Dominique de Villepin* avançou contra a Sorbone e a periferia. Empolgado com a aprovação sem maiores resistências do Contrato para o Novo Emprego (CNE) – em vigor desde setembro de 2005 e que prevê rescisão de contrato trabalhista sem motivo e sem direito a recursos por parte de empresas com até 20 empregados – e pressionado pelas classes dominantes de seu país que o acusava de leniência com os sindicatos, o primeiro ministro francês tentou, em fevereiro desse ano, um segundo e ainda mais ultrajante passo na chamada desregulamentação do mercado de trabalho: o Contrato do Primeiro Emprego, cujo alvo da precarização seriam os jovens com menos de 26 anos que trabalham em empresas com mais de 20 funcionários.
Villepin tentou ludibriar a população afirmando que, com o CPE, o governo buscava um equilíbrio entre mais flexibilidade para a empresa e mais segurança para o trabalhador. Uma equação improvável, uma vez que interesses do patronato e dos trabalhadores são, por natureza, antagônicos e inconciliáveis. Porém, milhares de estudantes, apoiados por sindicatos, saíram às ruas a fim de impedir esta ofensiva para reduzir custos e deixar o trabalhador em situação de risco permanente, destruindo as conquistas trabalhistas e comprometendo as possibilidades de organização classista.
Diante de mais uma investida do capital monopolista em nome da “flexiblização” dos direitos historicamente conquistados pelas classes trabalhadoras, o monopólio da imprensa internacional usou e abusou do plural “inflexíveis” para se referir aos estudantes e sindicalistas que, durante dois meses, resistiram nas ruas da França à legislação que colocaria o jovem trabalhador à mercê dos humores do empresariado.
Eles foram pintados pelas televisões e jornais do mundo inteiro como — além de desordeiros — estúpidos, contrários à superação do que os arautos da modernização conservadora chamam de “imobilismos” e “tabus”. Ao mesmo tempo, o governo responsável pela tentativa de legalização da demissão sumária de jovens trabalhadores recebeu total solidariedade desse mesmo monopólio de produção de mentiras, que apoiou a intransigência quanto à retirada do Contrato do Primeiro Emprego, comandada pelo presidente Jacques Chirac e por Villepin.
Os dois principais nomes do governo de direita francês foram apresentados como defensores dos excluídos do mercado de trabalho e obstinados combatentes, prontos a tentarem de tudo para vencer o desemprego e destruir privilégios.
Esta nova retórica reacionária — oriunda dos porta-vozes empresariais ou de seus bajuladores na imprensa e em cargos públicos — cada vez mais se especializa na inversão dos sentidos da reeordenação imperialista ou das lutas populares que se apresentam como resistências à devastação atual.
Quando se trata dos embates travados no âmbito das transformações no mundo do trabalho, a tônica é, como num passe de mágica, apresentar a precarização generalizada dos empregos e a destruição das conquistas sociais do povo como alternativas para conter o processo massivo de exclusão promovido pela própria expansão do capital financeiro.
Insegurança, medo e lucro?
No Brasil, o trabalho de manipulação é especialmente exercido pela Rede Globo, ou The Globe (o jornal ianque melhor traduzido no Brasil), como era conhecida essa máfia pelos jornalistas progressistas na década de 60. Quando noticiou a capitulação de Chirac e Villepin em seu telejornal do horário nobre, o correspondente da emissora em Paris relatou à audiência que na França de hoje existe “uma juventude preocupada apenas em manter os privilégios de leis antiquadas que engessam a economia francesa”. A matéria lamentou a pouca habilidade política do governo para fazer valer a lei reivindicada pelas empresas, por ter cedido às pressões e dado um “passo atrás” no processo de liberalização de restrições às finanças — no caso, através de uma reforma conservadora do emprego.
Para o professor e historiador Mário Maestri, co-autor do livro A Linguagem Escravizada — Língua, História, Poder e Luta de Classes, o monopólio das comunicações que opera no Brasil atuou em dois sentidos para atenuar a importante vitória do trabalho sobre o capital na França:
— Primeiro, deu pouco espaço ao sucesso das mobilizações da juventude e sindicatos franceses, minimizando sua importância. Depois, apresentou as jornadas como ações conservadoras, corporativas e anti-modernas. Nesse processo, serviu-se de linguagem e, portanto, de conceitos que veiculam conteúdos negativos para a luta anti-capitalista.
A vitória, porém, é parcial, pois o sentido geral da legislação existente e das investidas que estão por vir não deixa nem deixará de ser o da precarização do trabalho, de acordo com a linha de direita do governo “ultraliberal” francês.
