O primeiro morto de uma gestão presidencial “que não tem capacidade para matar”
Na terça-feira, 28 de setembro do presente ano, faleceu Juan Choque, vítima de um tiro que entrou pelo seu nariz e saiu por sua cabeça. Como já se tornou um costume macabro, o tiro foi disparado por um dos franco-atiradores do estado boliviano que de costume estão protegidos na zona cocalera do Trópico de Chapare, situada no Departamento de Cochabamba.
Juan Choque, de 37 anos, deixa órfãos seus cinco filhos, naturais do departamento de Potosí, a zona mais pobre da Bolívia e o principal departamento que expulsa migrantes da Bolívia; o nome deste cidadão talvez seja igual a centenas de nomes, quem sabe milhares, bolivianos que vivem no mais completo anonimato, no país onde o sobrenome Choque costuma ser típico “cidadãos a pé”.
Ele vem a ser o primeiro morto da gestão de Carlos Mesa, iniciada em 17 de outubro de 2003, depois da renúncia e fuga de Sanchez de Lozada; o primeiro morto do governo do mesmo personagem que em 13 de outubro de 2003, com o rosto compungido, saiu diante das câmeras dos meios de comunicação bolivianos manifestando “que não tinha capacidade de matar”.
A morte do cocalero tem sido difundida por um vasto setor da imprensa escrita e televisionada, como consequência dos enfrentamentos entre os cocaleros do sindicato bustillos, da localidade de Aroma, na área do parque Isiboro Sécure, quase na fronteira do departamento de Cochabamba com o departamento de Beni, e os membros da força-tarefa conjunta (FTC) nessa zona que faz parte do Trópico de Chapare; dando a entender que esta área se encontraria em plena guerra. Por outro lado, querem fazer crer que existiria uma capacidade similar de fogo, já que se assinalava de maneira explícita que tais ações são consequência de uma reação a permanentes hostilidades que os cocaleros estariam realizando aos dois acampamentos desta força combinada de militares e grupos de elite da polícia boliviana, treinada e equipada com financiamento do governo ianque.
O certo é que, além das supostas “várias horas de hostilidade cocalera com dinamite” a estes profissionais da repressão, há um histórico de sequência de descumprimentos por parte do Estado boliviano dos acordos firmados no primeiro trimentre deste ano, que consistiam em paralisar a erradicação de cocales em Chapare, o que evidencia uma total perda de soberania no tratamento específico do tema do cultivo da coca, porque nenhum acordo entre o Estado boliviano e cocaleros para paralisar a erradicação terá eficácia, enquanto não contiver o aval do Estado ianque, cuja exigência é “coca zero”, isto é, que desapareça até o último cocal da bolívia, longe de toda retórica de limites permissíveis no cultivo da coca.
O deputado, líder do Movimiento Al Socialismo(MAS), e ainda dirigente cocalero, Evo Morales Ayma, aliado “secreto” do go-verno de Carlos Mesa, se viu obrigado pelas circunstâncias a “denunciar” a morte de Juan Choque e o total do número de feridos próximo a dez; contudo, nem sequer pediu um informe do governo ao Parlamento sobre os fatos, muito menos se atreveu a interpelar os responsáveis políticos desta morte.
Em suas negociações com o governo, muito cordiais por certo, conseguiu um ridículo tempo de quatro dias de pausa na erradicação de cocales por parte do Estado boliviano, o que em nada soluciona o período crítico pelo qual passam os cocaleros chaparenhos, e o que permitiria olhar com atenção as próximas nuvens carregadas no céu do trópico cochabambino.
Além do mais, Morales Ayma assinala haver conseguido o compromisso do governo de Mesa para indenizar os parentes de Juan Choque, promessa que muito provavelmente não será cumprida, como tampouco a cumpriram com muitos parentes e feridos, até a data, tanto das jornadas contra os “altos impostos” de fevereiro e a chamada “guerra do gás” de outubro, ambas de 2003.
O problema da terra na Bolívia
Uma visão bem rápida do problema da terra na Bolívia nos leva a estabelecer uma primeira divisão entre os produtores das planícies, isto é, as terras baixas situadas no departamento de Santa Cruz de la Sierra, Beni, Riberalta, devendo somar algumas zonas do Chaco Boliviano, fundamentalmente no sul do país; nestas zonas se desenvolveu a agroindústria — principalmente da soja, açúcar, vide, castanha, madeira e também o rebanho. Estas regiões se caracterizam por serem controladas por latifundiários e as relações de trabalho são do tipo semifeudal, sendo a parceria; noutros casos os proletários agrícolas — como os operários que trabalham no desentulho de minas ou beneficiadores — são submetidos a regimes trabalhistas de exploração, com pagamento precário, salário por empreitada, sem condições de segurança social nem industrial.
Por outro lado, existe na Bolívia um regime agrário de pequenos camponeses parcelados, assentados fundamentalmente no Altiplano de La Paz, Oruro e Potosí, nos vales do departamento de Cochabamba, e nos trópicos também deste último departamento, e de Los Yungas do Departamento de La Paz; aqui a grande maioria de seus camponeses é constituída por camponeses pobres, que subsidiam 70% dos gastos das cidades bolivianas.
Segundo uma pesquisa nacional socio-econômica do setor agropecuário de 1978, esses camponeses são proprietários somente de algo em torno de 20% das terras na Bolívia. No entanto, aproximadamente 20% dos camponeses acomodados e latifundiários são donos de 65% das terras na Bolívia. Sendo este contexto real, a saída para alguns parcelados, em especial os do trópico de Chapare, em Cochabamba, e de Los Yungas, em La Paz, é o cultivo da folha de coca, produto agrícola de alto rendimento e que requer pouca inversão em seu processo produtivo, atividade esta que se dedicam os camponeses pobres, médios, acomodados e semi-proletários; e que em sua maioria é cultivada não como monocultura, mas junto com outros produtos agrícolas e no contexto de uma produção na qual participa toda a família camponesa.