Seria apenas um simples casal de universitários, se ela não parecesse ruiva demais para os padrões médios brasileiros. No mais, aqueles jovens poderiam ser facilmente aceitos como turistas eventuais argentinos. Para ela, ele era apenas Agacê. Para ele, ela respondia por Mi Rubita. Para uso público: portunhol. Entre eles, linguagem portenha.
Câmeras espalhadas pelo saguão do aeroporto, conectadas a um famigerado computador espião, acompanhavam as duas figuras que, por azar, tornaram-se suspeitas como elementos subversivos e, portanto, consideradas de interesse para a segurança nacional. Foi assim que ambos foram presos em 1980, no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro e despachados para um centro de torturas, na periferia de Buenos Aires.
Estropiados no Batalhão 601, de onde sumiram definitivamente, mediante desaparecimento forçado, tal qual dezenas, centenas, milhares de pessoas neste sofrido Cone Sul.
Neca de assunto pontual, ou caso isolado. Prática rotineira da famigerada Operação Condor que foi arreglada pelos serviços secretos dos regimes militares do Cone Sul, a partir de 1975, para caçar exilados e asilados políticos.
Mediante terrorismo internacional, tal Operação prendia, trocava prisioneiros, contribuindo para consolidar a figura do desaparecido político, na região.
Agora, confirmada pelo general da reserva Augusto de Tal, fato público e notório, amplamente divulgado pela mídia. No Arquivo de la Memória, na capital portenha, sobejam documentos: fichas, fotos, textos e outros suportes usuais. Aqui também os há sobejando. Pedindo para consultar, é só ver.
Sobre Mi Rubita, Agacê escreveu:
"Mi Rubita era semelhante a uma deusa no semblante. Beldade musa tão ruiva, aquela fêmea, menina andarilha da rua mais clara, que a antiga cidade iluminada já revelou.
Mulher ruiva alourada, ou loura ruiviforme, ela era o branco sobre o branco. Contraponto mutante de uma cor sobre a mesma cor a iludir retinas, num ritmo de dança eslava, ou numa janela de contracomposição.
Bom, verdadeiro e belo era o seu jeito de caminhar. Pois, desfilava em fotogramas sobre o tapete asfaltado da pintura, mais que irrealista, suprematista.
Foi então que, num dia aziago, sob um céu de chumbo, o Condor sobre a montanha, tudo sob espreita do império da opressão, a miseranda sonhadora montonera, sempre em busca de novas utopias, tornou-se perseguida política e acabou fugindo comigo para o Brasil dos generais-presidentes. Ledo engano, o nosso.
Em todo o Cone Sul, a partir da década de 1960, governos populares e populistas foram caindo sob o comando avassalador do grande Império do Norte e, automaticamente, sendo substituídos por sangrentas Ditaduras Militares e assemelhadas. Coisas da Guerra Fria. O mundo repartido entre duas superpotências. Não havia opção válida para escapar. Era aceitar ou aceitar, calar ou falar, lutar e lutar, sofrer ou morrer.
Na universidade rebelde, incumbia a todos criar formas específicas de luta. Mas, as próprias faculdades tornaram-se gradativamente ferozes instrumentos de repressão ao livre pensar. A juventude revolucionária acabou presa e torturada. Professores, operários, trabalhadores, jornalistas, profissionais liberais e até mesmo militares de formação democrática, todos, sem exceção, foram atingidos brutalmente pela nova ordem da caserna. De nada valia cantar hinos à liberdade. Impunha-se a clandestinidade guerrilheira. Às pressas, sem o necessário treinamento e armamento, sem recursos materiais mínimos, lá íamos, despreparados, subir a montanha do foquismo. Dali às ações tresloucadas era um pulo, em ações temerárias nos campos e nas cidades.
