Uma pequena grande crítica à sociedade burguesa

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Uma pequena grande crítica à sociedade burguesa

O que os altos índices de suicídios, a opressão sobre as mulheres e o tabu em torno do aborto têm em comum? Tudo está relacionado à submissão moral e material dos trabalhadores no âmbito da sociedade burguesa, à existência balizada pelo absolutismo da propriedade privada e pelos embates entre as classes sociais.

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Em outubro do ano passado, quando a crise capitalista deu sinais de que vinha mesmo para abalar as estruturas do modo capitalista de produção, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou: vai aumentar o número de suicídios. E se engana quem pensa que se trata apenas do empresário falido que se joga do alto do prédio ou do operador da bolsa que perde tudo na jogatina do mercado de ações e corta os pulsos porque não aguenta a culpa do seu próprio olho grande. Não. A maioria dos suicidas são trabalhadores, gente do povo encostada contra a parede por dívidas, incertezas e humilhações; gente como a gente que acaba sucumbindo à precarização da vida e ao esfacelamento do espírito; que, nas palavras do professor Rubens Enderle, recorrem ao ato extremo da multifacetada alienação do homem sob o capital.

Enderle é co-tradutor de Sobre o suicídio (Boitempo, 2006, 82 páginas), pequeno ensaio de autoria de Karl Marx, ainda que o grosso do texto não tenha sido escrito pelo próprio Marx. Explica-se: o ensaio é composto, sobretudo de excertos de um outro autor, e "temperado" por Marx através de sua tradução do texto para o alemão, pela introdução escrita por ele, por observações e por comentários. O autor do texto original, aliás, não é nenhum economista, militar, filósofo, historiador ou político, mas sim um ex-diretor dos Arquivos da Polícia sob a Restauração, o francês Jacques Peuchet. Sendo assim, o tema abordado no texto que despertou o interesse de Marx – e que depois foi incorporado à sua obra – não é diretamente uma grande questão política ou econômica, mas diz respeito ao caráter da sociedade, embora, apareça como pertencente à esfera da vida privada: o suicídio.

Desconsiderando esta importante contribuição científica, a sociologia burguesa consagrou um outro francês como o precursor do estudo científico sobre o tema. Émile Durkheim escreveu, em 1897, portanto bem depois da morte de Peuchet e de Marx, uma monografia na qual o suicídio é analisado como um fato social e é formulada uma tipologia sem, no entanto, fazer uma interpretação à luz da luta de classes, como Marx abordou.

Para ‘psicopicareta’, suicídio vira piada

Mas, afinal, quem a OMS quis alertar? Os políticos que estão à frente dos Estados burgueses, que patrocinam a destruição dos direitos e garantias dos trabalhadores, começando pela autorização dada às empresas para demitirem de maneira sumária, sempre sob injustas causas? O monopólio mundial dos meios de comunicação, que fez brincadeira com a possibilidade de aumento da ocorrência de suicídios, dizendo que, "como se junto da desvalorização da bolsa, se intensificasse a depreciação do valor da vida".

O fato é que o número de casos de suicídios aumentou durante a Grande Depressão dos anos 1930. No Brasil, o mesmo aconteceu na época do Plano Collor, que confiscou as poupanças. No Japão, constatou-se que 57% dos que cometeram suicídio em 2007 eram desempregados. Depois de a crise atual estourar, os sindicatos japoneses estão preocupados com a saúde mental dos seus filiados, uma vez que grandes empresas como Sony, Honda e Panasonic já anunciaram demissões. Na França, o suicídio é a principal causa de mortes violentas, bem à frente dos acidentes de trânsito e dos homicídios. Muitos se matam nas próprias fábricas onde trabalham. Após três casos consecutivos entre trabalhadores da Renault, procuradores franceses tentaram fazer a empresa responder criminalmente pelas mortes.