Menor tutela sindical
Mas, além de garantir que as empresas não poderão demitir quem quiser — na hora que quiser e sem justificativa alguma —, a juventude e os sindicatos franceses conseguiram uma vitória simbólica semelhante à das mobilizações de 1995 contra as alterações no sistema de seguridade social e de aposentadorias, transformando-a em mais uma bandeira da militância anti-fascista, ao menos no plano das lutas econômicas.
Mário Maestri avalia que a tentativa de implementar o Contrato do Primeiro Emprego na França se inscreve nas transformações no mundo do trabalho como militância internacional do capital em busca de maior precarização das relações contratuais:
— Neste caso, ensejando o direito do capital de romper o contrato de trabalho, no momento que quiser, com a menor indenização possível. Isso facilita a rotatividade do trabalhador, promove a queda tendencial permanente do valor do trabalho e mina a resistência sindical.
Para Maestri, além de garantir a proteção contra a demissão e funcionar como uma trincheira simbólica, a vitória nas ruas da França pode surtir efeitos ainda maiores:
— A junção da mobilização dos estudantes e dos trabalhadores conteve a ofensiva conservadora desequilibrando fortemente as relações políticas e sociais em favor dos trabalhadores, já que obrigou, por um lado, o capital e seus representantes a recuarem e, por outro, tornou clara a impossibilidade, em médio prazo, de propostas como esta.
Após ser obrigado a manter um mínimo de respaldo legal contra a gestão empresarial da insegurança e do medo nas relações de trabalho, o poder agora empreende sua retaliação à excepcional mobilização popular pela retirada do CPE, através da criminalização do movimento. Centenas de jovens têm sido condenados à cadeia por suas participações nas manifestações. A sanha repressiva com cara de vingança mal disfarça as arbitrariedades das detenções e posteriores condenações. O jornal l’Humanité promoveu um abaixo-assinado condenando a obstinação repressiva da justiça francesa e pedindo a anistia da juventude anti-CPE.
Gerência PT aposta
No Brasil, o Programa Primeiro Emprego foi lançado em junho de 2003 e vendido como exemplo de política pública para a juventude, subsidiando empresas dispostas a contratar jovens sem experiência profissional. A demagogia, porém, não resistiu à realidade, e o programa, nada original, portanto, foi boicotado pelo patronato que, a despeito do marketing da responsabilidade social, repudiou a idéia de não poder substituir seus atuais contratados por jovens menos onerosos às suas planilhas de custos.
Luiz Inácio, então, sempre mais subserviente, defendendo a irritação do grande patronato, criticou o projeto elaborado pela sua própria gerência para uma platéia de metalúrgicos no ABC paulista, ele (assim mesmo) reclamou que o projeto parecia ter sido “elaborado por sindicalistas”:
— Mandamos uma lei em que o empresário não podia mandar outro trabalhador embora. O empresário não contratou ninguém porque ele não quer assumir o compromisso de não poder mandar ninguém embora.
Dessa forma, (o cartel oportunista que controla) o PT, eleito sob a imagem de partido popular, preparou o terreno para o que estava por vir. Em abril de 2004, mais uma vez, desobrigou o capital da principal contrapartida em seu projeto de “inserção da juventude no mercado de trabalho”. A partir de então, a empresa que aderisse ao programa poderia demitir à vontade, abrindo caminho para a substituição de seus empregados por jovens com salários menores e condições de trabalho precárias, tudo com subsídio oficial.
Juventude traída…
A juventude brasileira que apostou na mudança de rumos com a eleição de Luiz Inácio — via poder latifundiário, burocrático e imperialista — caiu na armadilha, da qual há de se livrar. Mas ela própria não condicionou sua possibilidade de emprego ao desemprego da geração anterior. Ela, nessa e em outras ocasiões, não traiu. Antes, foi e vem sendo traída, todos os dias.
Além disso, o discurso segundo o qual o fracasso do programa é fruto de uma gestão equivocada não passa da reprodução da lógica da exploração capitalista na sua fase mais decadente. Ainda que implementado, o Programa Primeiro Emprego — com toda sua retórica de dar experiência aos jovens e inseri-los com sucesso no mundo do trabalho — nem sequer chegaria perto de uma política pública democrática que confrontasse a lógica da usurpação e precarização cada vez mais entranhadas nas relações desiguais entre trabalho e capital, não diferenciando faixa etária, e apresentando o atual (e mais degenerado) modo de produção como o único modelo de sociedade possível.
