Mineiro, formado na faculdade de Música, em composição e musicoterapia, Joaquim de Paula, em sua rabeca, é um tocador de música popular brasileira. Com muita disposição, a ajuda da esposa e da filha, Joaquim se especializou em contar histórias com bonecos e músicas, que viraram verdadeiros espetáculos teatrais. No show cante e encante, uma espécie de título, tema e conteúdo de seu projeto, geralmente realizado nas ruas, ele conta histórias de uma forma profundamente crítica e humorada que mexe com a consciência dos espectadores — uma consciência que o poder vigente tenta ocultar.
O trabalho de Joaquim de Paula começou com apresentações musicais de uma maneira geral. Com o tempo foi especializando e aprofundando o seu trabalho, transformando a contação de histórias em música, primeiramente. Depois, ele introduziu bonecos para ilustrar essas histórias. Atualmente ele conta histórias com música e bonecos, tanto em locais fechados, pagos ou gratuitos, ou em espetáculos de rua, no Rio, onde mora, mas também Brasil afora.
Os bonecos medem de um palmo a um metro e oitenta centímetros. Alguns adaptados para serem manipulados facilmente e outros como se fossem adereços.
— As pessoas que estão assistindo podem ver todo o processo de manuseio dos bonecos. Não são como marionete, que alguém fica escondido manuseando. Costumo dizer que trabalhamos com bonecos assim como a criança brinca com eles. Ela não esconde, ela brinca — diz Joaquim.
Como a base do seu trabalho é musical, ele começou com histórias cantadas, tradição que existe no Brasil, e que já existia no mundo europeu, com destaque talvez para Portugal e Espanha.
— No Nordeste ainda se canta muito a História. O repentista, por exemplo, ele vai conversando e contando acontecimentos, improvisando a partir de uma música. Normalmente está acompanhado de uma viola, de uma rabeca, ou sanfona. Enfim, algum instrumento que ajuda a desenvolver sua história — lembra.
— Além da rabeca, uso também um pouco de sanfona nos meus espetáculos, e faço questão que sejam músicas brasileiras. São causos, histórias folclóricas, histórias do dia-a-dia, e também histórias improvisadas dependendo de quem está passando na hora. Chego no local com uma idéia do espetáculo, uma linha, mas dependendo do público e de quem passa na rua, vou improvisando. Por exemplo, passa uma mulher de cabelos amarelos, estereotipada. Na mesma hora, ela entra na história (risos) porque não podemos perder essa oportunidade.
A rabeca tem um som
que lembra a voz humana
Joaquim diz que essas histórias brincam com o público o tempo inteiro, mesmo porque não são instrumentos de teatro de bonecos, que têm uma técnica apropriada: são bonecos feitos para se brincar mesmo.
— Por exemplo: tem uma história que contamos que é de piratas franceses que chegaram no Brasil, coisa bem comum que podemos constatar pela quantidade que temos de Fortes no Rio de Janeiro, verdadeiras fortalezas para, teoricamente, impedir a invasão dos “piratas”pela Baia da Guanabara. Os franceses chegaram por aqui junto com os portugueses. Não foi assim tão exatamente como a história nos conta… (risos). Então contamos tudo isso com a ajuda da platéia que entra no espetáculo imitando a voz de pirata.
E nessas brincadeiras Joaquim fala também da situação atual que o país vive, em todos os aspectos, usando o humor para dizer coisas que o povo pensa e quase não tem como dizer:
— A situação atual não é muito diferente da de 500 anos atrás. Eu gosto de falar isso, porque fomos educados para ser o “país do futuro”. E tem muito tempo que esse futuro é prometido, mas não chega. Inclusive, recentemente descobri, em uma pesquisa, que a primeira música em português, chama ‘Nada Poderia ir Pior’, por volta do ano 1300, fala exatamente das atrocidades que o governo, reis, nobreza, clero etc faziam na época. E isso foi antes de existir Portugal como país, e quando ainda não era esse idioma moderno que conhecemos hoje, mas uma língua portuguesa que estava sendo definida e cantada por trovadores.
Joaquim Rabeca prossegue:
— E eles já falavam naquela época, desde os cabelos compridos dos rapazes que se disfarçavam de moças para poder ter na corte alguma compensação, até de algo como: ‘o rei senta em cima dos sacos de ouro e aumenta o imposto dizendo que não tem dinheiro’. E tudo isso de alguma forma veio para nós e de alguma forma permanece — continua.
