Uma organização de resistência dos músicos

Uma organização de resistência dos músicos

Em março de 1988, Marcos Souza, jovem pianista, recebe um importantíssimo legado e uma grande responsabilidade. Naquele dia, falecia seu pai, o músico e compositor Francisco Mário. Caberia a Marcos, a partir daquele momento, divulgar e continuar a missão de disseminar a mais genuína música instrumental brasileira, como tantos jovens entendem fazê-lo, hoje.
Desde a infância, Marcos Souza, hoje com 31 anos, recebeu tanta influência de nossas melhores páginas musicais, que afirma ter no sangue a luta pela música brasileira. Marcos gravou com o grupo Conversa de Cordas e agora está envolvido de "corpo e alma" em vários projetos culturais, com sua própria empresa de marketing cultural e design — o Ateliê Cultural —, além da divulgação do mais recente CD, que produziu, dirigiu e compôs – com exceção da música Guerra de Canudos, de Chico Mário —, a trilha sonora do filme "Evandro Teixeira, Instantâneos da Realidade". Um documentário sobre o fotógrafo que é a própria história do foto-jornalismo no Brasil. Nesse disco, o músico também homenageia Hermeto Pascoal, João Donato, Chico Mendes, Francisco Mário e outros.
Para A Nova Democracia, Marcos Sousa fala sobre a inesgotável confiança que deve ser depositada na genuína arte brasileira, determinante para que os músicos no Brasil encontrem a única linha capaz de estruturar e divulgar sua produção, assim como os esforços necessários para se alcançar esses objetivos.

Apesar de todo o descaso com que a música brasileira é tratada, o Brasil é, sem qualquer dúvida, um dos países mais ricos musicalmente. Marcos afirma que só no Brasil existem 432 ritmos catalogados, e muitos bons músicos que podem ser encontrados nos mais diferentes recantos do país: "Isso é uma coisa do Brasil, a necessidade que o brasileiro tem de ser criativo para conseguir sobreviver" e lembra que o Vale do Jequitinhonha — uma das regiões mais pobres do Brasil, ao mesmo tempo, figura entre as mais ricas no plano da arte, tanto no artesanato quanto na música.

"A música é realmente um dos pontos fortes do Brasil. Não é à toa que grandes músicos, cantores, arranjadores são conhecidos no exterior, muitas vezes por pessoas que não sabem sequer onde fica o país. O Brasil ainda é mais conhecido pela sua arte do que por sua localização no mapa", afirma convicto. A música, como uma das formas marcantes de expressão do povo, permite que muito da nossa história possa ser revivida. No melhor da nossa música está um dos suportes da psicologia do nosso povo, do nosso pensamento e da história do país. Algo que passa de geração para geração.

Por sua experiência, Marcos pode sustentar que o brasileiro gosta, sim, de música clássica e música instrumental, de obras depuradas — desde que elas se identifiquem com a sua personalidade, seus anseios mais justos. A arte não é uma expressão dissociada das demais manifestações culturais, dos mais importantes embates econômicos e políticos de nosso tempo.

Para ele, a afirmação de que certos movimentos efêmeros, como o hip hop, por exemplo, tem caráter popular, não passa de mistificação. A mesma coisa se diz de tudo que é implantado e espúrio. Havendo oportunidade, espaço para a arte dos mais fortes valores populares, a preferência se revelará por essa última. Porque, ao mesmo tempo em que o povo vê shows ditos populares, também prestigia bons projetos, bastando, para tanto, que estejam disponíveis. O que significa dizer, que existam e estejam a preços acessíveis.

"Em contra-partida, é uma verdadeira afronta a lei que estabelece para as rádios a inserção de duas músicas nacionais a cada três músicas estrangeiras. Isso é um absurdo! Ouvir três músicas estrangeiras, uma atrás da outra… Se o brasileiro não fosse criativo, musical por formação, seria até compreensível."

