Uma notável irrelevância

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Uma notável irrelevância

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A política econômica do decênio petista tem como traço destacado a concentração do capital. Na gestão de Luciano Coutinho, iniciada em 2007, o BNDES transformou-se numa incubadora de monopólios – quase sempre, com a desnacionalização das empresas envolvidas.

Mas esta não é uma reportagem sobre como o Grupo Pão de Açúcar, pouco depois de comprar as Casas Bahia, o Ponto Frio, o Assaí e o Sendas, foi absorvido pelo francês Casino. Tampouco trata da aquisição da falida VCP, de Antônio Ermírio de Moraes, pela Aracruz Celulose, nem tem por tema a associação entre Shell e Cosan, dois gigantes monopolistas do setor de combustíveis, com cláusula de opção de compra da segunda pela primeira. Também não versa sobre o caso da sucroalcooleira Santelisa, que, depois de engolir sua concorrente Vale do Rosário, passou ao controle do monopólio francês Louis Dreyfuss Commodities (LDC) – tudo, naturalmente, viabilizado por dinheiro do BNDES. Nem mesmo sobre o descalabro instaurado no setor de aviação com a absorção da Varig e da Webjet pela Gol e pela fusão da TAM com a LAN e posterior aquisição da Pantanal, ou sobre a fusão Itaú/Unibanco, que levou a oligopolização bancária ao paroxismo. Nem sobre o como e o porque de um empréstimo de R$ 3 bilhões à Telefónica para obtenção do controle total da Vivo. E nem, tampouco, sobre os bilhões de dólares enterrados na aquisição da Bertin por seu maior concorrente, o frigorífico JBS Friboi, ao qual Coutinho tem por hábito facilitar a aquisição de empresas do ramo. Muito menos sobre o recente caso Doux, cuja matriz francesa foi à bancarrota: o BNDES entregou sua divisão de suínos à Brasil Foods e a de aves ao JBS Friboi.

Esta matéria não trata sequer das duas pérolas mais brilhantes do colar da gestão de Coutinho: a compra da Sadia pela Perdigão, que originou a Brasil Foods e a fusão entre a Oi e a Brasil Telecom, ambas em 2009. Operações desmoralizadas, no primeiro caso, por um de seus partícipes, Nildemar Secches presidente da Perdigão, que declarou que poderia tê-la realizado sem o BNDES e que este interveio para favorecer os acionistas da Sadia; e, no segundo, por um dos mais aguerridos defensores dos governos Lula e Dilma, o jornalista Paulo Henrique Amorim, que enviou uma carta a Coutinho dispondo-se a desembolsar pela BrT R$ 1 a mais do que os controladores da Oi investiriam do próprio bolso (ou seja, nada).

O tema desta investigação é o órgão ao qual cabe impedir tudo isso: o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), criado em 1962 e reestruturado em 1994 e 2011. O CADE é o núcleo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – que, creia-se ou não, existe.

Na última década – e, especialmente, nos últimos cinco anos – foi também o órgão encarregado de não fazer nada, ou quase, diante de operações em que o Estado brasileiro emprestava a alguns seletos monopólios, via BNDES, a 5% de juros anuais, dinheiro pelo qual paga, via Tesouro Nacional, juros de 14%. Seu último relatório institucional informa que, de 806 operações submetidas ao crivo de seus conselheiros em 2012, 767 obtiveram aprovação total, 36 aprovação parcial e apenas 3 foram reprovadas.

Caleidoscópio

Analisar a composição do CADE é como girar um caleidoscópio: à medida em que a posição muda, aparece uma imagem diferente – e todas são reais. Não é um problema de corrupção vulgar (aquela do toma-la-dá-cá), mas da estrutura e das escolhas do Estado brasileiro.

A primeira impressão do autor frente à nominata de componentes do tribunal administrativo que o integra foi de que ele passara a abrigar uma facção que conheceu quando seus expoentes ainda jogavam nas divisões de base da burocracia petista. O presidente do tribunal e do CADE, Vinícius Marques de Carvalho; seu chefe de gabinete, Ricardo Leite Ribeiro; e o conselheiro Alessandro Octaviani são oriundos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde a política estudantil foi o pretexto para a estruturação de um grupo que cedo transpôs seus limites para transformar-se em trampolim para cargos na estrutura do Estado.

