O município de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, geograficamente é formado por duas partes: uma pequena faixa continental e uma ilha. Esta, alongada, com 54 quilômetros de comprimento e 18 de largura máxima, é unida ao continente por três pontes. Até recentemente, cerca de 15 anos atrás, a Ilha de Santa Catarina tinha uma característica marcante: a grande e pequena burguesia concentravam-se no centro da cidade e bairros próximos, enquanto que quase todo o chamado “interior da Ilha”, isto é, as praias, eram maioritariamente ocupadas pelos pobres, que se dedicavam à pesca artesanal e à agricultura de subsistência.
Essa população praiana de Florianópolis, vivendo distante do núcleo urbano (de 20 a 50 quilômetros) foi abandonada pelas classes dominantes durante dois séculos, sem água encanada, sem saneamento básico, sem coleta de lixo, luz elétrica precária, com pouquíssimas escolas, postos de saúde, estradas e transporte coletivo.
Recordo-me de que em 1977, quando vim pela primeira vez morar em Sambaqui, praia localizada a 20 quilômetros da cidade, os pescadores contavam que até poucos anos antes, para ir ao centro só havia duas maneiras: pegar o único ônibus existente, que demorava horas na “viagem”, ou usar suas canoas mesmo.
Lembro-me de que havia moradores de Sambaqui que não conheciam o núcleo urbano de Florianópolis, nunca tinham ido “para a cidade”.
Abandonado à própria sorte, o ilhéu do interior criou seu próprio modo de sobrevivência e organização econômica e social, baseado principalmente na solidariedade e ajuda mútua. Com pouca circulação de dinheiro, houve fases em que era comum a troca de mercadorias entre as famílias.
Até mesmo os pequenos comércios varejistas locais, as chamadas “vendas”, muitas vezes aceitavam entregar produtos em troca de peixe, camarão, galinha, ovo. Ou em troca de uma peça feita de renda, um tanto de farinha de mandioca — produzida em diversos antigos engenhos — ou, ainda, de alguns quilos de café sombreado. O café recebia tal nome porque era plantado nos quintais, em meio à sombra de outras árvores*.
Do tempo das caravelas
O abandono e o pouco contato dos habitantes praianos da Ilha com o “mundo exterior” tiveram também uma curiosa consequência: um vocabulário e um modo de falar bastante originais.
Uma espécie de dialeto que incluía uma série de palavras e expressões vindas do arquipélago português dos Açores, de onde procedeu a maioria dessas famílias florianopolitanas. Mas houve algo mais**.
Houve algo mais a partir da vinda dos açorianos: verificou-se um fenômeno linguístico muitíssimo interessante. Colonizados por Portugal nos séculos 15 e 16, os Açores conservaram por muito tempo, quase intocada, uma boa parcela da língua lusitana quinhentista.
Foi esse “idioma” que os açorianos trouxeram a Santa Catarina no século 18.
Vivendo seu isolamento, os ilhéus de Florianópolis preservaram parte dessa herança linguística. Tornando-se assim, até o presente século 21, talvez o único povo no mundo a usar tão significativa fatia de palavras e expressões do português dos anos 1500. Ou seja, da língua falada no tempo das caravelas, na época da conquista da América.
Segundo Seixas Neto em O falar ilhéu na ilha de Santa Catarina (in Folclore Brasileiro, de Doralécio Soares, 1979, edição MEC/Funarte): “O ilhéu tem velocidade lusitana de flexão capaz de pronunciar cinquenta palavras razoavelmente longas por minuto; tem o som cantado português que sonoriza melodiosamente com o vocábulo como no Minho, no Douro, Trás-os-Montes e, de modo particular, nos Açores. O nativo ilhéu ainda usa, em pleno curso, e com significado original, palavras lusitanas do século dezesseis, que podem, aos de fora, parecer estranhas e inusitadas”.
Nem em Portugal, nem nas outras ex-colônias, nem mesmo nos próprios Açores se tem notícia de que exista, hoje, uma prática igual.
A “língua” do interior da Ilha de Santa Catarina, porém, não se caracteriza apenas por essa influência lusitana quinhentista. Ela contém, além disso, outros componentes culturais que se manifestam através do senso crítico, de uma saborosa ironia e do bom humor. Há muito discriminada pela burguesia, que a chamava de “manezês”, ou seja, o falar dos “manés da Ilha”, da ralé, essa língua agora se encontra numa situação contraditória e extravagante. Que poderia, a grosso modo, ser resumida em dois pontos:
1 Está em franca extinção. Isso porque seus falantes também estão se extinguindo, em função das rápidas modificações capitalistas que vêm ocorrendo na Ilha nos últimos anos. Transformada em cidade “da moda”, Florianópolis vem sendo invadida por empreendimentos de todos os tipos — comandados por empresários catarinenses, de outros estados e também do exterior.
Uma invasão que acontece, em paralelo, com um crescimento populacional rápido e descontrolado, provocado por contingentes de novos moradores, oriundos de outras cidades catarinenses e de outros estados, que migram à Ilha encantados pela propaganda.
Essa torrente que se espalha rumo às praias (lugares sem infra-estrutura e despreparados para receber essas pessoas, pois, como já disse, sempre foram desleixados pelos governos e classes dominantes) acaba poluindo o solo, as areias e as águas com esgoto e lixo, abatendo a vegetação nativa, aterrando mangues (criatório de fauna marinha), subindo em dunas e avançando inexoravelmente até as beiradas do mar, antes ocupadas pelos ilhéus, suas canoas, sua lavoura miúda e seus bilros de fazer renda.
