As revelações de Jair Krischke – II
AND entrevista, em Porto Alegre, Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), e Christopher Goulart, advogado e neto de Jango. Documentos obtidos no Uruguai revelam que o regime de 64 temia o retorno do presidente deposto ao Brasil.
João Goulart com o elenco da Ópera de Pequim, em 17 de agosto de 1961
O presidente João Goulart, deposto em 1964, foi assassinado no âmbito da Operação Condor. Essa é a firme convicção de sua família, expressa, em conversa com a reportagem de AND, pelo advogado Christopher Goulart, seu neto, que impulsiona, entre a família, os esforços pelo esclarecimento das circunstâncias de sua morte e pelo resgate de seu legado e de sua memória.
A certeza de Christopher tem respaldo em documentos que Jair Krischke obteve em Montevidéu, Uruguai. Atuando junto aos familiares de Jango na investigação de sua morte, Krischke teve acesso à vasta documentação sobre ele existente nos arquivos dos ministérios do Interior, da Defesa e das Relações Exteriores daquele país.
Faltam ainda, é verdade, uma prova cabal e o esclarecimento de alguns detalhes do crime. Mas todos os resultados da investigação empreendida pelo MJDH e pela família apontam nessa direção.
Tétricas "coincidências"
A causa e as razões da morte de João Goulart são objeto de uma suspeita antiga, baseada numa "coincidência" temporal interessante apontada por Jair Krischke. No mesmo ano em que ela ocorreu (1976), foram comprovadamente assassinados Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz (uruguaios, ex-presidentes do senado e da câmara de seu país), Juan José Torres (general e presidente deposto da Bolívia), Carlos Prats (chileno, ex-comandante do Exército) e Orlando Letelier (chileno, ex-ministro das Relações Exteriores). Em circunstâncias mal explicadas, morreu o ex-presidente brasileiro Juscelino Kubitschek. Wilson Ferreira Aldunate (uruguaio, presidente eleito em 1971) e Andrés Pascal Allende (chileno, dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária) só não engrossam a lista porque escaparam por milagre de atentados contra suas vidas, tal como ocorrera no segundo semestre de 1975 (ano inicial da Operação Condor), com Bernardo Leighton (chileno, ex-vice-presidente da República). Todos eram opositores do terrorismo de Estado que adonou-se da América do Sul nos anos 70.
"1976" — lembra Krischke — "é o ano em que foi eleito o Carter nos Estados Unidos, dizendo que não ia sustentar mais essas ditaduras. Então, eles resolveram limpar o terreno e eliminar todas as personalidades que pudessem ameaçá-los, como passo prévio à abertura. É triste dizer isso, mas esses processos de redemocratização foram todos teledirigidos".
À "coincidência" no tempo, haver-se-ia que acrescentar, talvez, a coincidência no espaço: à exceção dos atentados contra Letelier (que aconteceu nos USA), Pascal Allende (na Costa Rica) e Leighton (na Itália) e da morte misteriosa de Kubitschek (em Resende, RJ), todos os crimes mencionados anteriormente aconteceram na Argentina — país onde morreu Jango.
Juntando peças
Até aí, ter-se-ia matéria-prima apenas para suspeitas — por mais fortes e fundadas que pudessem ser. O caso Jango começa a descortinar-se de maneira mais clara em 2002, a partir de revelações feitas pelo uruguaio Mario Neira Barreiro.
Preso no Rio Grande do Sul, onde cumpre pena por tráfico de armas, Barreiro procurou a imprensa e o próprio Krischke apresentando-se como ex-agente do serviço secreto uruguaio (o que o dirigente do MJDH diz não ser verdade) e dizendo ter informações sobre a morte do presidente.
Krischke é enfático ao expor suas reservas a tudo que venha dele. Ainda assim, reconhece como valiosas muitas de suas informações. "Várias das informações dele conferem. Números de telefone que ele diz que eram do Jango e que ele teria grampeado eram do Jango mesmo. Houve uma festa de aniversário do João Vicente (N do A: filho do presidente e pai de Christopher) em Maldonado na qual ele diz que estavam presentes algumas pessoas, e essas pessoas estavam realmente lá; a família confirma".
E o mais importante: "o sujeito que ele diz que teria preparado o composto químico que desencadeou o ataque cardíaco que matou o Jango, um médico forense uruguaio chamado Carlos Milles Golugoss, realmente existiu e era, de fato, médico forense (Krischke mostra ao repórter de AND o ato de nomeação de Golugoss para o cargo). E morreu em circunstâncias misteriosas: estava construindo ou reformando uma casa, resolveu subir no telhado para conferir um aspecto qualquer da obra e ‘por acaso’ caiu".
