No embalo da onda Reagan/Tatcher, nos anos 80, o Chile embarcou na aventura neoliberal, tornando-se o primeiro país sul-americano a esvaziar o papel do Estado, conforme os ditames do FMI. Com o povo ainda cicatrizando as feridas do período Pinochet, ficou fácil para a elite chilena sofismar sobre o que seria bom para a economia do país, para, em seguida, aplicar o prescrito pelo Sistema Financeiro Internacional aos países periféricos que consistia basicamente na contenção drástica dos gastos públicos na forma de privatização de serviços e setores estratégicos da economia, dentre eles o do cobre. Ao aceitar essa imposição, o Chile abriu mão da possibilidade do desenvolvimento econômico, transformando-se num mero produtor de frutas e vinhos finos para regalo do apetite voraz de europeus e americanos. Essa opção, típica de povo colonizado, foi alardeada pelos abutres do FMI como exemplo de “estabilidade econômica” a ser seguido pelos demais países do continente. Era a estabilidade das republiquetas que se conformaram em exportar produtos com baixo valor agregado e importar tecnologia de alto custo.
Infelizmente, esse exemplo encontrou defensores no Brasil. Não foi por coincidência que FHC, em sua primeira campanha eleitoral, prometia dissecar o Estado brasileiro, libertando-o dos males de que padecia (numa espécie de abertura de caixa de Pandora), e com isso torná-lo ágil e eficiente, da maneira que convinha aos banqueiros, aos megaespeculadores e à nossa elite perversa e antipatriota. Essa guinada rumo à “modernidade” custou nove anos de miséria e sacrifício ao povo brasileiro, que empobreceu e adoeceu em escala alarmante, jogando o país na condição indigna de detentor de índices vergonhosos de desenvolvimento humano. Nesse período sombrio da vida nacional, o governo de traição de FHC notabilizou-se pela perseguição aos funcionários públicos e aposentados e por cevar banqueiros corruptos. O investimento no social nunca passou de maquiagem orçamentária: a rede de assistência médica foi destruída; o ensino público degradou-se. Pagávamos um preço alto pela inserção subalterna no processo de “globalização” econômica, fruto da mentalidade mesquinha de quem se julgava um Estadista.
…fala grosso para o público interno, quando repreende ministro publicamente, e ameaça denunciar a vida ‘faustosa` dos servidores públicos…
Findo o governo FHC, renasce a esperança de dias melhores. Um povo desiludido e cansado das manipulações tucanas aposta todas as fichas na candidatura Lula, que vence com sobras o candidato oficial e recebe uma herança maldita, uma herança de traição ao interesse nacional, ao mesmo tempo em que muda o tom do discurso, numa atitude considerada pelos ingênuos como estratégica, mas que, na verdade, já apontava para um recuo diante das forças da reação. A perspectiva de mudança no campo econômico-social cede espaço a uma retórica desenxabida de quem deve explicar as mudanças de conteúdo no projeto petista que hoje abriga, em nova roupagem, a política econômica fernandista.
Não houvesse a mudança de rota, com o sacrifício das questões de princípios, a eleição de Lula iria por água abaixo. Foi esse o pacto social de que hoje tanto se fala: os segmentos mais representativos da sociedade foram alijados e as forças retrógradas que apoiaram a eleição de Lula se entenderam com o PT. Mais uma vez as elites deram as cartas, forçando a renúncia do pouco de consequente que havia na proposta petista.
Os cardeais do PT trocaram a coerência política pelo sabor adocicado do poder, que inebria, haja vista o deslumbramento e a desenvoltura do atual presidente, que fala grosso para o público interno quando repreende ministro publicamente, e ameaça denunciar a vida “faustosa” dos servidores públicos, na tentativa de intrigá-los com uma população carente e famélica, ansiosa pelos miseráveis cinquenta reais do programa-embuste Fome Zero. No âmbito externo, antes mesmo das fotos oficiais de praxe, apressou-se em se deixar fotografar, sorridente e fagueiro, ao lado de Bush, numa versão tupiniquim de Tony Blair, pronto a reafirmar compromissos que a legitimidade da eleição não lhe conferia. Para quem vivia um ócio pouco criativo às expensas do PT, tornava-se fácil transferir sacrifícios para o povo brasileiro. Hoje, mais do que nunca, estamos tutelados à economia e à política externa belicista americana.