A maneira de falar de Marcos acaba levando a uma lógica de entendimento de que é possível explicar, cientificamente, porque cada povo produz e aprecia a sua própria música, seus ritmos, sua conduta musical genuína. Além daquilo que é, de fato, internacional, uma grande expressão (na literatura, na arte, etc.) que se torna do agrado dos povos do mundo inteiro. Porém, a maior parte do que se houve nas rádios brasileiras são jingles, por exemplo, que nada têm de internacional. São meras mensagens publicitárias, campanhas doutrinárias, sem qualquer conteúdo cultural, sem forma verdadeiramente artística — muitas vezes cruelmente implantados nos hábitos musicais do povo. Tanto mais quando existe a obrigatoriedade de ouvir música espúria — entenda-se, estrangeira — made in USA, ou "montada" no Brasil.

A luta organizada dos artistas

Segundo Marcos, muitas iniciativas acontecem, mas não são divulgadas. O que aparenta passividade e falta de resistência na área artística. "São inúmeros os círculos de cinema, teatro, dança, que estão conseguindo sobreviver, avançar, estabelecer contatos, etc. Imagine, então, se eles se unissem…" Para Marcos, os meios eletrônicos de comunicação facilitaram o contato entre os grupos, porque os artistas entendem que existe uma necessidade imensa, premente, de organização. Ele acredita que a questão da organização reside nos propósitos bem delineados e, nesse ponto, muito ainda tem que ser feito: "Se as pessoas trocassem mais informações, ninguém ia ficar a espera de governo, de projeto oficial nenhum."

A luta para que o povo se apodere dos grandes meios de produção, também acontece no plano da organização da cultura restrita às atividades de literatura e arte. Pequenos destacamentos na frente cultural podem disseminar uma forte cultura, mas não podem competir com os grandes meios de produção. A questão é que inúmeros artistas — mesmo sem apoio do governo ou dos grandes meios de comunicação — conseguem realizar projetos realmente marcantes. Estão surgindo associações que tentam encontrar um caminho verdadeiramente viável para a produção, divulgação e comercialização da música brasileira mais autêntica. São músicos que se associam, gravadoras independentes batalhando para distribuir seus discos, institutos culturais que se formam. Busca-se um caminho para estruturar a luta em defesa da música de nosso país. Não há o que esperar de governos, de programas oficiais ou de mecenas. Mesmo sendo obrigação do governo proteger a arte, a literatura, as realizações científicas, a economia e a vida do seu povo.

Hoje a música é muito requisitada como propaganda das políticas públicas (músicas que fizeram sucesso, músicas novas ou encomendadas) para as atividades que pretendem tirar as crianças das ruas, que enaltecem a versão globalizada de cidadania, ética, etc. E a música é algo que seduz muito as pessoas, em particular, as crianças. Mas, a questão é: qual o conteúdo do programa e que música se presta aos bons e maus propósitos? Que tipo de doutrina, afinal, se pretende divulgar através da música e outras expressões artísticas? Há, inclusive, o caso de projetos destinados a ensinar sons instrumentais, vocais, harmonia, às crianças pobres. Porém, Marcos observa que "elas começam a estudar e aprendem a tocar muito bem. Mas, e depois? Aonde vão se apresentar? Vão sobreviver de quê?"

Os discos independentes

Apesar de toda pobreza, o brasileiro continua comprando discos. Mesmo com preços tão altos para o padrão de vida brasileiro. A produção independente, que tende a se tornar mais forte, vai acabar forçando a queda dos preços, porque, hoje, a produção é bem mais barata do que na época do vinil. É só observar a quantidade de CDs produzidos, em contraponto aos discos de vinil. Os CDs, hoje, são vendidos aos milhões. Apesar disso, a maioria dos artistas não consegue viver exclusivamente da venda de CDs.

O problema é que baixar o custo não significa diretamente favorecer o comprador, mas aumentar o lucro quando prepondera o monopólio das gravadoras. Apenas uma minoria de artistas —comprometidos ou não com a música brasileira — que têm gravadora, e vendem 100, 200 mil cópias, ganha dinheiro. O independente (lógico, essa história é bem mais antiga) consegue ter algum retorno com a venda de CDs nos shows. Portanto, a maior fonte de renda do artista é o show.