Joaquim diz que suas críticas não são exatamente isoladas. As próprias pessoas fazem uma ligação do passado com o presente, com o tempo histórico. Da mesma forma, ele não cunha uma pessoa estereotipada, moldada pelo sistema. Ele simplesmente mostra um boneco igual àquela pessoa e isso serve de espelho para que ela e quem está assistindo veja a sua situação verdadeira, por trás de algo que para ele ganha o nome de moda…
— As pessoas muitas vezes adotam coisas que não fazem parte da sua história, mas da “moda”. Uma pessoa que adota um visual que não é o seu por natureza, e nem tem nada a ver consigo, e se torna algo estereotipado para ficar na moda. Lembremos, por exemplo, da imensa quantidade de pessoas que, décadas atrás, se faziam passar por roqueiros sem ter nada a ver com aquilo, somente porque estava na moda. Mas olhávamos e víamos que não tinha nada a ver com elas, que estavam sendo influenciados por uma moda que chegou até ele, enfim, era um estereótipo.
E prossegue falando das mudanças culturais, dos hábitos, também do modismo:
— Escrevi um livro falando do assunto tradição que termina dizendo que nós mudamos, sim. Por exemplo, eu não calço mais o mesmo número de sapato, não visto o mesmo número de calça, de camisa, o meu cabelo já não é igual. Enfim, eu mudei, embora continue sendo o Joaquim. Então não significa que a pessoa não possa mudar, mas tem que ter uma referência de alguma coisa que permanece como identidade cultural de sua gente — acrescenta.
— Gosto do tipo de espetáculo que faço, porque acho que ele tem uma mensagem do tipo: “Povo, acorda! Olha o que estão fazendo conosco!!”. É uma maneira da pessoa se dar conta, quando já está envolvida e se enxerga ali naquela brincadeira, sem máscaras. Com certeza, o humor tem o poder de expor verdades que as pessoas não conseguem ver num primeiro momento.
Teatro do povo
As três intenções básicas de Joaquim para esse espetáculo são: contribuir para elevar o nível de consciência da realidade social e política; valorizar a música popular cultural brasileira e suas manifestações; e valorizar o teatro do povo, que segundo conta, cada vez enfrenta maiores problemas de produção. Um deles é que, até mesmo por questões práticas, já que não se cobra ingresso do que se apresenta ao ar livre. Mas o artista que vive do teatro, da música, precisa receber algo para o seu sustento.
— O artista precisa, já desesperadamente, comer, pagar contas, etc. E por conta disso está se perdendo a questão da brincadeira, do lúdico, daquilo que se faz sem ser pra ganhar dinheiro ou ficar famoso. E isso aparece em vários setores. Um exemplo simples é que a criança no passado jogava ‘pelada’ e a criança de hoje vai para a escolinha de futebol. O que era uma brincadeira deixa de ser, para se tornar algo cruel, exclusivamente comercial, para ganhar dinheiro, ficar famoso.
O teatro popular serve
para socializar as pessoas
E acerta um tiro certeiro no pomposo aparato técnico, mas que é vazio de vontade popular:
— Uma ‘pelada’, às vezes, é muito mais útil para uma pessoa do que uma escolinha de futebol como essas que eles fazem. Esse tipo de escolinha limita o mundo dessa criança, molda do jeito que quer, impedindo que ela se solte e seja ela mesma. Molda um ser humano a um padrão ditado comercialmente, por um sistema que não reflete a sua vontade, e nisso não há socialização. Na escolinha, ele aprende a dizer que tem uma força maior do que realmente tem. E isso fica internalizado e decorado e ele deixa de se socializar.
Joaquim insiste na justeza do processo em que as pessoas vêem, duvidam, debatem, elevam sua consciência e popularizam os conhecimentos mais profundos. E que, para isso, serve a arte:
— O teatro popular serve para socializar as pessoas. Quando eu mostro os portugueses roubando os índios, por exemplo, estou apresentando algo que a televisão não mostra e mesmo que mostre, não dá a oportunidade de retorno, interação. A pessoa quer ver algo que ela acha bom. Mas tem aquela dúvida e não dá para levantar o dedo e perguntar, porque ela não espera esse momento. O teatro, com o propósito do debate, do esclarecimento de todos, espera esse momento, e isso é maravilhoso — acrescenta.
O cinema, o teatro, os espetáculos de uma maneira geral, são públicos, reúnem pessoas, e não são dirigidos para uma única pessoa. Coisa feita para monologar, tendo ou não alguém por perto.
