Em recente discurso proferido neste ano de 2003, em Santa Catarina, o presidente da República declarou para um grupo de operários que o Brasil é um pais pobre. Só não disse do quê.
Pois, eu vou me permitir completar o pensamento do atual primeiro mandatário da nação. Sim, o Brasil é um país muito pobre, mas de estadistas, de políticos sérios e de instituições confiáveis que estejam única e exclusivamente a seu serviço. Por isso, pobre em poder. Esta é a única riqueza que nos falta, o poder nacional que traz a plena soberania. Se tivéssemos o poder em nossas mãos já teríamos tudo. Teríamos um verdadeiro projeto de nação.
Pela falta dele, já no século XIX, o gaúcho Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, fracassou na sua tentativa de promover para o Brasil, já naquela época, um “espetáculo de desen-volvimento”. Culpa dele? É o típico caso da boa semente que caiu em solo estéril da politicagem brasileira, historicamente subordinada aos interesses internacionais.
No final do século XX, dentre centenas de casos, temos mais um, onde outra boa semente da genuína tecnologia brasileira, a do aeromóvel, também foi semeada nessa terra infectada pela praga do cosmopolitismo imperialista, que não permite que algo nela plantada vingue em benefício do povo brasileiro. Chegou a germinar, mas, pelo terrível efeito da peste, não cresceu e, portanto, também não frutificou.
A partir do ano de 1983 eu tive a oportunidade de observar, em Brasília e Porto Alegre como esta epidemia se propaga, conhecer seus agentes e suas estratégias para propagação da doença.
No começo da década de 60, Oskar Coester, um técnico aeronáutico, recebeu um desafio de Rubens Berta, presidente da Varig: “Que tipo de sistema de transporte urbano poderia transportar os passageiros das empresas aéreas dos centros das grandes cidades até seus aeroportos em menos tempo do que os novos jatos — recém introduzidos na aviação civil — levavam para voar de uma cidade a pelo menos 400 km uma da outra?” Motivo: já se gastava mais tempo para se deslocar, por exemplo, do Centro do Rio de Janeiro ao aeroporto do Galeão do que voando de Congonhas a este mesmo aeroporto.
Oskar Coester estabeleceu as seguintes condições como premissas básicas para poder resolver plenamente o problema proposto: o sistema teria que ser elevado ou subterrâneo e em via exclusiva, para não conflitar com o tráfego de superfície; custo de implantação e operação extremamente baixo; seguro, confortável, confiável e rápido; “ecologicamente correto”; deveria impactar e perturbar o meio ambiente muito menos do que qualquer sistema existente.
Na época não existia nenhum sistema com essas características.
Tempos depois, ao observar um vagonete que rodava sobre trilhos, movido a vento como um barco, pela adaptação de um mastro e uma vela, com a função de transportar pessoas de uma ponta a outra no trapiche do porto de Rio Grande (RS), Coester teve ali sua grande inspiração.
Como aquele veículo não tinha tração nas rodas, teoricamente, poderia ter seu peso morto reduzido a zero, deixando o resto para transportar toda a carga útil possível, o que traria uma tremenda economia de energia para realizar o trabalho. Não tendo peso morto e tração nas rodas poderia ser elevado com facilidade e por um custo de implantação muito baixo — hoje quase dez vezes inferior do que para se instalar um metrô subterrâneo com a mesma capacidade de transporte.
Mas de onde viria o vento de forma constante e controlada para a sua propulsão? Para isso, bastaria inverter a posição da vela e colocá-la dentro de um duto onde se sopraria o vento produzido por um ventilador industrial comum acionado por um motor elétrico trifásico de corrente alternada de baixa voltagem.
E mais: a parte superior do duto de concreto, elevado sobre estreitos pilares, também serviria para se assentar os trilhos onde se faria a rolagem do veículo em via totalmente exclusiva. Por que elevado? Para se ter um custo de implantação muito menor do que um sistema enterrado e evitar conflito com o trânsito de superfície, o que conferiria total mobilidade, velocidade e segurança.
Pronto, estava inventado o aeromóvel, o sistema elevado para o transporte urbano de passageiros.
Como aparece, como some
Os primeiros ensaios foram realizados na residência do inventor, com o aspirador de pó da esposa e um carrinho de brinquedo de um dos quatro filhos. A seguir, num segundo modelo, Coester acoplou rodas de lambreta a uma cadeira. Ambos os experimentos funcionaram excepcionalmente bem, acima de qualquer expectativa.