Acontece que, embora se agrave em contextos de crise, infelizmente o drama dos suicídios é um efeito corriqueiro da moderna sociedade capitalista. No mundo todo, ainda segundo a OMS, há um suicídio a cada 30 segundos. A previsão para 2020 é de 29 mortes de homens para um grupo de 100 mil pessoas. No ano 2000, esta relação era de 16. O suicídio é a terceira principal causa de mortes em adultos com idades entre 15 e 34 anos.

Mas a maioria dos suicídios é cometida por pessoas com mais de 60 anos, e o número de casos de crianças suicidas está aumentando. A principal causa apontada por especialistas para o aumento dos suicídios entre os mais jovens e os mais velhos é a violência familiar, a repressão física e psicológica, quase sempre impetrada por motivos fúteis. Em outras palavras: a natureza opressora da família burguesa.

Isto, no entanto, não costuma ser reconhecido nem mesmo pelos profissionais da psiquiatria, cujo trabalho em geral consiste exatamente em ajudar os indivíduos a viverem o melhor que puderem, individualmente, o cotidiano da sociedade capitalista, jamais cogitando a possibilidade de superá-la, fingindo que a luta de classes é coisa dos livros de história.

Há ainda a picaretagem "psi" mais descarada. Em outubro do ano passado, quando profissionais da área vindos de todo o mundo se reuniram no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, um renomado professor da Universidade Federal de Pernambuco saiu-se com esta ao falar do risco de aumento dos suicídios no cenário de uma crise econômica: "O bom humor está no gene do brasileiro que ri da própria miséria. Muitas vezes, a gente se depara com aquela piada na qual a pessoa que está contando é a própria vítima".  

Sintoma de uma sociedade doente

Daí a importância de Sobre o suicídio, por sua interpretação científica sobre como a moderna sociedade burguesa tende a impor às massas a exploração e a opressão, mas também a culpa, a vergonha e o medo.

A voz do próprio Peuchet enumera vários casos do que hoje vem sendo chamado por aí de "economicídio":

"Ao remexer nos arquivos da Polícia, observei apenas um único sintoma inequívoco de covardia na lista dos suicídios. Tratava-se de um jovem americano, Wilfrid Ramsay, que se matou para não ter de bater-se em duelo. A classificação das diferentes causas dos suicídios deveria ser a classificação dos próprios defeitos de nossa sociedade. Suicidou-se porque teve uma invenção roubada por intrigantes, em cuja oportunidade o inventor, lançado a mais degradante miséria em consequência das longas e eruditas pesquisas a que teve de se dedicar, não pôde sequer comprar uma patente de invenção. Suicidou-se para evitar os enormes gastos e a consequência humilhante de dificuldades financeiras, que, aliás, são tão frequentes que os homens responsáveis pela condução dos interesses gerais não se preocupam nem um pouco com elas. Suicidou-se porque não conseguiu nenhum trabalho, pelo qual havia suplicado durante muito tempo sob as ofensas e a avareza daqueles que, em nosso meio, são os seus distribuidores arbitrários".

"Entre as causas de suicídio, contei muito frequentemente a exoneração de funcionários, a recusa de trabalho, a súbita queda dos salários, em consequência de que as famílias não obtinham os meios necessários para viver, tanto mais que a maioria delas ganha apenas para comer".

"Na época em que, na casa do rei, o número de guardas foi reduzido, um bravo homem foi afastado, como muitos outros, e sem maiores cerimônias. Sua idade e sua falta de proteção não lhe permitiram reincorporar-se às Forças Armadas; a indústria estava fechada para a sua carência de instrução. Tentou entrar na administração civil; os concorrentes, muito numerosos aqui como em toda parte, vedaram-lhe esse caminho. Caiu num profundo desânimo e se matou. Em seu bolso, foram encontrados uma carta e informações sobre suas relações pessoais. Sua mulher era uma pobre costureira; suas duas filhas, de dezesseis e dezoito anos, trabalhavam como ela. Tarnau, nosso suicida, dizia nos papéis que deixou que, não podendo mais ser útil a sua família, e sendo forçado a viver a custa de sua mulher e de seus filhos, achava que era sua obrigação privar-se da vida para aliviá-los dessa sobrecarga".