Fleury no Uruguai
Barreiro — conta Krischke — era radiotécnico da polícia de Montevidéu, condição na qual tinha acesso às informações que percorriam os transistores de suas viaturas e centrais. E era também membro de um grupo paramilitar de ultra-direita denominado Juventud Uruguaya de Pie (JUP), atuante no período imediatamente anterior ao golpe de Estado de 1973.
Nessa condição, esteve presente quando da montagem de outro grupo paramilitar dedicado à eliminação de militantes políticos e sindicais de esquerda, atuante entre 1971 e 1973 e vinculado à JUP, com a qual tinha integrantes em comum: o Esquadrão da Morte (EM).
O nome soa familiar ao leitor brasileiro? Pois as "coincidências" vão além. Conforme conta Krischke, o organizador do Esquadrão da Morte uruguaio foi ninguém menos que o delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury, "estrela" da organização brasileira homônima e figura-chave na repressão à resistência armada ao regime de 64.
O envio ao Uruguai de uma figura com a importância que tinha Fleury para aquele regime evidencia o interesse do governo brasileiro pelo que se passava do outro lado da fronteira. O maior foco desse interesse era precisamente João Goulart.
Monitoramento permanente
A documentação obtida por Krischke mostra que, desde antes de sua chegada ao Uruguai até sua morte, Jango foi monitorado permanentemente pelos serviços secretos de quatro países: USA (CIA), Brasil (SNI), Uruguai e, a partir de um determinado momento (1973 ou 74), Argentina, que tinham sobre ele vastos expedientes e intercambiavam informações entre si.
O dirigente do MJDH mostra ao repórter de A Nova Democracia um cabograma da CIA (reproduzido nesta página), datado de 2 de abril de 1964, emitido em Porto Alegre, relatando a partida do presidente deposto da capital gaúcha para Montevidéu.
"Naquela época" — acrescenta Krischke — "integrava a equipe de trabalho da CIA no Uruguai o então agente Phillip Agee (N do A: Agee rompeu depois com a organização e denunciou várias de suas malfeitorias; morreu em Cuba em janeiro do ano passado) –, que conta em seu diário que, logo após o golpe, pediu — e obteve — ajuda para seguir os passos de Jango".
O cerco se fecha
A partir do golpe de Estado de 24 de março de 1976, a Argentina — país que, como conta Krischke, Jango, a partir de 1973, passara a frequentar regularmente em razão do retorno de seu amigo Perón ao poder e do golpe de Estado no Uruguai — deixa de ser um local seguro. Em agosto, seu escritório em Buenos Aires é invadido pela repressão.
João Goulart torna-se alvo de uma vigilância cada vez mais cerrada: os documentos obtidos pelo MJDH relatam mínimos detalhes de sua vida particular. A principal fonte dessas informações era uma agente infiltrada desde 1973 pelos serviços de inteligência uruguaios dentro da casa do presidente como empregada doméstica e referida nos documentos pelo codinome Margarita Suárez.
A partir das detalhadas informações fornecidas por ela, os serviços secretos que vigiavam Jango sabiam, por exemplo, que remédios ele tomava. Segundo Christopher, a hipótese mais provável é a de que seu assassinato tenha-se dado mediante a troca desses remédios pelo composto químico produzido por Golugoss, que teria induzido o ataque cardíaco que vitimou o presidente. O responsável pela adulteração, segundo Barreiro, teria sido Héctor Rodríguez, um agente argentino.
Krischke acrescenta, ainda, outro dado: a fazenda onde Goulart morreu situa-se na província argentina de Corrientes, que faz fronteira com o Brasil. Em 2007, com o testemunho do dirigente do MJDH, foram condenados à prisão na Argentina o general Cristino Nicolaides — figura-chave da usina de assassinatos e torturas posta em marcha pela ditadura de 76 — e sete de seus colaboradores. Durante o processo, um deles relatou a existência de bases binacionais do terrorismo de Estado, operadas conjuntamente por brasileiros e argentinos. Uma dessas bases — à qual estavam vinculados Suárez e Rodríguez — situava-se na cidade de Paso de los Libres, Corrientes, fronteira com o Brasil.
Profícuo exílio
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