Em maio de 1977, testou um vagonete sobre trilhos carregado com sacos de areia. Nesta altura, sua fama já corria o país. Em 1979, Jorge Franciscone, diretor da extinta EBTU (Empresa Brasileira de Transporte Urbano), resolveu apostar na idéia. Garantiu US$ 4 milhões para a construção da via experimental em Porto Alegre, no Gasômetro, que passou a funcionar em caráter experimental em 1983, a qual tive a oportunidade de testar várias vezes.
Porém, o projeto não foi concluído em função da troca no Ministério dos Transportes, onde Cloraldino Severo substituiu o então ministro Eliseu Rezende (atualmente deputado federal por Minas Gerais) e arquivou o projeto.
Também fui testemunha da atitude cosmopolita imperialista e antipatriótica de Cloraldino Severo para com o projeto de Oskar Coester. Neste mesmo ano, ao visitar a EBTU em Brasília, procurando mais informações sobre o sistema, fui informado por um de seus diretores que o ministro Cloraldino, ao assumir a pasta, tinha proibido todos os funcionários de falarem sobre o assunto, inclusive mandando destruir todo o material informativo sobre o aeromóvel existente no Ministério e na EBTU.
Em 1984, a convite do então deputado estadual Carrion Jr., cheguei a Porto Alegre para assistir na Assembléia Legislativa a uma audiência onde Cloraldino Severo foi convidado a dar explicações à sociedade gaúcha sobre os motivos que o levaram a boicotar o projeto. Resumo assim as justificativas do ministro dos Transportes de João Figueiredo para tão impatrióticos e arbitrais atos: ele disse ter suspendido o financiamento ao projeto por não acreditar que um “alemãozinho”, em uma oficina de fundo de quintal, pudesse desenvolver um sistema de transporte coletivo de passageiros que viesse a competir com os sistemas já em uso, produzidos pelas grandes empresas multinacionais.
Nesta oportunidade, Oskar Coester não trabalhava mais para a Varig, sendo diretor presidente de sua própria empresa, a Coester S/A, especializada na produção de sistemas de navegação automática e controle de leme para a marinha nacional e estrangeira.
Foi aí que eu pude perceber pela primeira vez como, por ordem e influência de um poder supranacional, o Estado brasileiro estava começando a ser demolido com a colaboração e o trabalho da alta cúpula da burocracia estatal e dos políticos cooptados e submetidos à vontade e às determinações desta nova “ordem”.
Coincidência ou não, foi durante o ano de 1982 que se estabeleceu o famigerado “Consenso de Washington”, sendo no Brasil o aeromóvel uma de suas primeiras vítimas, juntamente com o Programa Espacial, o submarino nuclear brasileiro, a Embrapa e outras.
Em 1985, Renato Archer, ministro da Ciência e Tecnologia da Nova República, autorizou um empréstimo de US$ 2,5 milhões, concedido pela Finep**, para a conclusão do trecho experimental. No entanto, em meio ao clima de euforia do Plano Cruzado, quando se acreditava que a inflação estava debelada para sempre, o contrato de empréstimo (em cruzados) desprezou a inclusão da cláusula de reajuste. Como se sabe, o plano econômico falhou. Quando o dinheiro chegou, tinha virado pó e nada pôde ser feito…
Mais e mais vantagens
Baseado na engenharia de aviação, o veículo do sistema aeromóvel tem quatro vezes menos “peso morto” em relação à carga útil transportada, comparado com qualquer vagão ferroviário.
O trem em funcionamento na linha piloto de Porto Alegre permitia a velocidade de até 80 km por hora e o transporte de 136 passageiros por veículo articulado em linha simples, características essas determinadas à época pela EBTU — nada impedindo que ele pudesse viajar muito mais rápido e com veículos de muito maior capacidade de transporte que este primeiro protótipo.
O sistema também dispensa a necessidade de condutor e as manobras são feitas nas estações por controle remoto computadorizado. Tem freio a disco nas rodas só para estacionamento, pois o principal meio de parar o comboio é inverter o seu sistema de propulsão, que altera a direção do fluxo de ar em movimento no “ventoduto” sob os trilhos.