Marx completa: "A classificação das causas do suicídio é uma classificação dos males da sociedade burguesa moderna, que não podem ser suprimidos sem uma transformação radical da estrutura social e econômica". Mas a principal questão social discutida por Marx e Peuchet em relação ao sintoma do suicídio é a opressão das mulheres na sociedade capitalista, aquela permeada de valores burgueses. 

Opressão às mulheres: tirania burguesa

É um tema atualíssimo. Agora mesmo, entre um "Dia Internacional da Mulher" e um "Dia das Mães", o monopólio mundial dos meios de comunicação marca as datas desfilando toda sorte de loas e homenagens de fachada às mulheres, aparentemente destacando sua emancipação – como se a emancipação de gênero pudesse ser desvinculada da emancipação de classe –, mas, na verdade, reproduzindo velhos preconceitos com novas roupagens, escamoteando o fato fundamental de que a sociedade burguesa patriarcal jamais deixará de reservar a elas uma posição subalterna.

Marx e Peuchet se detêm particularmente nos suicídios relacionados a manifestações de injustiça que não estão diretamente ligadas às questões econômicas – ainda que balizadas por elas – mas revelam o caráter da sociedade manifesto em um ato ligado, aparentemente, à vida privada de indivíduos então considerados não-proletários.

Três dos quatro casos de suicídio de mulheres descritos em Sobre o suicídio são de mulheres vítimas do patriarcado. Duas suicidas são mulheres burguesas, enquanto a outra é de origem popular, filha de um alfaiate. E se o trágico destino das três foi determinado pela tirania familiar própria da sociedade burguesa, isto se deu mais por questões de gênero do que por questões de classe.

Aborto: da demagogia à perspectiva socialista

No primeiro caso, uma jovem noiva recorre ao suicídio para escapar da humilhação à qual é submetida pelos seus próprios pais. Marx demonstra indignação ao denunciar a vingança covarde de quem é rotineiramente forçado à submissão na sociedade burguesa contra quem está em posição ainda mais fragilizada:

"As pessoas mais covardes, as mais incapazes de se contrapor, tornam-se intolerantes assim que podem lançar mão de sua autoridade absoluta de pessoas mais velhas. O mau uso dessa autoridade é igualmente uma compensação grosseira para o servilismo e a subordinação aos quais estas pessoas estão submetidas, de bom ou de mau grado, na sociedade burguesa".

O segundo caso é o de uma mulher mantida prisioneira em casa pelo marido ciumento. Ela vê no suicídio a única maneira de pôr fim à sua angústia, já que está cercada por todos os lados pelo poder masculino.

O terceiro caso, o de uma jovem que é levada ao suicídio "pela hipocrisia social, pela ética reacionária e pelas leis burguesas que proíbem a interrupção voluntária da gravidez", tem particular relevância para nós, brasileiros. Isto porque recentemente assistimos a mais um deprimente espetáculo de demagogia protagonizado pela Igreja Católica – uma instituição feudal –, incluindo a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – para desgosto de quem ainda nutria alguma ilusão quanto à CNBB – no que se refere ao direito ao aborto. Os clérigos foram contra a interrupção voluntária da gravidez de uma menina de nove anos que ficou grávida após ter sido reiteradamente estuprada pelo padrasto – e foram, digamos, "menos contra" os estupros propriamente ditos.

O tema do aborto só viria a se tornar uma das principais bandeiras do movimento feminino na segunda metade do século XX, mas um século antes Marx já dava a ele uma perspectiva balizada nos pressupostos da emancipação socialista, nas páginas de uma pequenina, mas grandiosa crítica à natureza opressora da família burguesa.

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