Ele tem uma forte lembrança das primeiras produções independentes de seu pai, porque a capa vinha separada do LP e, aos oito anos de idade, ajudava os pais na tarefa de colocar um disco em cada capa. "Posso falar dos discos independentes, porque acompanhei de perto toda a luta de meu pai. Para produzir seus discos, ele conseguia amigos que os compravam antes que ficassem prontos. Ele juntava 200 amigos, que compravam uns cinco discos cada um. Com o dinheiro arrecadado ele fazia o disco. Essa experiência me serviu de aprendizado, porque a idéia eu usei no meu CD", relembra Marcos, que está se unindo a outros músicos, como Carlos Malta, Mauro Senise e Gilson Peranzzeta, e montando uma cooperativa para distribuir seus discos.

No disco independente o artista tem que fazer seu próprio trabalho, divulgar e distribuir, um problema que já não se limita aos artistas desconhecidos. Os melhores nomes da MPB estão seguindo os caminhos do disco independente. É o que nos fala Marcos: "As grandes gravadoras estão perdendo suas maiores personalidades. Um Jorge Benjor, um Paulinho da Viola, vende sempre. Outros — que fazem enorme sucesso, auxiliados por uma poderosa máquina de promoção — vão vender 100 mil, 1 milhão de CDs, seja o que for, mas, depois, vão acabar. Daqui a alguns anos já era. Então eles têm que inventar outro sucesso. Mas, Paulinho da Viola, Gal e Caetano vão vender sempre. Nisso, as gravadoras estão perdendo. Os grandes nomes estão saindo das maiores gravadoras em troca de mais dignidade e liberdade para gravar seu trabalho."

O caminho para a música brasileira é a união. Associações de gravadoras e produtoras independentes, a cada dia vão surgindo. É o caso do Instituto Cultural do Rio de Janeiro, do qual Maurício Carrilho é o presidente. Eles querem construir uma casa, uma escola de música, e a primeira escola de choro do Rio de Janeiro.

Bandas, shows a preços populares e rádio comunitária

Um dos passos para a divulgação da música instrumental, que Marcos propõe, é a criação de bandas universitárias: "Eu acho que deveriam ser criadas bandas em cada universidade federal. Uma banda remunerada, formada por estudantes, ou não, da universidade. Essa banda vai divulgar a universidade tocando pelo estado a qual pertence. Ao mesmo tempo, proporcionaria ao jovem a dignidade de ser músico e receber por isso". Marcos acredita que desta forma a música instrumental torna-se mais acessível a todas as pessoas, e garante que os músicos formados possam ser profissionais.

Marcos, também, propõe a criação de shows a preços populares, como aqueles que produz, em parceria com o Sesc: "É decente, tanto para o músico, quanto para as pessoas que vão assistir. A cada vez eu crio um tema diferente. Uma vez, foi realizado show de violão, outra, de arranjadores, uma terceira vez, sopro. A cada mês, de acordo com o tema, reunimos grandes nomes da música brasileira." Marcos pretende, agora, levar música instrumental para outros bairros, ou outros municípios do Rio de Janeiro. Em breve, o mesmo projeto chegará à Barra Mansa, Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, etc. E completa: "Eu vi a carência que estas pessoas têm de ouvir música brasileira, e o quanto a adoram. A aceitação é sempre grande. Todo mundo fica encantado com o show. E eu divulgo, faço mala direta… Então, esse trabalho que eu venho desenvolvendo, na verdade, é de disseminação da musica instrumental brasileira".

Além de todos os projetos, Marcos espera conseguir patrocínio para produzir um documentário para cinema sobre Betinho, Henfil e Chico Mário: "Neste filme pretendo contar a história destes três irmãos, desde suas origens, até suas realizações: Meu pai, que foi um dos pioneiros do disco independente, da associação de luta pela música brasileira; Henfil, destaque no desenho e na política, o primeiro cartunista brasileiro a publicar quadrinhos nos Estados Unidos, e o Betinho, que criou uma campanha que até hoje consegue mobilizar muita gente."

Marcos apresenta um programa de música instrumental, na rádio Viva Rio, que distribui programações segmentadas para rádios comunitárias. Nessa retomada cultural, a rádio comunitária tem um papel importante na sociedade brasileira, porque é mais democrática — diferente das rádios comerciais que negociam o que vão levar ao ar, de tal forma que quase não tocam a verdadeira música brasileira. Principalmente instrumental.

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