Sob perversas ordens superiores da maldição, Mônica e eu acabamos presos por determinação do famigerado Batalhão 601 das torturas intermináveis e insuportáveis, na periferia portenha. Fomos testemunhas presenciais e oculares de tantos, tamanhos e indizíveis tormentos. Provações. A extraordinária beleza de Mônica mais e mais provocava a sanha dos torturadores. De que serviria tamanha beleza senão para saciar as taras dos algozes? Mártir, ela ousou resistir, pagando com a própria vida. A mim, coube ousar lutar, ousar vencer minhas limitações, meu despreparo teórico e prático e minha imaturidade, até que as Malvinas retornassem à condição de Falklands, caíssem as últimas estrelas de um céu de chumbo. Há males que vêm para o bem.
Estropiados de corpo, estropiados de alma, estropiados de corpo e alma, em tristíssimas figuras transformados, eu não mais a reconhecia, nem ela a si própria.
Ela, em monstro deformada, então, arrancaram-na de meus braços exangues, levando-a para o destino certo do desaparecimento forçado. Caminho do vai-não-torna jamais.
Mônica Susana, Mi Rubita querida, adeus para nunca mais. Nossos desesperados gestos não foram inúteis, não foram vãs as tentativas. Era a esperança de uma pátria livre, sem injustiças, sem corrupção, sem miséria, mais liberdade, mais equidade, mais oportunidade para todos. A esperança, apesar de toda a desesperança.
Fomos à luta e combatemos o bom combate. Caímos, mas de pé, sem subserviência. Há gestos, você bem sabe, que só a dignidade pode explicar. Uma existência melhor para todos é plenamente justificável, ético e defensável, mesmo quando o poder esteja em mãos erradas. Desobediência civil, eis tudo que nos restou. Lutamos. Pagamos caro tal atrevimento. Talvez, algum dia, quem sabe sejamos compreendidos. Nosso empenho, entendido. Ainda que tais crápulas não venham a ser punidos, mercê de oficial anistia, a História declara imprescritíveis os crimes contra a humanidade.
Não tínhamos alternativas. Mas, sofremos sob as garras da repressão. Primeiramente, sumiram com minha deusa para sempre. Quanto a mim, tenho plena consciência do que me reservam.
Definitivamente desaparecida, Mônica, qual diedro sem espaço, a andarilha loura em busca das utopias iluminadas, nunca foi encontrada, mas jamais será esquecida.
Claridade da piscina nos olhos do cego. Imagem mofina da ruiva alourada do branco sobre o branco. Retrato da amnésia. A ausência estranha da menina foi o negro sobre o negro, dentro das retinas escondidas sob pálpebras das trevas do arbítrio.
Eis que, do alto de polpuda sinecura, no palácio do planalto, um tal general Augusto, falando especificamente sobre a Operação Condor, em coletiva de imprensa, admite e afirma:
— A gente não matava. Prendia e entregava. Não há crime nisso.
Só milico latino-americano é capaz de prolatar tamanha brutalidade, ou cinismo de tal jaez, mercê da secular impunidade. E nada mais disse, nem lhe foi reperguntado, enquanto a sempre prometida e sempre adiada abertura dos arquivos dos anos de chumbo é remetida às calendas gregas. Coisas nossas de país esquizofrênico, que promete uma coisa e pratica outra. Antigo jeitinho que sempre garante impunidade aos poderosos.
Em Washington, começo, meio e fim de tais nefandos males, ouvidos sensíveis de altas patentes apreciam, extasiados, a maviosa voz de Yma Sumac, interpretando a lindíssima canção peruana "O Condor Passa".
Na Praça de Maio, sofridas mães continuam sua humilde messe, repetindo:
— Quem sofre não esquece, calhordas! As grandes injustiças não passarão. A dor que nos ficou também não passará. Continuaremos cobrando tais crimes hediondos — repetem e lembram sempre as benditas e incansáveis mães.
