíno artista popular e que retratavam tão bem a luta do povo em busca de sua libertação. Não tinha nenhum sentimento de propriedade com suas composições, aceitava sugestões e modificava as letras da melhor maneira. Em uma de suas canções diz o refrão:

Deixa este povo passar
Com a bandeira da Revolução,
Pois a vitória será nossa com certeza,
Com a Aliança Operário-Camponesa.

Era capaz de impressionar qualquer ginasta com sua força. De repente se aproximava de algum pilar de sustentação e apenas com a força dos braços se punha paralelo ao solo, há mais de um metro de altura. Ficava assim alguns minutos, conversando como se não estivesse fazendo nenhum esforço.

Certa vez me apresentou um caderno com algo sigiloso. Estava todo escrito em letra redonda e bem feita e contava toda sua história desde que se lembrava dela. Li tudo de uma sentada e me comovi muito ao pensar em quão rica pode ser a vida de um homem. Explicou-me depois que havia ditado tudo a uma antiga companheira, que registrou toda a história.

Contava ali que durante anos defendeu e sustentou a si próprio e aos irmãos menores órfãos no Acre. Quando maiores, os deixou sozinhos e encarou outros trabalhos. Foi marinheiro nos barcos que transitam pelos rios Madeira e Amazonas, mergulhador em garimpos, atividade perigosa que quase lhe ceifou a vida inúmeras vezes, por acidentes ou tentativas de assassinato.

A história terminava antes de sua chegada a Rondônia, quando encontrou o movimento camponês revolucionário e a ele se dedicou até o início deste ano quando, numa curva da estrada, veio encontrar a morte contra a qual tanto lutou durante a vida. Foi uma tocaia das muitas que escapara na vida. Sem dúvida, o latifúndio deve ser responsabilizado pela sua morte, assim como pela morte de tantos outros camponeses pelo Brasil, vítimas do excesso de trabalho, de condições inumanas de sobrevivência, da escravidão, da servidão, da degradação pelo álcool e pelas drogas.

Mas essa fase da história do Bentão que não está no caderno guardado com tanto cuidado (nem sei se existe mais) está viva na lembrança de seus companheiros, que marcharam ombro a ombro com o grande guerreiro camponês que ajudou a fundar a Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia.

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