Então, o que mudou? Nada. Começaram a perceber milhões de brasileiros vítimas de uma empulhação eleitoral avalizada pela grande mídia, que agora assistem atônitos o desempenho bisonho de um governo sem projetos nacionais, que cuida unicamente da administração da nossa dívida, de modo a não desagradar os credores. O povo que se lixe! E se Deus é brasileiro, como dizem por aí, sempre, haverá um lugarzinho onde se possa enterrar uma criança vitimada pela desnutrição.
… gente que renega um passado de lutas por um prato de lentilhas dos banqueiros internacionais; gente que se compromete com um empresariado apátrida a fim de custear suas campanhas eleitorais…
Ao trilhar o mesmo modelo econômico do seu antecessor, o presidente Lula deixa cair a máscara da mudança e expõe a face cruel da continuidade de um projeto antinacional que aprofunda a nossa dependência econômica, inviabilizando de vez a retomada do crescimento e do desenvolvimento. Diante desse quadro de total irresponsabilidade com o país, ao presidente Lula restaria apenas assumir o papel de milagreiro disposto a combater as desigualdades sociais, valendo-se das poções formuladas pelo novo mago da economia, pessoa de fala mansa, mas impiedosa nos cortes orçamentários da área social.
A falta de uma política industrial é uma triste realidade. Não demora muito e estaremos importando alfinetes. “O governo petista insiste na política suicida de abertura de nossa economia ao capital estrangeiro, levando a um processo de desnacionalização”, ensinam as palavras sábias do eminente Professor Reinaldo Gonçalves da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O perigo espreita a nação, mas ainda assim a única preocupação do governo é a reforma previdenciária a qualquer preço. A exigência do FMI, que a propaganda oficial tenta transformar em reivindicação popular, é imoral e será imposta sem o menor respeito aos direitos adquiridos, sob a argumentação de acabar com os privilégios dos funcionários públicos. Privilegiado não é o barnabé, maioria dos servidores, mas, sim, o presidente da República que pouco trabalhou na vida, é avesso ao estudo, acumulou polpudas pensões sobre as quais se recusa debater e, ainda assim conseguiu galgar o mais importante cargo dessa nação.
Preocupado somente com o que considera um ponto de honra, a implementação das reformas antipovo, o governo abandonou o compromisso de rever as privatizações fraudulentas da era tucana, optando pelo silêncio da omissão impatriótica. Enquanto isso segue célere o desmantelamento do que restou do Estado brasileiro, processo no qual os discordantes são massacrados por uma ética utilitarista que diz vivermos tempos modernos, onde não haveria chance para o discurso de defesa do interesse nacional.
Refém da vaidade e da ignorância dos problemas nacionais, o presidente Lula aconselha-se com “gurus” inconfiáveis, porém ambiciosos: gente que deseja o poder pelo poder; gente que não pensa no interesse do país; gente que renega um passado de lutas por um prato de lentilhas dos banqueiros internacionais; gente que se compromete com um empresariado apátrida a fim de custear suas campanhas eleitorais e gente que pune a coerência dos companheiros de partido. Esses chefões da máquina partidária petista, no momento aboletados no poder, jamais falaram a verdade. O que falavam não passava de discurseira vagabunda. Não tinham, nem têm, ideais. São seres invertebrados, prontos ao primeiro pedido de flexão de Tio Sam.
Enquanto crescem as críticas ao novo governo, sinal de que as suas políticas não atendem ao povão, o Presidente Lula segue o caminho do bom comportamento, resignando-se em ver um país com vocação de potência mundial retroagir à condição de produtor de mercadorias em estado bruto, cujos preços são controlados por bolsas internacionais, sepultando de vez o grande sonho dos povos latino-americanos: um Brasil produtor de tecnologia avançada, forte, solidário e respeitador das diferenças.
O genial Darcy Ribeiro dizia com tino: “O PT é igual à galinha que cacareja para a esquerda, mas põe os ovos na direita.”
*Thelman Madeira de Souza é Médico do Ministério da Saúde