No Arquivo de la Memória, a Operação Condor passa que passa e repassa exilados, asilados, para o desaparecimento forçado, a tortura, os maus-tratos, os castigos infamantes e cruéis, os crimes de lesa-humanidade. A morte sob tortura. Mas a dignidade permanece e para sempre. Imprescritível. Em busca da necessária justiça. Alvissareiro é o fato de que tanto a opinião pública, quanto a justiça argentina e a chilena continuam processando tais verdugos. Por aqui, nada como o jeitinho para acobertar facinorosos de tal jaez.
Já a Corte Interamericana de Justiça, da Organização dos Estados Americanos, com sede em Washington, D.C., USA & Abusa, nada sabe, nada ouve, nada fala. e proccedat judex ex officio. O bom juíz (cego, surdo, mudo) tem de ser provocado. Formalismo estrábico! Onde a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Pobre Organização das Nações Unidas! Pobre Cone Sul, frequentemente cercado por generais-presidentes, ditadores, escumalha de tal jaez sob a proteção da CIA., ao norte. Pobre América Latina, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.
Desaparecida Mônica Susana Pinus de Binstock, mi Rubita, eu, Horacio Domingos Campiglia, seu estimado Agacê, ousa dizer que te ama e te quer muito, muitíssimo bem, ad perpetuam rei memoriam. Do que, para constar, data e assina a presente declaração de amor eterno. Nesta antiga cidade iluminada, meu Buenos Aires querido, ano da graça de 1980, quero dizer e mais proclamar que não me considero o melhor, nem mesmo o mais competente para formatar esta humilde homilia aos desaparecidos forçados pela Operação Condor na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e outros países atingidos por tal flagelo medonho. Apenas anoto, cumpro função, repito e insisto, dou a cita, cravo o registro. O Arquivo de la Memória saberá guardar e preservará tal suporte para que, de futuro, ninguém venha alegar ignorância, desconhecimento, ou desinformação. Nossa dignidade nos resgatará, Mi Rubita, tenho certeza e confio.
Contudo, desaparecida Mônica Susana, nas horas de opressão, sentidos algemados, olho, busco e vejo só você, iluminada, fugidia, deslumbrante, inesquecível, insubstituível, mas digo e direi, sempre, liberdade, senhora de novos caminhos, tapejara & nhandejara. De futuro, Mi Rubita, espero que não mais venha a ser proibida a livre manifestação do pensamento, a justiça e a paz, a democracia social e política, a esperança na mudança. Afetuosamente, Horacio Domingos Campiglia".
Adolpho Mariano da Costa. Mineiro. Reside em Curitiba. Advogado formado pela USP. Obteve o prêmio Fundação Teatro Guaíra, para Leitura Dramática da peça Canal de Desvio, melhor texto paranaense de 1987 que, após encenação, foi apresentada em Porto Alegre-RS, Curitiba e outras cidades. O texto Um Índio é um Índio foi transcrito nos Anais da Assembléia Legislativa do Paraná, em 1982, época de doces utopias. Autor de Contos, Crônicas, Narrativas, Poemas, Romances, Ensaios e Peças teatrais. Textos em vídeos, matérias jornalísticas, além de participações em coletâneas várias. Sócio da UBE/SP e SBAT.
Obras publicadas:
O Donatário, contos, Soma Ed. SP,1979;
Iara Acalanto em Bronze Perene Ed Arte Texto, Curitiba, 1993;
Parábolas da Terra Sem Males, narrativas, Ed Núcleo, Curitiba, 2000;
Solução de Conflitos no Âmbito do Mercosul, 1995;
Mergulho no Mar de Minas, romance, Ed Autor, Curitiba, 2004.
E mais consta: in
O Conto Brasileiro Hoje, volumes I, II, III, IV, V, Coletânea, Ed RG Editores, SP, 2005/7;
Justiça em Nova Dimensão;
Arquivo Público do Paraná — Espaço Nobre da Cidadania;
Constituição do Estado do Paraná 1989: Anotada, Atualizada, Indexada Edição Popular para Trabalhadores — Imprensa Oficial do Estado, entre 1993 a 1994;
Histórias da Melhor Idade , contos, Ed Autor, Curitiba, 2005.
Mais informações: [email protected].