Carvalho é o retrato vivo dessa nova e cinzenta geração petista que substitui a militância pelo aparato, as ruas pelos gabinetes, o assembleísmo pelo conchavo e o reformismo pela adesão servil aos interesses do capital – inclusive no choque direto com o trabalho. Como relator dos processos referentes à aquisição das Casas Bahia e do Ponto Frio pelo Pão de Açúcar, não conseguiu chegar a uma conclusão sobre o caráter anticoncorrencial dessas transações; no da compra da Sadia pela Perdigão, compôs a maioria que a convalidou contra o voto do relator, Carlos Emmanuel Ragazzo. Mas enxergou na tentativa de mobilização dos médicos em 2011 contra a exploração a que os submetem as operadoras de planos de saúde um perigoso ato de cartelização, proibindo as entidades da categoria de deflagrar greve, fixar preços mínimos ou tentar negociá-los coletivamente com as operadoras, sob multa de R$ 50 mil por dia. Proibir a greve, a negociação coletiva e os pisos remuneratórios mediante uma portaria de um órgão de defesa da ordem econômica é algo que não ocorreu sequer à ditadura de 64.

Octaviani, cem vezes mais inteligente e talentoso, presta-se, igualmente, a qualquer papel. Foi o responsável principal por uma das pouquíssimas decisões de alguma relevância tomadas pelo CADE: a anulação da compra da Cimpor pela Votorantim. Pena que em benefício de um monopólio potencialmente ainda mais nocivo, já que quem acabou ficando com a empresa foi a Camargo Corrêa, uma das grandes empresas de construção pesada do país. Ao enveredar pela fabricação de cimento, a Camargo Corrêa ameaça repetir o exemplo da argentina Papel Prensa, que controla a produção de papel de jornal e tem como controladoras as empresas que editam os dois maiores diários do país, La Nación e Clarín.

Outros elementos dão ao CADE a imagem de um anexo da presidência do BNDES: quatro dos sete conselheiros têm alguma ligação com Luciano Coutinho. Ricardo Ruiz teve-o como orientador de mestrado. Marcos Paulo Veríssimo foi seu chefe de gabinete no BNDES entre 2009 e 2011, quando ocorreu a o grosso das operações de concentração de capital financiadas pelo banco que o CADE deverá julgar. Carvalho e Octaviani são colegas de seu filho, Diogo Coutinho, no grupo de pesquisa Direito e Desenvolvimento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e no departamento de Direito Econômico da São Francisco, respectivamente.

Girando um pouco mais o caleidoscópio, o CADE parece ser considerado pelo governo como o lugar mais indicado para colocar pessoas ligadas a monopólios beneficiados pelo BNDES com processos pendentes no órgão. O chefe da assessoria internacional de Carvalho, Paulo Burnier da Silveira, trabalhou no DS Avocats, escritório que assessora a LDC na França. A responsável pela assessoria de planejamento e projetos da presidência, Mariana Dalcanale, é filha de Nelson Dalcanale, que foi um dos principais executivos do JBS Friboi. Fernando de Magalhães Furlan, que presidiu o CADE em 2011, foi chefe de gabinete de seu primo, o ex-ministro do Desenvolvimento Luiz Fernando Furlan, sócio e último presidente da Sadia.

Tão ou mais importante que conhecer de onde vêm os responsáveis pela repressão aos monopólios no Brasil é saber para onde vão após cumprido o encargo cívico. Olavo Chinaglia, que presidiu o CADE por alguns meses entre as gestões de Furlan e de Carvalho, tornou-se sócio do Veirano, escritório de advocacia com forte atuação em fusões e aquisições entre empresas e com interesses perante o órgão. Arthur Badin, presidente entre 2008 e 2010, é hoje diretor jurídico da Camargo Corrêa. Elizabeth Farina, presidente de 2004 a 2008, dirige atualmente a União da Indústria da Cana de Açúcar (Única).

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