Outra excepcional característica do aeromóvel: ele é praticamente à prova de descarrilamento e de colisão, já que o pistão plano (vela invertida) — introduzido dentro do “ventoduto” é ligado à parte inferior do vagão por meio de uma estreita haste que corre ao longo de uma fina fenda existente na parte superior do próprio “ventoduto”, entre os trilhos — não permite que ele descarrile. Se, por acaso, um veículo se aproximar indevidamente do outro, forma-se um colchão de ar comprimido dentro do “aeroduto” entre as duas velas de cada um deles, não permitindo que o indesejável evento venha ocorrer.
O aeromóvel também foi implantado em 1989 numa linha de 3,5 km num parque de Jacarta (Indonésia), onde há centros de convenção, prédios culturais e uma universidade. Até hoje é a única linha em operação comercial no mundo onde já transportou, sem falhas, mais de 14 milhões de passageiros.
Se, neste momento, houvesse governo brasileiro representando um mínimo de poder e vontade política do povo seria possível revolucionar o transporte coletivo no país, estimular a indústria genuinamente brasileira e gerar milhares de empregos com salários compatíveis às necessidades da população, através da ação combinada e coordenada de alguns de seus ministérios.
Por princípio, o que teriam alguns a fazer?
Ministério da Indústria e Comércio
O o aeromóvel foi concebido para ser construído e implantado sem a necessidade da importação de um único parafuso, portanto, beneficiando 100% a indústria nacional — tanto a da construção civil, a metalúrgica, a eletroeletrônica, a de autopeças e a mecânica, além da exportação, como já ficou demonstrado.
Ministério do Trabalho
Como 65 % do custo de implantação do sistema se refere às obras civis, isto significa a geração de um grande numero de empregos só nesta área.
Ministério das Cidades
Para a implantação do sistema aeromóvel não é necessário realizar desapropriações, portanto, pode ser levado facilmente a qualquer ponto das cidades utilizando-se das áreas públicas já existentes. Essa é uma das grandes ferramentas para a regeneração urbana.
Ministério das Minas e Energia
Como o sistema funciona acionado por energia elétrica alternada e de baixa tensão, não é necessário, como no caso dos trens e metrôs, a construção das caríssimas estações de rebaixamento de voltagem e retificação de corrente, porque a simples utilização de motores trifásicos, de até 200 CV, são suficientes nas estações de bombeamento de ar, mesmo para os trechos de maior velocidade ou aclive. Estando as estações de bombeamento de ar equipadas com geradores de emergência, o sistema não pára em casos de apagão.
Outra observação importante: para o aeromóvel não existe limite de inclinação de rampa. Teoricamente pode subir paredes com inclinação de 90 graus (!).
Ministério do meio Ambiente
O aeromóvel, literalmente, pode ser movido a vento em regiões propícias à utilização da energia elétrica fornecida por geradores eólicos — que, aliás, já são produzidos no Brasil e exportados até para a Alemanha por uma empresa instalada em Sorocaba. Também pequenas hidroelétricas, biogás, gás natural, o metano produzido por aterros sanitários, etc., podem ser utilizados direta ou indiretamente para a sua propulsão.
Ministério da Ação Social
O preço do transporte por passageiro através do aeromóvel fica até três vezes menor do que o pago em qualquer linha de ônibus que cumpre o mesmo percurso.
No Brasil, transporte coletivo é questão de Estado.
A quem não interessa?
No exterior
Ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ao Banco Mundial, ao BIRD e ao sistema financeiro, às poderosas corporações mundiais da área do transporte, à indústria (estrangeira) do petróleo, etc., etc.
No Brasil
Às concessionárias do transporte coletivo urbano e às prefeituras com interesse na continuidade desse relacionamento; à indústria automobilística, fabricante de chassis para ônibus; às distribuidoras estrangeiras de petróleo; aos fabricantes de pneus, etc.; e ao Diálogo Interamericano, através de seus agentes locais, simpatizantes e “inocentes” úteis.
*Ronaldo Schlichting é administrador de empresas.
**Finep – Financiadora de Estudos e Projetos, pertencente ao Ministério de Ciência e Tecnologia. Criada para “promover e financiar a inovação, a pesquisa científica e tecnológica em empresas, universidades, centros de pesquisa, governo e entidades do terceiro setor, mobilizando recursos financeiros e integrando instrumentos para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.”