No mesmo sentido caminha a recém sancionada Lei do Aprendiz: forma encontrada de legalizar a instrumentalização do trabalho jovem pelo capital, sob a égide da falácia conservadora de “ensinar a pescar”. Esse projeto, ressuscitado dos tempos do gerente Cardoso, é festejado por instituições como a fundação Abrinq, através de campanha publicitária com um slogan símbolo da adequação e submissão: “sua empresa ensina, todos aprendem” (?!).
Não por acaso, na lista de parceiros e apoiadores da Abrinq não faltam bancos e transnacionais, ao mesmo tempo em que a fundação se diz defensora dos direitos das crianças e dos adolescentes… Algo como a empulhação de conciliar segurança trabalhista com a “flexibilização” proposta por Villepin. A declaração de seu diretor-presidente, Rubens Naves, afirmando que contratar um aprendiz é um dos melhores investimentos que uma empresa pode fazer, deixa evidente a quem interessa legislações dessa espécie.
… e centrais controladas
Mário Maestri lembra que o pouco que havia de estabilidade nas relações contratuais de trabalho no Brasil foi destruído ainda no período da gerência militar, atendendo às exigências do grande capital, principalmente o estrangeiro, sobretudo no que se referia à estabilidade após dez anos de emprego (vide o covarde Fundo de Garantia por Tempo de Serviço — FGTS).
Ele constata que, após 1985, os trabalhadores jamais conseguiram retomar efetivamente a luta pela reconquista e aprofundamento de seus direitos:
— A legislação sobre Primeiro Emprego e a Lei do Aprendiz constituem contribuição à precarização das selvagens normas contratuais no Brasil. Uma outra iniciativa no mesmo sentido é a proposta, já avançada, de abolição da multa rescisória sobre o Fundo de Garantia, nas demissões sem justa causa.
Prossegue Maestri:
— No Brasil, por razões históricas, os trabalhadores ainda não conseguiram superar a forte debilidade no que se refere à sua constituição como classe consciente de seus interesses gerais. Uma consequência disso, que é também causa desse problema, é que nosso movimento sindical apresenta conformação estrutural, não assentando suas raízes na vida real produtiva, ou seja, na fábrica, na oficina, no escritório, na escola, na universidade. Para fortalecer essa realidade, a legislação sindical favorece organizações superestruturais, com aparatos não raro regiamente remunerados, representando formalmente o mundo do trabalho muitas vezes em contraposição frontal com seus interesses.
Para ele, caiu em desuso para muitos sindicatos a luta pela mobilização permanente contra a “flexibilização” (sabotagem) das leis trabalhistas:
— As privatizações, que passaram o controle de imensas esferas produtivas das mãos do Estado para as do capital privado, ensejaram desemprego e precarização maciça das relações contratuais. Uma enorme parte das direções sindicais apoiou e se aproveitou desse processo de privatizações, em vez de combatê-lo e tentar construir um programa concreto de reconquista e ampliação da estabilidade do trabalho.
Do projeto pode-se dizer ainda: um jovem, até então estudante, que se inscreve no tal programa Primeiro Emprego, torna-se um desempregado por natureza. Passa de estudante à condição da pessoa que aguarda infinitamente por uma vaga ou, quando a obtém, dentro de uns poucos meses, é finalmente despedido de um trabalho mal remunerado.
Diante do fiasco do Programa Primeiro Emprego (que cumpriu pífios 0,5% da meta apregoada como promessa de campanha e serviu apenas para repassar dinheiro público a transnacionais como o McDonalds), a gerência brasileira acena agora com sua substi tuição neste mês por um programa similar, o Juventude Cidadã, que apostaria no “treinamento” e “qualificação” de jovens vítimas de um sistema de ensino premeditadamente negligenciado pelo Estado…
Na prática, trata-se de mais uma iniciativa que aposta na submissão e despolitização da juventude pobre através do manejo gerencial da situação de desemprego e desesperança em que ela se encontra, ensejando conformismo no lugar da rebelião.
* Dominique Marie François René Galouzeau de Villepin nasceu em Rabat, Marrocos, 1953. É um diplomata e político, atual primeiro-ministro francês, ocupando esse cargo desde 31 de maio de 2005, em substituição a Jean-Pierre Raffarin. Villepin pertence à hierarquia da direita francesa, “exemplar perfeito da classe dos burocratas da École Nationale d’administration (ENA) que governam o país”. (Enciclopédia Wikipédia).