Essa população pobre está sendo empurrada para outros lugares menos valorizados e para o desemprego. No máximo tem migrado para atividades econômicas mal remuneradas e fora de seus hábitos tradicionais. São os novos empregados domésticos, auxiliares de pedreiros, lavadores de carros, caixas de supermercado, porteiros de hotel, garçons, ajudantes de cozinha em restaurantes, guardas de segurança, etc.
2Agora que a máquina do capital atua a pleno vapor, sem chance de volta, verifica-se, ironicamente, por parte da burguesia e da oligarquia florianopolitanas, um discurso de “preservação” e “valorização” do idioma dos “manés”. Do idioma e de outros aspectos de sua cultura. Danças, cantorias, representações teatralizadas como o boi-de-mamão, confecção de rendas, narrativas sobre bruxas, etc.
Que ninguém se engane, não há remorso ou arrependimento nisso.
Ocorre, como todos sabemos, que os capitalistas enxergam tudo como negócio, mercadoria. Com o desaparecimento acelerado dos praticantes autênticos dessa riqueza cultural, tudo indica que a tentativa dos poderosos locais agora é manter tudo isso artificialmente. Como produto folclórico vendável, atrativo de lazer para o turismo, um entertainment. Há algum tempo, até o termo “manezinho”, antes tão revelador do preconceito e do menosprezo que as classes abastadas dedicavam ao trabalhador simples e pobre que habitava o interior da Ilha, vem ganhando glamour. Com a propaganda do monopólio dos meios de comunicação, hoje em dia todo mundo gosta de se dizer “manezinho”.
Quem já não ouviu a Rede Globo falar que o Guga, o tenista, é “manezinho da Ilha”?
Mas a verdade é que o autêntico ilhéu do interior e sua “língua”, esses estão mesmo em vias de extinção.
Dias atrás escutei dois ex-pescadores conversando, sentados no meio-fio da principal rua de Sambaqui. Um deles dizia que a “vivença” nas praias não está fácil. E criticava, ácido: “Nós (os ilhéus da classe pobre) demos todos com os cornos nos mariscos”.
* De excelente qualidade, esse café foi considerado o mais saboroso do país, chegando até a ser vendido fora da Ilha. Quando isso começou a acontecer, a superioridade do produto assustou os grandes cafeicultores, notadamente de São Paulo e Paraná. Esses poderosos latifundiários, então, convenceram o governo federal a erradicar, autoritariamente, os cafezais do povo ilhéu. E mais: a proibir novo plantio. Foi um trauma que os mais velhos não esquecem, até hoje. ** Os primeiros habitantes europeus da Ilha de Santa Catarina, em 1516, foram Aleixo Garcia e seus companheiros náufragos da expedição de Juan Diaz de Solís. Aleixo, como relato no livro A saga de Aleixo Garcia, o descobridor do império inca, publicado pela Coedita, realizou uma expedição aos Andes e encontrou a civilização incaica sete anos antes do espanhol Pizarro. Após a morada dos náufragos, a hoje capital catarinense só teve uma breve ocupação portuguesa-mameluca no século 17. Mas foi efetivamente povoada apenas mais tarde, no século 18, principalmente com a chegada dos açorianos.
Levar de colo
Antes que o “idioma” dos ilhéus praianos desapareça por completo, processo que poderá se concluir dentro de alguns anos, registramos uma pequena amostra dele, utilizando como base o Dicionário da Ilha, de Fernando Alexandre (Cobra Coralina, 5ª edição revisada e ampliada, ilustrações de Andréa Ramos, Florianópolis, 1994). Incluímos, porém, algumas modificações e observações próprias:
Abespinhar: picar, beliscar
Andar em porta milá (ou importa-me lá): andar sem rumo, perdido
Andar escovando aribu (urubu): estar desempregado, numa pior
Arreglo: acerto, chance, combinação (o verbo arreglar é usual no espanhol; o português antigo também o utilizava)
Assentar as costuras (de alguém): bater, dar uma surra
Ataque de pelanca: crise “histérica”
Bafuja: pouco vento, quase calmaria
Bestunto: pessoa estúpida, de intelecto limitado
Boi ralado: carne moída
Burlantim: palhaço, ator cômico
Cabeça de todos nós: pessoa de cabeça grande
Calada podre: calmaria com sol forte
Casa de instantinho: motel
Chichilaria: burocracia
Conduto: prato principal da refeição
Dar de mamar à enxada: pessoa que, na lavoura, tem preguiça de trabalhar e fica apoiada no instrumento (a expressão pode ser generalizada para todos os preguiçosos)
Dar com os cornos nos mariscos: se dar mal
Defesa: peixes de segunda que sobravam nas redes, nas praias, e eram dados pelos pescadores aos vizinhos mais pobres
De sol parido a sol morrido: durante todo o dia
És bom pro fogo: expressão usada para dizer que uma pessoa não presta (também ameaça debochada, de mandar alguém à fogueira, talvez numa referência à Inquisição, que aterrorizou a Europa, incluindo certamente os açorianos)
Gangana: grupo de bruxas velhas
Ir aos pés: ir ao banheiro, fazer as necessidades fisiológicas
Mofas com a pomba na balaia: expressão usada para dizer que uma pessoa não vai alcançar o seu intento, que vai se cansar de esperar
Não chacoalha: não perturbe, não mexa comigo, não me tire a paciência
Pastilha de prosear: ficha telefônica
Pisa flores: pessoa afeminada
Mandrião: preguiçoso, malandro
Rebojo: vento instável, que sopra em várias direções; também vento sul forte
Sino-saimão: o signo de Salomão, a estrela de Davi
Vão ter que me levar de colo: expressão usada por pessoa determinada a não fazer uma coisa que não quer.