Então, chega a rabeca
Joaquim é um mineiro de Montes Claros que foi morar no Rio adolescente, entre outras coisas, porque parte de sua família morava na cidade. Veio com a intenção de ficar e já gostava da rabeca, instrumento que ele não estudou na faculdade de música, composição e nem musicoterapia.
— A Rabeca eu ganhei e fui à luta, procurar os rabequeiros de folias de reis, e gostei cada vez mais do instrumento — diz.
Segundo Joaquim, a rabeca é um instrumento de origem árabe, conhecido por muitos como um violino menor, mas o som é bem diferente do emitido pelo violino. Ela veio para o Brasil de duas maneiras: através dos portugueses, na época da colonização, que trouxeram uma rabeca árabe, mas da escola francesa; e através dos holandeses que trouxeram uma rabeca mais inglesa.
— Quando a família real veio para cá, e no próximo ano haverá comemorações da chegada da família real, e vão comemorar isso … (risos), eles trouxeram a sonoridade francesa. Assim, temos a rabeca de sonoridade mais portuguesa, e, ao mesmo tempo, afrancesada pelos portugueses, e a rabeca de sonoridade ligada à tradição inglesa, principalmente no Nordeste. Devido à invasão holandesa aquilo cresceu muito lá.
E vem mais informação:
— Por conta disso o Nordeste é o foco de tocadores de rabeca, mas também encontramos muitos tocadores de rabeca espalhados pelo país, a exemplo de Minas e também no Rio. Os mais antigos ainda tocam rabeca pelas folias de reis que saem pela cidade. Ano passado, por exemplo, eu identifiquei quatro em Jacarepaguá (RJ), saindo pelas casas, como no interior. Parece fora da realidade para muitos, que em pleno Rio de Janeiro saia folia de reis, mas é real. Só não é divulgado.
Joaquim diz que apesar de alguns acharem a rabeca parecida com o violino, e até confundir, pela semelhança física, eles são muito diferentes. Então, é preciso explicar:
— Com a rabeca eu gosto de imitar vozes das pessoas, coisa que com o violino fica muito difícil, porque ele é muito musical, erudito. A rabeca tem um som que lembra a voz humana. Seu timbre é bem mais próximo da fala do que o do violino. Além disso, diferente do violino, o tocador de rabeca consegue cantar tocando, porque ela não é segura como o violino, firme no pescoço. A deixamos mais solta. Também é mais leve.
E francesa portuguesa…
— A minha rabeca, fisicamente, é muito parecida com o violino, porque ela é francesa portuguesa. Quem a fez foi um construtor de instrumento que veio com a corte portuguesa para o Brasil. Depois que morreu, a família continuou com o sobradinho na Rua da Quitanda, fazendo os instrumentos, só que já no modelo francês. Ela é de 1890. O seu som lembra desde o árabe até o inglês, passando pelo forró (risos)— acrescenta.
Pesquisas, CDS e shows
Joaquim gosta muito de pesquisar música, e cultura brasileira como um todo. Por conta disso, costuma ir atrás de registros, de pessoas que possam lhe dar informações e que o ajude a compor suas histórias.
— Há pouco me mandaram de Teresópolis, por exemplo, uma informação de que um pianista de lá tinha em sua casa uma coleção de partituras para criança, do início do século 17. Mas nós temos como “teoria” que a pedagogia específica para criança no Brasil começou só no século 20, mais especificamente nos anos 20, 30. Como, então, já existia coleção de músicas para crianças? Quer dizer, tem furo. Eu costumo montar as histórias que apresento nos espetáculos e CDs a partir dessas pesquisas que faço. Então, conto coisas assim também.
Joaquim já gravou até agora dois CDs de música tradicional popular brasileira, que canta em seus espetáculos. Tem um pouco de baião, um pouco de samba, enfim, muitos ritmos brasileiros. Ele é compositor e também letrista.
— Esses CDs são de músicas que eu recuperei, depois de muito pesquisar e de ter transformado em uma linguagem atual. São músicas do povo, que encontrei com senhoras e senhores idosos, e outros que as conheciam. A maioria é de domínio público. Também tem algumas composições minhas.
E finaliza:
— Claro que não dá para ficar rico com o meu espetáculo, ou com audições executando a minha rabeca. Mas também não morro de fome, porque sempre tem trabalho, ainda que sem apoio dos órgãos de divulgação. Algumas vezes conseguimos patrocínio, outras fazemos os espetáculos em locais pagos e arrecadamos algum dinheiro. Os CDs eu costumo vender depois dos shows, divulgando e comercializando o meu trabalho, quando cabe.